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“Isso a mim não me assusta nada. No dia que eu estiver em incumprimento é que as pessoas me podem perguntar certas coisas. O que eu garanto é que não fujo” do país.
Luís Filipe Vieira, 10 de maio, Comissão Parlamentar de Inquérito ao Novo Banco
Era esta garantia que o presidente do Benfica há mais de 16 anos dava aos deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito ao Novo Banco quando foi confrontado com o cumprimento dos seus compromissos bancários. Mas foi precisamente por indícios de perigo de fuga, entre outros, que Luís Filipe Vieira, o seu filho Tiago, o empresário José António dos Santos e o agente Bruno Macedo foram detidos esta quarta-feira por ordem do juiz Carlos Alexandre.
O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) deixa claramente em aberto no comunicado que emitiu ao final da tarde a possibilidade de promover a prisão preventiva dos quatro arguidos detidos exatamente pelo perigo de fuga (“evitar ausências de arguidos”), continuidade da atividade criminosa (“prevenir a consumação de atuações suspeitas em curso”) e destruição de prova (“acautelar prova”).
Estão em causa “negócios” e “financiamentos” superiores a “100 milhões de euros” que terão levado a “elevados prejuízos para o Estado e para algumas das sociedades”. Uma delas, será a do próprio Benfica.
Vieira e a utilização do Benfica no centro da investigação
Não há dúvida que a operação em mais de 45 locais levada a cabo pelo juiz Carlos Alexandre e mais dois magistrados judiciais, quatro procuradores, 66 inspetores tributários e 74 agentes da Polícia de Segurança Pública tinha como principal alvo Luís Filipe Vieira. É ele, enquanto empresário, que une os dois grandes blocos de factos em investigação; e é ele, como presidente do Benfica, que une todos os arguidos detidos.
O primeiro grande dossiê sob investigação prende-se aliás com a utilização do Benfica por parte do seu presidente desde 2003. Luís Filipe Vieira é suspeito de ter alegadamente utilizado diversas operações com ações da SAD do Benfica para fins pessoais. Estão em causa não só diversas operações institucionais da SAD do clube da Luz, nomeadamente diversas Ofertas Públicas de Aquisição (OPA) e emissões obrigacionistas, como também uma alegada tentativa de entrada de um investidor internacional no capital social da SAD benfiquista.
Um desses negócios em causa na investigação é a OPA que a Benfica SAD liderada por Luís Filipe Vieira anunciou a 18 de novembro de 2019. Com cerca de 32,3 milhões de euros de capitais próprios, a SAD benfiquista propunha-se adquirir no mercado 6,4 milhões de ações que estavam nas mãos de terceiros.
Um deles era José António Santos, o maior acionista privado do clube da Luz, com 12,7% do capital da SAD. Tendo adquirido ações à Somague e ao Novo Banco por cerca de três milhões de euros, o empresário conhecido por ser o ‘Rei dos Frangos’ (devido à sua empresa Valouro) podia ter uma mais valia de cerca de 11,6 milhões de euros. O próprio Luís Filipe Vieira, igualmente acionista, poderia encaixar igualmente cerca de 4 milhões de euros.
A OPA acabou por não passar no crivo da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários que, depois de informação adicional pedida, concluiu que a oferente, a Benfica SGPS, pretendia utilizar para pagar as ações fundos que tinham como origem a própria sociedade que era alvo da oferta, a SAD benfiquista.
Rui Rangel e Luís Filipe Vieira acusados do crime de recebimento de indevido de vantagem
Uma “sociedade não pode conceder empréstimos ou por qualquer forma fornecer fundos ou prestar garantias para que um terceiro subscreva ou por outro meio adquira ações representativas do seu capital”, sendo nulos os contratos que violem esta proibição (art. 322.º do Código das Sociedades Comerciais), verifica-se existir um vício que afeta a legalidade da oferta, nos termos em que foi apresentada pelo Oferente, justificava a CMVM.
A CMVM também analisou eventuais conflitos de interesse na relação entre Vieira e José António Santos que é o maior acionista do Benfica e que iria vender as suas ações nesta OPA. Tudo porque há uma ligação que o procurador Rosário Teixeira está a analisar entre essa operação e outra que também envolve José António dos Santos e Luís Filipe Vieira: a compra dos créditos da Imosteps (empresa do grupo empresarial do presidente do Benfica) por parte do ‘Rei dos Frangos’.
Imosteps. Como o “Rei dos Frangos” livrou Vieira e a mulher de um aval dado a uma dívida que não foi paga
E aqui entramos no segundo bloco de factos que estão sob investigação: os créditos do Banco Espírito Santo cedidos ao grupo empresarial de Luís Filipe Vieira que transitaram para o Novo Banco e como José António Santos ajudou o presidente do Benfica a livrar-se de um aval pessoal a uma dívida que não foi paga.
Foi Vieira quem revelou no Parlamento que José António Santos tentou comprar diretamente a dívida da Imosteps, empresa com terrenos no Brasil que estava em incumprimento dos créditos, ao Novo Banco. Mas o Fundo de Resolução impediu a operação por causa das ligações entre o empresário das rações e o presidente do Benfica, que apontavam igualmente para um provável conflito de interesses.
A dívida de 54 milhões de euros da Imosteps foi vendida numa carteira de crédito malparado em maio de 2020 a um fundo por cerca de 6 milhões de euros — alegadamente por menos que o ‘Rei dos Frangos’ tinha proposto. Mas esta dívida e o aval pessoal de Vieira, que lhe estava associado, acabaram por ir parar à mão de José António Santos por oito milhões de euros em agosto. Na audição, o presidente do Benfica assumiu que tinha abordado o seu amigo empresário para o alertar para a operação porque a dita Imosteps era proprietária de direitos de construção no Rio de Janeiro (e também de uns cemitérios, como explicou António Ramalho, presidente do Novo Banco). Seria um bom negócio.
Já no final do ano passado, a Portugal Restructuring Fund, (uma empresa ligada ao empresário dono da Valouro) comprou também capital social da Imposteps a Luís Filipe Vieira por um euro. Esta transação, descrita no prospeto de emissão de dívida da SAD do Benfica, aconteceu no pressuposto que os respetivos ativos se encontravam livres de ónus ou encargos. O preço de um euro teve a ver com o facto de a sociedade estar em incumprimento e tem como contrapartida que o comprador, a sociedade de José António Santos, aceite libertar os avales pessoais dados por Luís Filipe Vieira e a sua mulher ao financiamento de 54 milhões de euros que ficam assim totalmente desonerados de responsabilidades neste sociedade.
A operação vem descrita com grande detalhe no capítulo que identifica potenciais conflitos de interesse entre acionistas e administradores do Benfica. O prospeto conclui que a “circunstância de o Presidente do Conselho de Administração, Luís Filipe Ferreira Vieira, ter alienado as ações de que era titular na Imosteps, S.A. por €1 ao respetivo credor Portugal Restructuring Fund e que, resultou na desoneração das garantias pessoais prestadas no financiamento em causa pelo mesmo, não resulta num conflito de interesses, real ou potencial, face às suas obrigações para com a Benfica SAD, na medida em que a Benfica SAD é totalmente alheia aos negócios entre os acionistas acima descritos e em nada é afetada por estes, direta ou indiretamente”.
Luís Filipe Vieira argumentou no Parlamento que a dívida da Imosteps não era sua. Tinha ficado com a empresa para fazer um favor a Ricardo Salgado.
Vieira é o segundo maior devedor em perdas cobertas pelo Fundo de Resolução
A dívida de 54 milhões de euros da Imposteps vendida por um grande desconto gerou perdas no Novo Banco que foram cobertas pelo Fundo de Resolução. Mas há mais. Segundo a conta apresentada pela deputada do CDS, Cecília Meireles, Vieira é o segundo devedor do Novo Banco que mais perdas gerou para o Fundo de Resolução — 181 milhões de euros.
Este valor inclui 160 milhões de euros em VMOV (valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis) emitidos pelo grupo Promovalor, e subscritos pelo BES (e que fazem parte da herança tóxica que passou para o Novo Banco). Estes VMOC vencem em agosto deste ano, dando direito ao Novo Banco de entrar como acionista das empresas imobiliárias de Vieira. Mas a Promovalor e a Inland foram esvaziadas dos seus ativos que foram transferidos para um fundo que é já é detido — mas não gerido pelo Novo Banco.
O banco já reconheceu a perda com os VMOC, mas a conta dos créditos de Vieira para o Novo Banco corre o risco de aumentar por via da dívida de 270 milhões de euros que em 2018 foi transferida para um fundo de investimento. A exploração dos imóveis que passaram para um fundo de investimento alternativo especializado (FIAE) deveria gerar receita para pagar ao Novo Banco, mas já se sabe que por causa da pandemia e outras vicissitudes, o fundo vai falhar o reembolso previsto. Esta reestruturação não passou pelo crivo do Fundo de Resolução que pediu uma auditoria independente à gestão dos créditos de Vieira. A auditoria estará na fase final e ainda não chegou à comissão de inquérito.
A gestão do FAIE foi entregue à C2 Capital Partners, uma das sociedades que foi alvo de buscas esta quarta-feira. Esta gestora é detida por Nuno Gaioso Ribeiro, antigo vice-presidente do Benfica, e a sua escolha foi mais ou menos imposta ao credor pelo devedor, Vieira, como admitiu António Ramalho, presidente do Novo Banco no Parlamento. Vieira foi acionista da C2 Capital Partners e o filho Tiago ainda estava no capital quando foi feito o acordo com o Novo Banco. Vendeu entretanto.
Na comissão de inquérito também ficou claro que a proposta de reestruturação da dívida de Vieira assinada em 2017 através da criação de um fundo chegou ao Novo Banco por intermédio de Nuno Gaioso Ribeiro. Vieira também tem um aval pessoal associado a esta dívida que pode vir a gerar mais perdas para o Novo Banco, para além das já contabilizadas. Mas Ramalho também avisou que executar o aval de Vieira seria pior e até o Banco de Portugal o reconheceu. “O aval vale mais não executado”. O presidente do Novo Banco assegurou ainda que a reestruturação permitiu reforçar as garantias do Novo Banco, dando acesso a propriedades no Brasil e em Moçambique que estavam fora da alçada do banco.
Luís Filipe Vieira é suspeito de burla qualificada ao Fundo Resolução. Ou seja, terá alegadamente tentado enganar o Novo Banco nas garantias que ofereceu para pagamento dos créditos em dívida, sendo que as perdas que são geradas por esses créditos ao grupo empresarial de Vieira são pagos com fundos públicos do Fundo de Resolução ao abrigo do mecanismo de capital contingente acordado entre o Estado e a Lone Star aquando da venda da maioria do capital social do banco àquele fundo norte-americano.
Logo, a entidade prejudicada da alegada burla qualificada é o Fundo de Resolução. Ou seja, os contribuintes que financiam o Fundo de Resolução.
Daí o comunicado do DCIAP sobre a detenção de Vieira falar em alegados ilícitos criminais em “negócios e financiamentos” superiores a “100 milhões de euros” que terão levado a “elevados prejuízos para o Estado e para algumas das sociedades”. O Estado é claramente um dos prejudicados.
Os problemas judiciais de Luís Filipe Vieira
Os problemas de Luís Filipe Vieira já tinham sido um dos grandes temas da última campanha eleitoral do Benfica, na qual Vieira foi eleito em outubro de 2020 com 62,59% dos votos para um sexto mandato consecutivo. Na realidade, os problemas judiciais já remontam a 2015 e já levaram inclusive a uma acusação formal em setembro de 2020 contra Vieira pela alegada prática do crime de recebimento indevido de vantagem, com o Benfica à mistura.
A acusação foi deduzida pela procuradora-geral adjunta Maria José Morgado na chamada Operação Lex. Estava em causa a promessa de um cargo no Benfica e a alegada oferta de viagens ao juiz desembargador Rui Rangel — o principal arguido deste caso, que foi inclusivé expulso da magistratura judicial antes de ter sido formalmente acusado — para assistir a jogos internacionais do clube da Luz.
Em troca, o desembargador terá alegadamente tentado desbloquear um processo administrativo relacionado com um contestação fiscal de uma empresa de Luís Filipe Vieira. O processo ainda está em fase de instrução criminal.
Pelos mesmos factos, o Ministério Público acusou igualmente Fernando Tavares, ex-vice-presidente do Benfica, do mesmo crime em regime de co-autoria com Vieira.
Outro caso que levou a uma acusação formal, não contra Luís Filipe Vieira mas sim contra o seu braço-direito Paulo Gonçalves, foi o chamado caso e-toupeira. Assessor jurídico do presidente Vieira para casos de contratação de jogadores e não só, Paulo Gonçalves foi acusado da prática de corrupção ativa, oferta indevida de vantagem e de 28 crimes de falsidade informática por ter oferecido bilhetes e camisolas do Benfica a um funcionário judicial que tinha acesso ao sistema informático do Ministério Público e o informaria antecipadamente de certas ações judiciais contra e sobre o clube ou os adversários.
Toupeira acedeu mais de 600 vezes a processos criminais em segredo para ajudar o Benfica
Em troca, não só Paulo Gonçalves ficou a saber o estado dos processos judiciais abertos na 9.ª Secção do DIAP de Lisboa contra o Benfica e clubes rivais, como também terá acedido a informação pessoal da segurança social e fiscal de árbitros e de outros agentes do futebol.
A SAD do Benfica foi igualmente acusada, por ter alegadamente beneficiado do acesso a informação privilegiada de processos em segredo de justiça que terá utilizado em seu benefício desportivo, mas o Tribunal Central de Instrução Criminal não deu isso como suficientemente indiciado e apenas pronunciou para julgamento Paulo Gonçalves.
O caso dos vouchers: o início do cerco
O cerco judicial a Luís Filipe Vieira iniciou-se em outubro de 2015 com uma denúncia de Bruno Carvalho. Num programa de televisão, o então presidente do Sporting acusou o Benfica de oferecer refeições no Museu da Cerveja no Estádio da Luz a equipas de arbitragem, observadores e delegados dos jogos da I Liga que podiam valer “entre 500 a 600 euros”.
Após investigações disciplinares dos órgãos da Federação Portuguesa de Futebol e da Liga de Clubes, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária fez buscas em outubro de 2016 ao Estádio da Luz.
Mais tarde, o Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa promoveu a junção desse processo com outro inquérito semelhante, conhecido como o caso dos emails.
Pelo meio, Luís Filipe Vieira também foi teve direito a um arquivamento. Aconteceu no chamado caso BPN, no qual era suspeito de alegada burla qualificada, falsificação de documento e branqueamento de capitais mas no qual o Ministério Público, após uma longa investigação, concluiu que não existiam indícios da prática de crime por parte do líder do Benfica e arquivou o processo. Estava em causa um crédito de 17,4 milhões de euros que o BPN tinha concedido à empresa Inland e Vieira tinha mesmo chegou mesmo a ser constituído arguido.
O assistente Parvalorem, entidade pública que ficou encarregue de gerir os créditos do BPN nacionalizado em 2008, teve o mesmo entendimento e não deduziu acusação particular contra Vieira.
As suspeitas de corrupção desportiva
O caso dos vouchers e o caso dos emails, que também relatava alegadas ofertas do Benfica não só a agentes do futebol mas também a protagonistas do mundo da política e da justiça, foram só início das suspeitas de corrupção desportiva que vieram dar lugar a novas investigações.
Uma delas foi revelada pelo Observador e prende-se com um inquérito que reuniu suspeitas de dependência económica de pequenos clubes, como o Santa Clara e o Desportivo das Aves, face ao Benfica. O clube liderado por Luís Filipe Vieira é suspeito de promover transferências a custo zero e emprestar jogadores para aqueles clubes com o objetivo de conseguir alegadas vantagens desportivas. Ou seja, existem indícios da prática de corrupção desportiva, além de crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e participação económica em negócio.
No centro dessa suspeita, que está a ser investigada num inquérito que reúne os casos Mala Ciao, emails e vouchers (todos envolvendo o Benfica), está um complexo esquema do clube da Luz e com Luís Filipe Vieira no centro do mesmo. Com recurso a empréstimos e a transferências em alegadas condições de favor, o DCIAP e a PJ suspeitam que o presidente benfiquista estaria a par deste esquema. Santa Clara e Desportivo das Aves, além de outros clubes, são alguns dos que estão sob suspeita.
O DCIAP e a PJ estão igualmente a investigar o pagamento de comissões a Paulo Gonçalves, ex-diretor jurídico do Benfica que foi acusado no caso e-toupeira e é uma figura muito próxima de Vieira, em várias transferências que envolvem igualmente o Benfica.
O conhecimento que Luís Filipe Vieira terá sobre as alegadas tentativas de suborno de vários jogadores do Rio Ave e do Marítimo durante a época 2015/2016 por parte do agente César Boaventura é outra das matérias relevantes nas investigações ao Benfica. Há três jogadores do Rio Ave que já confirmaram à PJ propostas que terão recebido do empresário, sendo que em várias dessas abordagens Boaventura terá mesmo invocado o nome do presidente do Benfica.
E ao fim de todos estes casos, Luís Filipe Vieira foi detido esta quarta-feira, 7 de julho de 2021. É uma data (negra) que ficará registada na história do Benfica: pela primeira vez, um presidente benfiquista em exercício de funções foi detido por suspeitas de alegadas irregularidades no exercício do cargo.