A vida de um anúncio de televendas não é fácil. Não é fácil vender frigideiras revolucionárias ou panos capazes de absorver uma barragem de dimensão média às tantas da madrugada perante uma audiência ensonada que, no dia seguinte, de pouco se lembrará além da teatralidade dos anunciantes.
Abundam as razões para que na indústria das televendas o ânimo esteja em baixo. Apostar que a frase “antigamente é que era” é dita com frequência por aqueles escritórios e estúdios empoeirados será provavelmente uma aposta ganha. Porém, esse sentimento poderá mudar depois daquele que foi provavelmente o maior anúncio de televendas de 2020. Falamos, pois, da primeira noite da Convenção do Partido Republicano — e acima de tudo do produto que impera ali vender: Donald Trump.
Durante duas horas e meia, foi como se Donald Trump tivesse adotado um novo lema: “Fazer as Televendas Grandes de Novo”. Entre as 20h30 e as 22h00 (horário da Costa Este, correspondente às 1h30 e 4h00 de Lisboa), cerca de duas dezenas deram o seu melhor para convencer os norte-americanos que Donald Trump precisa de mais 4 anos para continuar o trabalho que iniciou em 2017 — e também para explicar por que o Partido Democrata e Joe Biden são o pior produto do mercado.
Tudo isto seguindo à risca as 7 regras que o inventor dos anúncios de televendas, Kevin Harrington, deixa no seu site a todos os aprendizes desta arte. É a partir delas que recordamos como foi o primeiro dia da Convenção do Partido Republicano.
“Use testemunhos. Apresente estudos do produto em causa. Leve o seu cliente a visualizar como é que seria se eles usassem o seu produto.”
Pelo menos uma coisa não parece ter mudado da campanha de 2016 para a de 2020: ao passo que o Partido Democrata faz por mostrar as figuras públicas que tem do seu lado, o Partido Republicano não parece sequer procurá-las e prefere dar palco a pessoas de outra forma desconhecidas. Foi assim há quatro anos e nesta campanha essa distinção continua marcada — com os democratas a chamarem até aos seus palcos, virtuais ou literais, figuras de Hollywood; e os republicanos a mostrarem pessoas que, em muitos casos, se estreiam ali a falar para uma grande audiência.
“Os democratas começaram a convenção deles na semana passada com Eva Longoria, uma atriz famosa de Hollywood que fazia de dona de casa na televisão. Bom, eu sou uma verdadeira dona de casa e mãe do Michigan, com dois filhos lindos que estudam numa escola pública”, disse a presidente do Partido Republicano, Ronna McDaniel. “E dá-se o caso de eu ser apenas a segunda mulher em 164 anos a dirigir o Partido Republicano. E, ao contrário de Joe Biden, o Presidente Trump não me escolheu por eu ser mulher, mas antes por ser a melhor pessoa para o cargo.”
Também houve o testemunho de Tanya Weinreis, dona de uma pequena cadeia de cafetarias chamada Mountain Mudd Espresso, negócio que esteve “à beira do precipício” por causa da pandemia da Covid-19. “Estava assustada. Pensei nos nossos 15 empregados, na família da Mountain Mudd. E quando pensei nos empregos deles, pensei em como eles iam pagar as rendas deles, pensei nos filhos deles, e fiquei a sentir-me pessoalmente responsável”, contou aquela empresária. Perante as dificuldades, Tanya Weinreis conta que se ajoelhou e rezou. “Senhor, o que é que faço?”, perguntou. “As palavras dele foram claras: ‘Continua a trabalhar, vai correr tudo bem’.”
Tanya Weinreis deu as suas preces por ouvidas e concretizadas quando chegou à sua empresa um empréstimo PPP (sigla para “Paycheck Protection Program”, traduzível para Programa de Proteção de Salários) diretamente do governo dos EUA. “É por isto que acredito tanto que precisamos de um Presidente que acredita no sonho americano, como o Presidente Donald Trump”, disse. “Agora, mais do que nunca, estou grata por as minhas preces terem sido ouvidas.”
We are living a GREAT AMERICAN STORY—only because you are in it, President @realDonaldTrump!
“Every time I think of you, I give thanks to my God” (Philippians 1:3). https://t.co/v1dXr44Stx
— Natalie Harp (@NatalieJHarp) August 25, 2020
A ideia destes testemunhos — o de alguém que se diz naquela posição graças a Donald Trump — foi levada a um extremo no caso de Natalie Harp, uma sobrevivente de cancro que, dirigindo as suas palavras ao Presidente dos EUA, disse: “Não estaria viva se não fosse por si”. Depois desta afirmação, Natalie Harp contou como lhe foi diagnosticado um “cancro nos ossos raro e em fase terminal”. De acordo com o relato da própria, a morte foi fintada graças a tratamentos alternativos (e ainda por testar) que passaram a estar disponíveis a doentes em caso terminal.
“Disseram-me que eu era um fardo para a minha família e para o meu país, e que se escolhesse morrer mais cedo estaria a poupar as vidas dos outros ao preservar recursos para eles em vez de os desperdiçar numa causa perdida, como eu. E quando as quimioterapias que estavam no mercado não resultaram comigo, ninguém me queria nos seus testes clínicos porque eu ia fazê-los passar uma má imagem deles próprios. Eles não me deram o direito a experimentar outros tratamentos, senhor Presidente”, disse Natalie Harp. “Mas você deu. E sem si eu teria morrido à espera que esses tratamentos fossem aprovados.”
“Mantenha a história simples. Um anúncio de televendas não deve ser complicado ou difícil de seguir. Está a escrever um anúncio de televendas e não um filme.”
Além de testemunhos na primeira pessoa, houve também espaço no primeiro dia da Convenção do Partido Republicano para anúncios políticos, ora de ataque ao Partido Democrata, ora de elogio a Donald Trump. Nenhum terá sido tão intenso neste último aspeto como aquele que diz respeito à gestão da pandemia por parte do atual Presidente — e, como manda a segunda regra do guru das televendas Kevin Harrington, esta foi uma história contada de forma simples.
“Desde o início, os democratas, os media e a Organização Mundial de Saúde estiveram enganados sobre o coronavírus”, ouve-se nesse vídeo. A partir daí, mostram-se várias declarações dos supracitados, todos a desvalorizar a pandemia que à altura estava por chegar. “Nem sequer pensamos que vá ser tão mau quanto foi noutros países”, ouve-se dizer Andrew Cuomo, governador de Nova Iorque, que, afinal, teve aquela que foi a pior crise de Covid-19 nos EUA no seu próprio estado.
E, depois, já com a imagem do Presidente no fundo, a voz off prossegue: “Um líder tomou ação de uma forma decisiva para salvar vidas: o Presidente Donald Trump”. Esta é a parte em que são, depois, enumeradas várias medidas tomadas por Trump para prevenir e depois combater a pandemia, como suspender os voos provenientes da China e outras partes do mundo afetadas pela Covid-19, fazer uma declaração de emergência nacional ou canalizar fundos federais para fazer frente à crise, entre outras.
Mas, como acontece por norma quando se conta uma história de forma simples, há pormenores que ficam de fora. Como a vez em que, a 24 de janeiro, Donald Trump assegurou que “a China tem trabalhado muito arduamente para conter o coronavírus”; ou quando a 27 de fevereiro disse que “um dia [o coronavírus] vai desaparecer, será como num milagre”; e as várias vezes em que defendeu ideias que iam contra os pareceres científicos das autoridades de saúde dos EUA.
Também de fora daquele vídeo ficaram os números da Covid-19 nos EUA: 5.915.630 casos, dos quais 181.114 morreram. “Estou pasmado com a insistência da Convenção do Partido Republicano em dizer que a gestão de Donald Trump da pandemia é tão brilhante e teve tanto sucesso. Como é que podem dizer isso com uma cara séria quando os EUA têm 4% da população mundial e 25% das mortes por Covid?”, questionou no Twitter Nicholas Kristof, comentador político e colunista do The New York Times.
I'm flabbergasted by the RNC insistence that Pres. Trump's handling of the pandemic is so brilliant and so successful. How can you say that with a straight face when the US has 4 percent of the world's population and 25 percent of the world's Covid deaths?
— Nicholas Kristof (@NickKristof) August 25, 2020
“Seja realista. Não faz mal apresentar um cliente que tenha tido resultados acima da média, mas tente incluir também os resultados na média. Não só é mais credível como é mais ético.”
Numa altura em que as tensões raciais são um fator evidente na vida socio-política dos EUA, foram vários os oradores da primeira noite da Convenção do Partido Republicano que falaram sobre racismo — e, detalhe importante, não o negaram. Mais importante ainda: rejeitaram a ideia de que Donald Trump é racista.
Esse foi o ponto de honra de alguns oradores que são, eles próprios, membros de minorias étnicas nos EUA. “Eu cresci no Sul profundo e vi o racismo de perto. Eu sei o que é o racismo. E sei que não é Donald Trump”, disse o ex-jogador de futebol americano Herschel Walker, afro-americano e amigo de há 37 anos de Donald Trump. Também Nikki Haley, ex-embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, e filha de dois imigrantes indianos, reconheceu que há racismo — mas negou que os EUA sejam em si um país racista: “Isso é mentira. A América não é racista. Isto é uma questão pessoal para mim”.
E houve também espaço para falar de um dos nomes mais referidos nos EUA este ano: George Floyd, o afro-americano que morreu durante uma detenção policial em Minneapolis, no Minnesota, quando um polícia se ajoelhou no seu pescoço para imobilizá-lo.
“Temos de acabar com o racismo e garantir que qualquer polícia que abuse dos seus poderes seja responsabilizado”, disse Donald Trump Jr., o filho mais velho de Donald Trump e o primeiro de quatro filhos a falar nesta convenção. “O que aconteceu a George Floyd é uma desgraça e quem conhecer um polícia sabe que ele concorda com isto. Mas não nos podemos esquecer de que os polícias são heróis americanos. Eles merecem a nossa admiração mais profunda. Porque, independentemente do que dizem os democratas, tanto vocês como eu sabemos que quando ligarmos para o 911 [número de emergência] não queremos ir para o correio de voz.”
“Seja repetitivo. A verdade é que nem toda a gente vai estar colada ao ecrã quando o anúncio de televendas estiver a dar. Não faz mal repetir as mensagens que são importantes.”
A retórica não é nova: para Donald Trump e o seu partido, os democratas são hoje controlados pela ala mais à esquerda e radical, representada pelo senador veterano Bernie Sanders e pelas congressistas estreantes Alexandria Ocasio-Cortez e Ilhan Omar. Mas não é por esta ser uma retórica já previamente testada que deixou de ser usada — antes pelo contrário.
Nenhuma ideia teve tanto destaque entre os 18 oradores da noite quando o tema era o Partido Democrata e o adversário de Donald Trump.
“O Partido Democrata deixou-se infetar por uma pandemia de intolerância, fanatismo, socialismo, sentimento anti-polícia e uma tolerância perigosa para pessoas que atacam os outros, destroem a propriedade deles e aterrorizam as suas comunidades”, disse o congressista estadual da Geórgia Vernon Jones, ele próprio um democrata pró-Trump.
In Joe Biden's America the Radical Left get whatever they want, and you get to pay for it.
Don't let it happen. pic.twitter.com/CwbnOeR9NC
— Team Trump (Text TRUMP to 88022) (@TeamTrump) August 25, 2020
Uma das caras mais pró-Trump do Congresso, Jim Jordan, repetiu a nota tanto quanto pôde. “Os democratas não vos deixam ir à igreja mas já vos deixam ir a manifestações. Os democratas não vos deixam ir trabalhar, mas já vos deixam ir fazer motins. Os democratas não vos deixam ir à escola, mas já vos deixam ir fazer pilhagens”, enumerou.
Nikki Haley também não foi branda — até porque bateu nas mesmas teclas já anteriormente batidas, por ela mesma e outros na esfera de Donald Trump: “Joe Biden é bom para o Irão e para o Estado Islâmico, é excelente para a China comunista e é uma prenda dos céus para quem quiser que a América peça desculpa, se abstenha e abandone os nossos valores”.
E Donald Trump Jr. também pôs Joe Biden e a “esquerda radical” no mesmo saco: “Eles estão atrás da nossa liberdade de expressão, querem intimidar-nos ao ponto de nos submetermos. Se eles levarem a deles avante, já não vamos ser a maioria silenciosa, vamos ser a maioria silenciada”.
“Leia o seu guião em voz alta. Grave tudo e oiça a seguir. Desta forma, será capaz de ouvir e perceber onde é que pode melhorar. Se alguma coisa não estiver a correr bem, confie no seu instinto e mude-o.”
Preparar uma convenção partidária nos EUA nunca terá sido fácil, mas era já uma ciência dominada — até que, em 2020, surgiu a pandemia da Covid-19 e obrigou os partidos a mudarem os seus planos à última hora.
No caso do Partido Republicano, o plano original era ter uma convenção presencial em Charlotte, na Carolina do Norte. Depois, perante os entraves que foram sendo colocados pelo governador daquele estado (o democrata Roy Cooper), Donald Trump equacionou transferir parte da convenção para a Flórida — mas logo recuou nessa intenção quando aquele estado passou a ser o novo epicentro da Covid-19 nos EUA. Desta forma, a convenção “voltou” à Carolina do Norte — e, em vez dos 2.472 delegados de há quatro anos, viajaram até lá 336 delegados de todo o país.
Portanto, para os republicanos foi difícil cumprir este 5.º ponto do inventor das televendas (“Leia o seu guião”) porque o guião teve de ser feito à pressa. Mas o facto é que, atendendo à maneira como decorreu este primeiro dia, ficou claro qual é o guião: defender Donald Trump e atacar Joe Biden. Tudo o resto (histórias pessoais e outros apartes) só tem lugar se servir para redundar nos dois pontos anteriores. O guião é este e dele não se fugiu.
A exceção a esta regra foi do próprio Donald Trump. Num segmento em que, sentado na Casa Branca, trocava palavras com seis norte-americanos que estiveram ora presos ora sequestrados em países como a Turquia, Síria ou Venezuela, o Presidente acabou por cometer uma gaffe. Depois de ouvir rapidamente a história do pastor evangélico Andrew Brunson, que chegou a estar preso dois anos na Turquia sob acusação de pertencer a um grupo terrorista, Donald Trump acabou por elogiar o ditador responsável por aquela mesma detenção: “Devo dizer que, para mim, o Presidente Erdoğan foi muito bom”.
“Lembre-se da personalidade dos seus apresentadores. O apresentador é muito animado? Tem piada? Este tipo de questões ajudá-lo-á com o tom de voz e com a escrita do texto.”
Entre os 18 oradores, foram poucos os que partiram de um ângulo generalista — notando-se a preocupação do Partido Republicano em convocar para a primeira noite desta Convenção arquétipos das causas que mais defendem.
Para falar de racismo, escolheu afro-americanos como o ex-jogador de futebol americano Herschel Walker, o congressista estadual da Georgia Vernon Jones ou o senador Tim Scott da Carolina do Sul. Para falar de armas, foram chamados Patricia e Mark McCloskey, o casal que apontou armas a manifestantes do movimento Black Lives Matter que terão tentado invadir a sua propriedade em St. Louis, no Missouri; e também Andrew Pollack, pai de Meadow Pollack, o adolescente que morreu no tiroteio da escola de Parkland, na Flórida, em 2018. Quando foi para falar da pandemia, deu-se a palavra a sobreviventes da Covid-19 — desde médicos a polícias.
Cada um contou o que tinha a contar — à sua maneira. Mas todos redundaram sempre em Donald Trump. Entre tudo o que foi feito, talvez a frase que mais sintetize tudo isto foi a de Charlie Kirk, presidente de um grupo político de jovens conservadores e primeiro orador da noite: “Trump é o guarda-costas da civilização ocidental”.
“Chamada para a ação: não se esqueça disto. Deve fazê-lo em tom de urgência, se possível. Por exemplo, diga que ‘só há 20 unidades disponíveis’ ou ‘oferta temporária’.”
A “chamada para ação” deste enorme anúncio de televendas em horário nobre é evidente: vote em Donald Trump ou o pior virá.
Foi um ponto comum de vários oradores desta noite. A empresária Tanya Weinreis passou essa mensagem: “Temo pelos empresários locais de toda a América que estão sob assalto de encerramentos, motins e a que estão perante a possibilidade aterrorizante de Joe Biden destruir tudo o que construímos”. O congressista da Flórida disse que com o democrata a Presidente a vida nos EUA será um “filme de terror” realizado por “Alexandria Ocasio-Cortez e os socialistas” cujo guião passa por isto: “Vão tirar-vos as armas, esvaziar as prisões, prender-vos nas vossas casas e convidar [o gangue] MS-13 para viver na porta ao lado”. E Donald Trump Jr. quis deixar bem clara a escolha entre um produto perfeito e um produto péssimo: “Estas eleições estão a tornar-se nisto: igreja, trabalho e escola versus motins”.