Respirar de alívio e (tentar) seguir. Arrasado por todos os lados por causa de um relatório que omite algumas das maiores polémicas da comissão de inquérito à gestão da TAP, o PS só quer olhar em frente rumo a um verão em que o assunto seja gradualmente esquecido. Apesar de o assunto ter afligido o partido e ter resultado em duras críticas internas, mais ou menos em surdina, ao Governo, sente-se a urgência em mudar a agulha. A tática socialista é clara: desvalorizar os resultados do inquérito, culpar oposição e comentadores pelo “empolamento” dos casos que o próprio Governo criou e tentar chegar à tão desejada normalidade — com remodelação (mais tarde ou mais cedo).

O PS suspirava por este momento há meses e no partido já só se fala no pousio estival e num regresso, em setembro, recuperados de um ano e meio tortuoso (muito por responsabilidade própria). “Começar outra vez”, comenta um deputado. O plano inicial de ataque ao inquérito, que consistia em virar as baterias contra o PSD e o Governo de Pedro Passos Coelho por causa da privatização da TAP, falhou e a comissão só trouxe novas polémicas sobre a gestão pública da empresa, provocadas muitas vezes por membros do Governo, como foi o caso do episódio no Ministério das Infraestruturas e tudo o que se seguiu. A convicção foi-se instalando: era preciso acabar rapidamente com esta fase e passar a uma nova, em que a sucessão de casos envolvendo a TAP não passasse de uma memória amarga e sem história.

PS com pressa em despachar inquérito à TAP para tentar relançar Governo

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Chegado esse momento, surgiu um novo problema: o relatório da comissão, escrito por uma deputada do PS, Ana Paula Bernardo, foi arrasado em coro pela oposição – de “levezinho” a “podia ter sido escrito por António Costa e João Galamba”, o documento foi unanimemente interpretado como uma versão exclusiva, e até “ficcional”, dos socialistas que ajuda Costa a ilibar Galamba e a fugir à retirada de consequências políticas. E parece ser mesmo por aí, a julgar pelo que diz um um alto dirigente ao considerar que era preciso “imaginação” para daqui retirar “consequências drásticas”, dizendo mesmo que a Costa restará chegar e dar nota de ter “tomado conhecimento”, recomendar “aos membros do Governo cuidado em aspetos mais sensíveis” que tenham surgido e, por fim, dizer : “Arquive-se”.

Os socialistas negam segundas intenções com este relatório, ainda que fora dos microfones também se admita que não passa de “literatura de supermercado”. Uma espécie de folheto que foca apenas o que interessa à maioria. “O relatório é o que menos interessa, porque o PS tem noção do que se passou. E a opinião pública também. O que interessa é o que aconteceu até ao relatório”, acrescenta um deputado socialista.

“Omissões, ficções e branqueamentos”. Quem foi culpado e quem se livrou no relatório (para já só do PS) sobre a TAP

O socialista Vitalino Canas diz até que é “um pouco ingénuo pensar, em casos de comissões parlamentares de inquérito muito mediatizadas, que é o relatório que vai ditar as conclusões. As pessoas tiram as suas próprias conclusões“, remata. E o que o PS pretende agora é passar isso adiante e apontar o que correu menos mal, como a prestação do “ex-ministro [Pedro Nuno Santos] e do ministro das Finanças, que acabaram imprevistamente por saírem politicamente reforçados“, comenta um alto dirigente ao Observador.

“Como as intervenções de Hugo Mendes, Pedro Nuno Santos e Medina correram bem, na apreciação global, isso também diminuiu a intensidade e a pressão e tranquiliza as pessoas dentro do partido”, analisa Vitalino Canas.

Remodelação inevitável?

Se a fé é que estão afastadas por agora as consequências políticas que pudessem surgir após o relatório final — e até há um Conselho de Estado marcado pelo Presidente da República para fazer uma avaliação política depois de todo tumulto TAP –, também há quem as veja como inevitáveis.

“Quem acha que não retirará consequências políticas deste ano e meio é porque não conhece António Costa“, diz um deputado da maioria. “Não remodela sob pressão, mas com tempo e quando acha que é o momento. As coisas estão a acalmar e vai haver consequências — não da comissão de inquérito, mas do último ano”, aposta a mesma fonte.

O desafio tem vindo de dentro do partido, com especial insistência do Presidente do partido, Carlos César, que já falou na necessidade de um “refrescamento” do Governo mais do que uma vez. Esse cenário é mesmo apontado como uma inevitabilidade, dentro do partido, seja mais em cima da escolha de candidatos para o Parlamento Europeu, no início do ano, seja antes disso, logo após o Orçamento do Estado para 2024.

Carlos César aponta “necessidade de refrescamento” do Governo a Costa

“A montanha pariu uns ratinhos”

Quanto ao conteúdo do relatório da comissão de inquérito, escrito pela deputada do PS Ana Paula Bernardo, os socialistas tentam desvalorizar as críticas “absolutamente previsíveis” da oposição e começa a tentar desenhar-se a ideia de que o que se passou nos últimos meses, à volta dos casos na TAP, não passou de uma espécie de circo mediático, mesmo que com episódios “infelizes” do Governo pelo meio, espera o PS que cada vez mais diluídos no tempo.

“Como já se tinha percebido, a montanha pariu uns ratinhos”, atira um deputado socialista, referindo-se às conclusões que o inquérito trouxe. O argumento é o mesmo que vai fazendo eco dentro e fora da bancada parlamentar socialista: o objetivo específico da comissão passava por analisar a gestão política da TAP e por procurar indícios de interferência política.

Por isso, ensaiam os socialistas, é possível deixar de fora os casos mais bizarros que marcaram a comissão (dos incidentes e agressões no ministério das Infraestruturas a questões que são interpretadas pela oposição precisamente como indícios de interferência política, como o e-mail em que o ex-secretário de Estado Hugo Mendes pressionava a ex-CEO da TAP a mudar um voo para o Presidente da República ou a reunião preparatória que meteu membros do Governo, PS e TAP).

“Dificilmente o relatório ia replicar o combate de boxe e o empolamento de questões que houve durante as sessões da comissão de inquérito”, justifica o mesmo deputado, nessa lógica. Ainda assim, alguns socialistas admitem que podia ter uma ou outra referência às audições mais polémicas, evitando que isto se transformasse em mais um momento de ataque à maioria socialista.

“O relatório não poupa o Governo porque está toda a gente a bater na fragilidade do relatório”, comenta um socialista que defende que o relatório principal devia ter “anexos”. Assim, argumenta, “atingiria o objetivo de limitar a oposição, mas sem criar problemas ao Governo”. “Era desnecessário” deixar fora o que mais incomodou, acrescenta outro socialista na mesma linha. Acabou tudo em “meros pormenores na história cósmica”, comenta um outro socialista.

Virados contra a bolha e com um ponta de lança desta estratégia no Governo

Mas a linha mais comum entre socialistas é mesmo a desvalorização do que saiu da comissão, disparando até contra a cobertura jornalística e os painéis de comentadores televisivos. “O país é que foi torturado. E não foi nem por Pedro Nuno Santos, nem pela Christine Ourmières-Widener, nem pela Alexandra Reis. O que aconteceu correu mal, infelizmente, o que se seguiu foi patético”, avalia uma fonte socialista, explicando assim a nova narrativa do PS: até houve coisas que “correram mal” – incluindo as que resultaram numa quase-demissão de Galamba e na declaração mais dura que o Presidente da República alguma vez fez contra este Governo –, mas a parte mais “patética” do processo foi a cobertura mediática dos casos em que o Governo se meteu.

E esta linha foi mesmo assumida publicamente por um governante. Nas últimas semanas, não raras vezes, o ministro da Cultura “fez de Augusto Santos Silva” — como diz um socialista que compara a atitude de Pedro Adão e Silva ao papel de rottweiler de Santos Silva em governos anteriores. Apareceu em programas de comentário político e em entrevistas, como esta à revista Visão, apostado em destruir análises desfavoráveis ao Governo.

Reconhece a existência de “problemas autoinfligidos que todos reconhecemos”, mas o ataque maior de Adão e Silva é reservado a quem comenta e à “descoincidência entre aquilo que é o mundo de antecipação de cenários e de reformulação de cenários, em que vivem os comentadores, os jornalistas e alguns políticos, e aquilo que é a realidade”. O ministro que faz parte da coordenação política do Governo diz mesmo que os “portugueses são moderados, ponderados, têm muito bom senso – tudo coisas que frequentemente faltam quando se olha para o comentário político nas televisões portuguesas.”

A referência sistemática “à bolha”, que António Costa também tem usado, entrou para ficar na estratégia socialista para tentar sacudir de cima dos ombros todos os problemas — mesmo os endógenos –, contrariando a ideia de uma maioria alheada e fechada sobre o seu próprio poder absoluto.

Boa parte desses casos até foi conhecida graças às próprias sessões da comissão de inquérito, e há quem defenda que esse foi, de resto, o pecado original. Ou seja: na ânsia de mostrar colaboração, esmagado pela pressão política, o PS viabilizou audições como a de Frederico Pinheiro ou a da chefe de gabinete de João Galamba, mas não devia. E, por isso, não é agora obrigado a incluí-las no relatório final. Um deputado sintetiza assim esta decisão: “Não se corrige um erro cometendo outro por cima”.

A ideia é, ainda assim, tentar gerir a apresentação de um relatório polémico e ridicularizado pela oposição de forma a não alimentar mais a ideia de uma maioria absoluta implacável. Por isso, entre os socialistas vai-se defendendo que não só a deputada relatora é uma pessoa “orientada para consensos” e “dialogante”, como o partido está aberto a fazer alterações. E na bancada dá-se o sinal de que o PS está disposto a fazer mudanças no texto também por via de alguma articulação e “diálogo informal” com a oposição até ao dia da votação, a 13 de julho. Mas com limites.

Questionado na conferência de imprensa de quarta-feira passada sobre a possibilidade de voltar atrás nas omissões dos temas mais delicados, como os relativos às secretas ou João Galamba, o coordenador do PS no inquérito Bruno Aragão repetiu a cartilha de que nada disso fazia parte do “âmbito do inquérito”. Essa parte parece estar, assim, fora de eventuais consensos.

A esperança socialista é, de resto, que também esta fase passe rápido: enquanto a oposição se mostra indignada com o teor do documento, a tese do PS é que fora da tal “bolha mediática” a atenção da população (e do eleitorado) já dispersou. Ou seja, há problemas mais prementes a que as pessoas estarão a dar atenção – pode ajudar a reforçar esta convicção a sondagem do Expresso/SIC, a meio de junho e já depois de todos os escândalos conhecidos durante o inquérito, que revelava que o PSD não tinha ganhado nada com a crise política e mostrava o PS ainda a subir um ponto em relação à sondagem anterior. Há meses que o PS desespera por uma oportunidade para tentar mudar a onda de caos que tem envolvido o Governo neste ano e meio de maioria absoluta e conseguido mostrar trabalho. Vem aí mais uma tentativa.