Rumia Takhtarova, cinco anos, estava a plantar batatas com a avó Anna num campo entre as cidades soviéticas de Smelovka e Uzmorie, 40 quilómetros a sul de Saratov, na Rússia, quando foi surpreendida com uma visão inusitada e aterradora — a de um homem que caía das nuvens, amparado por pára-quedas cor de laranja, em direção ao terreno onde as duas trabalhavam.
Amedontrada, Anna pegou na mão de Rumia e desatou a correr enquanto orava. Só abrandou quando o homem, de braços esticados e pernas bambas, lhes pediu em russo que parassem. “Quem és tu?”, perguntou a avó, “e de onde vens?”. “Venho de um navio”, respondeu o homem com uma voz gutural. “Que navio? Não há nenhum mar aqui”, disse-lhe a a mulher. “Eu venho do céu”, revelou o navegante: “Sabe onde posso arranjar um telefone?”.
Nem Anna, nem Rumia tinham ouvido o jornalista Yuri Levitan a transmitir uma das notícias mais importantes da sua carreira. Foi ele quem anunciou em primeira mão a invasão da Alemanha nazi à Rússia em junho de 1941, a rendição germânica em maio de 1945 e a morte de Estaline, de quem era fã incondicional, em março de 1953. A 12 de abril de 1961 anunciou também que a União Soviética tinha colocado o primeiro homem no espaço.
“Govorit Moskva! Govorit Moskva!”, disse Levitan: “Isto é Moscovo a falar! Isto é Moscovo a falar! Estamos a transmitir uma notícia da agência TASS a anunciar o primeiro voo espacial tripulado do mundo. O cosmonauta-piloto na nave espacial Vostok é um cidadão da União das Repúblicas Soviéticas Socialistas, o major Yuri Alekseyevich Gagarin”, revelou o jornalista, pondo termo ao secretismo em torno da missão.
O secretismo era tanto que nem a mulher de Gagarin, Valentina, sabia que o marido tinha passado uma hora e 46 minutos a contemplar a Terra de um ângulo que nenhum humano alguma vez tinha tido do nosso planeta. E nem sequer ouviu a novidade no rádio: soube-o porque uma vizinha a avisou e porque Tamara Titova, mulher de Gherman Titov, o suplente de Gagarin, que morava logo em frente, o gritou a sete ventos na varanda de casa.
“Vai-te lixar, aqui estamos a dormir”
A Casa Branca, no entanto, já desconfiava que havia um russo a flutuar 170 quilómetros acima da cabeça de John F. Kennedy, que tinha tomado posse três meses antes. Eram 01h35 em Washington D.C. quando Pierre Salinger, assessor do presidente, foi acordado com um telefonema de Jerome Wiesner, conselheiro científico do presidente, porque as antenas americanas já tinham detetado movimentações no espaço aéreo.
Nada de muito invulgar, pensou inicialmente Salinger: seria só mais um foguete soviético com uma cápsula tripulada por um cão, as cobaias preferidas dos soviéticos para as experiências espaciais. E os Estados Unidos (que preferiam usar símios) começavam a habituar-se a ter foguetes bélicos com capacidade suficiente para transportar bombas nucleares a uma distância desconfortavelmente próxima das suas portas.
Mas daquela vez era diferente. Wiesner acreditava que no topo do foguetão estava um humano. Pelo menos era isso que indicavam as imagens de espionagem recolhidas pelos americanos nos dias anteriores; e era também isso que sugeriam os sinais detetados pelos osciloscópios. Pierre Salinger limitou-se a grunhir que estava bem e voltou a adormecer. Acordaria novamente às duas da manhã com os jornalistas à procura de reações.
Quem também não teve um bom acordar foi John Powers, assessor da NASA, que respondeu com um vernáculo a Jay Barbree, jornalista da NBC Cape, quando lhe telefonou de madrugada desejando-lhe bom dia e desculpando-se pela hora: “Bom dia o c******, o que é que tu queres?”. “A reação da NASA aos russos terem orbitado um cosmonauta”, esclareceu Powers. “Vai-te lixar, Barbree, aqui estamos a dormir”, gritou o assessor.
Na verdade, os Estados Unidos já pareciam estar adormecidos na corrida espacial durante algum tempo. Desde o lançamento do Sputnik, o primeiro satélite colocado na órbita da Terra, que os norte-americanos limitavam-se a comer o pó deixado para trás pelos soviéticos — e foi assim até ao desenvolvimento do programa Gemini, recordou ao Observador o professor e investigador Paulo Gil, do Instituto Superior Técnico.
As sucessivas vitórias espaciais soviéticas eram especialmente notáveis (e desmoralizadoras para os americanos) porque a União Soviética tinha sido massacrada pela II Guerra Mundial, que terminara 16 anos antes — tanto que metade dos mortos provocados pelo conflito eram soviéticos. Os americanos, que tinham saído praticamente ilesos do conflito, não pareciam conseguir contudo erguer-se acima da URSS. Nem mesmo servindo-se da nata dos cientistas alemães.
É que os soviéticos escondiam um truque na manga: desde os anos 20 que tinham uma tradição de desenvolvimento de foguetes, liderada pelo génio do engenheiro ucraniano Sergei Korolev, pai da aeronáutica soviética. Sob a liderança de Estaline, o cientista foi enviado para um Gulag (campo de trabalhos forçados) na Sibéria, acusado de sabotagem, mas escapou da morte quando foi recuperado para o esforço da Guerra Fria.
Depois da II Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética partilharam o que de melhor restava do desenvolvimento aeronáutico alemão, de que os soviéticos já ‘bebiam’ há algumas décadas. Com o Projeto Paperclip, os primeiros ficaram com os melhores cientistas, entre os quais o engenheiro Wernher von Braun, pai do foguete V-2 — o primeiro objeto enviado para o espaço, feito da Alemanha nazi.
Já os soviéticos ficaram com a fábrica de foguetes; serviram-se das ferramentas de desenvolvimento alemãs e de uma enorme equipa de 2.000 técnicos germânicos que, logo após a II Guerra Mundial, começaram a trabalhar na criação de mísseis balísticos intercontinentais. Só nos anos 60, quando a capacidade industrial instalada se tornou mais importante do que a teoria, é que os Estados Unidos ganharam a vantagem que os levaria à Lua.
Uma vitória soviética com travo bélico
Ora, a cápsula em que Gagarin completou a missão ao espaço foi obra de Korolev. Era uma nave em que só um homem como ele, que tinha apenas 1,57 metros e menos de 76 quilogramas, podia permanecer confortavelmente. Aliás, Gagarin era tão baixo que esteve para ser expulso dos treinos da Força Aérea, contou Paulo Gil: para conseguir aterrar com os olhos postos no chão era preciso sentar-se em cima de almofadas.
Vostok 1 era esférica, forrada com um escudo que a protegeria do calor produzido pela fricção ao atravessar a atmosfera e continha todas as ferramentas necessárias apenas num dos lados para que se reorientasse em função do centro de massa na viagem de regresso à Terra. E, segundo Rui Moura, professor do Instituto Geofísico e da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, era a única peça feita de raiz para aquela missão.
É que o foguete que lançou Yuri Gagarin para as alturas não era mais do que a derivação do R7, um míssil intercontinental. As coisas funcionavam assim do lado soviético na Guerra Fria, que criava foguetes bélicos a partir do V-2 alemão, mas também do lado americano: os três primeiros lançadores norte-americanos também eram mísseis intercontinentais. O primeiro foguetão que não como base fins bélicos foi o Saturn V.
O controlo de Gagarin sobre a cabine era praticamente nulo. Todas as funções eram supervisionadas pela base na Terra. O motivo era simples: ninguém sabia o que acontecia a um humano no espaço. Talvez a psique se quebrasse por completo ou a ausência de gravidade produzisse coágulos que o condenariam à morte. Na dúvida, Gagarin recebeu um envelope com códigos para acionar um número muito limitado de comandos caso fosse necessário.
De facto, a missão foi conquistada à tangente. Mesmo sendo muito poderoso, o foguete esteve no limite de conseguir colocar Yuri Gagarin em órbita, que devia ser praticamente redonda: não podia sair mais baixo do que os 170 quilómetros de altitude, porque ficaria refém da força gravítica e furaria a atmosfera até ao solo; nem mais alto que os 300 quilómetros, porque podia escapar completamente da Terra e vaguear fatalmente pelo espaço fora.
A diferença pode parecer muita — demasiada para se falhar. Mas não é: as rotas dos objetos espaciais lançados da Terra são desenhados a partir do centro do planeta, o que significa acrescentar qualquer coisa como 6.371 quilómetros de raio às equações. Na dúvida, os soviéticos desenharam uma órbita suficientemente baixa para que, se o retrofoguete falhasse e Gagarin não desacelerasse, ele conseguisse reentrar na atmosfera.
Caso isso acontecesse, o cosmonauta demoraria cerca de 10 dias a chegar a terra firme — e tinha mantimentos a bordo para suportar a longa viagem. Mas houve um problema: a órbita em que a Vostok 1 efetivamente ficou foi diferente da planeada inicialmente. Por isso, se algo corresse mal, já precisava de 20 dias para ceder à gravidade e aterrar finalmente. Nesse caso, Gagarin dificilmente sobreviveria por não ter água suficiente.
A turbulenta viagem de regresso de Gagarin
A boa notícia é que o retrofoguete não falhou: após 106 minutos em órbita da Terra, enquanto sobrevoava Angola, o cosmonauta começou a travar tal como planeado. Mas não deixou de ser uma viagem atribulada: no momento em que Gagarin começou a sentir a força gravítica a abater-se sobre ele — chegou a sentir oito vezes mais gravidade do que à superfície da Terra —, julgando-se seguro, o motor do Vostok deu problemas.
É o que conta ao Observador o historiador Chris Riley, autor do documentário “First Orbit”. Havia uma válvula no motor que tinha de fechar após a ação do retrofoguete, o não o aconteceu. O combustível, que devia ter sido conduzido para a câmara de combustão, começou a escapar para o espaço. Foi o suficiente para que a velocidade da cápsula passasse a ser 15 km/h mais baixa que o suposto. E Gagarin começou a rodopiar descontroladamente.
O movimento impediu, por exemplo, que vários instrumentos que já não seriam úteis, como quantidades extra de oxigénio e uma bateria, não se separassem do módulo onde Gagarin viajava. E nada disso estava preparado para resistir às altas temperaturas que se faziam sentir. Bastava que este compartimento sobreaquecesse e explodisse para que o módulo do cosmonauta explodisse com ele.
Estranhamente, Yuri Gagarin nunca reportou à base quão iminente pareceu estar a sua morte. Praticamente não comunicou, limitando-se a dizer calmamente que “a nave continua a rodar em todos os eixos” e que conseguia ver com muita facilidade a costa norte de África e o Mediterrâneo. Tudo isto enquanto caía a 18 quilómetros por segundo desde os 100 quilómetros de altitude.
Gagarin, com 27 anos à época, não morreu na viagem — veio a perder a vida em 1968m quando MIG-15 que pilotava perdeu o controlo e caiu para não chocar com outro avião, que o cosmonauta não viu porque estava muito nevoeiro (apesar de serem muitas as teorias da conspiração sobre o acidente). Mas na viagem espacial, os sensores incorporados na cápsula detetaram as altas temperaturas a que estava sujeita e terão forçado o sistema a separar os dois compartimentos da nave. A partir dali, Gagarin tinha apenas de sobreviver às tremendas forças G. E consegui-o.
Quis o destino — que é como quem diz, os desvios na rota que Gagarin sofreu à conta da atribulada viagem de regresso — que o cosmonauta viesse a aterrar numa terra que conhecia bem. Foi em Saratov que Gagarin aprendeu metalúrgica numa escola técnica; e foi também ali, nas margens do rio Volga, que começou a pilotar pequenos aviões num clube gerido por militares — um privilégio a que acedeu por se ter alistado nos Jovens Pioneiros da União Soviética.
O medo dos americanos deu espaço aos soviéticos
Os americanos tinham demasiado medo de cumprir aquilo que Yuri Gagarin tinha conquistado e não se atrapalhavam muito a admiti-lo. Recorda Rui Moura que, os primeiros dois voos tripulados dos Estados Unidos, com Alan Shepard e Virgil Grissom, ficaram-se por altitudes suborbitais porque os foguetes Atlas e Redstone não tinham capacidade para deixar os astronautas mais além. Só com John Glenn em 1962 é que o Atlas já teve capacidade suficiente para chegar efetivamente ao espaço.
Dois meses antes da missão Vostok 1, numa conferência de imprensa, John F. Kennedy admitiu que não tinha pedido uma aceleração dos projetos de missões tripuladas ao espaço — disse mesmo que os americanos não estavam numa corrida espacial com os soviéticos — porque não estava “muito preocupado em pôr um homem no espaço para ganhar prestígio e depois esse homem correr um risco desproporcionado“.
Na verdade, o Atlas tinha “o hábito chato” de explodir, adjetiva Rui Moura, e por isso os americanos demoraram um ano a confiar nele. Mas para os americanos, o silêncio da NASA era ensurdecedor: surgiram mesmo teorias da conspiração sobre como os soviéticos já tinham enviado humanos para o espaço, mas que nunca o tinham anunciado porque tinham tido fins trágicos, ficando perdidos no espaço condenados a uma morte lenta.
A hipótese surgiu de dois irmãos italianos, Achille e Gian Battista Judica-Cordiglia, que diziam ter captado inadvertidamente as comunicações por rádio desses humanos-cobaia no espaço — nomeadamente a voz, a respiração e os batimentos cardíacos de uma mulher que dizia: “Falem comigo! Falem comigo! Está muito quente! Está muito quente!”. A teoria ficou conhecida como “Cosmonautas Perdidos”.
Mas ela nunca convenceu Chris Riley, um dos primeiros investigadores fora da Rússia a ter acesso aos áudios da viagem de Yuri Gagarin, porque os soviéticos informaram os americanos que tinham chegado ao espaço mesmo antes de o cosmonauta ter aterrado. Ou seja, quando o sucesso da missão ainda não estava garantido nesse momento, porque o piloto podia nunca ter sobrevivido à reentrada na atmosfera. A transparência dos soviéticos nesse momento faz Chris Riley crer que “nem tudo foi propaganda”.
Certo é que, enquanto a NASA se debatia com o receio em enviar americanos ao espaço, a União Soviética foi ganhando espaço. Mesmo com uma tecnologia muito rudimentar (a suficiente para concretizar estas viagens), os soviéticos conseguiram lançar uma sonda para Vénus em fevereiro de 1961, embora ela tivesse perdido contacto com a Terra uma semana mais tarde. Foi mais uma pedra no sapato dos americanos. Dois meses depois, a pedra no sapato teve um nome humano: Yuri Gagarin.