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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Carlos Peixoto, deputado do PSD, foi relator de um parecer sobre um projecto do BE para extinguir os Vistos Gold quando era consultor de uma sociedade de advogados que trabalha com os próprios Vistos Gold. Catarina Martins, do Bloco, a propósito de alterações legislativas sobre o alojamento local, não divulgou que o marido detém um negócio de alojamento local. Pedro Siza Vieira, ministro do Governo PS, acumulou o exercício das funções governativas com a gerência de uma empresa imobiliária. Já depois de ter assumido a tutela da Economia, soube-se que a sua mulher era presidente de uma associação que representa interesses directos no sector do turismo. Ferreira do Amaral, antigo ministro das Obras Públicas num Governo PSD, assumiu funções executivas na Lusoponte. Jorge Coelho, também ex-responsável pela pasta num Governo do PS, seguiu o mesmo caminho na Mota-Engil. Pina Moura, que tutelou a pasta da Economia, seguiu-lhes os passos, desta vez na Iberdrola. Se quisermos abranger outras situações relacionadas com a questão da ética governamental, em geral, poderíamos até abordar a questão das moradas falsas oferecidas por alguns deputados, pela marcação de presenças falsas no Parlamento, pelo duplo pagamento de viagens aos Deputados ou, até, aos muito discutidos casos de nepotismo, de que Carlos César, presidente do PS, tem sido sucessivamente acusado na comunicação social.
Estes casos reais constituem situações amplamente divulgadas em que o conflito de interesses é aparentemente evidente. No entanto, há sempre quem conteste essa evidência e, na prática, as acusações de conflito de interesses acabam geralmente arquivadas na gaveta.
Os conflitos de interesses no exercício de cargos públicos são um tema tão polémico que, possivelmente, a melhor forma de começar é pela conclusão: ninguém parece saber ao certo o que é um conflito de interesses, apesar dos esforços que, como veremos, várias entidades nacionais e internacionais têm encetado para combater o fenómeno. Olhando às definições existentes, o que são, então, “conflitos de interesses”? A OCDE, no Guia para a Gestão de Conflitos de Interesse no Serviço Público, define-os como as situações que envolvem um conflito entre o dever público e o interesse privado de um determinado oficial público, nas quais os seus interesses privados podem influenciar indevidamente a sua actuação enquanto agente público. O Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC) dá mais uma ajuda com esta brochura: conflito de interesses é uma situação gerada pelo confronto entre interesses, ou pelo acesso a informação privilegiada, que possam comprometer a isenção das decisões e/ou que venham a afectar o interesse colectivo ou o influenciem.
Dito assim, parece tudo claro. E é, no papel. Mas, na prática, não parece especialmente evidente para os agentes públicos e para tantos privados que se têm visto envolvidos em situações deste género. Talvez seja oportuno simplificar. A tal brochura do CPC facilita a compreensão com exemplos: há conflito de interesses quando o professor tem o filho como aluno? Quando o médico do SNS recomenda a realização de análises no laboratório privado de que é proprietário? Quando o auditor do Tribunal de Contas audita as contas da autarquia onde a mulher é vereadora? Quando o ministro que, depois de sair do Governo, aceita ser CEO de uma empresa da área que tutelava? Quando o técnico elabora projectos para aprovação pelos serviços onde exerce funções? Quando o deputado propõe um projecto de lei sobre privilégios especiais para alunos federados e que tem amigos cujos filhos são atletas federados? Se respondeu “não” a alguma destas respostas, é possível que esteja a precisar de orientação. Este ensaio foi escrito a pensar em si.
O que são, afinal, conflitos de interesses?
Como vimos, a resposta pode parecer óbvia, mas a prática diz-nos que não o é. Já avançámos com a definição da OCDE para aquilo a que se chama “real conflito de interesses” e para a forma simples a que o CPC recorreu para sensibilizar a sociedade civil. Mas têm sido vários os organismos a formular definições que, mais ou menos, acabam todas por significar o mesmo, e que o CPC, mais uma vez, sintetizou de forma clara e simples na sua Recomendação de 7 de Novembro de 2012:
«Na linha das noções que têm sido apresentadas pelos principais organismos internacionais, como a ONU, a OCDE e o GRECO (Conselho da Europa), o conflito de interesses no sector público pode ser definido como qualquer situação em que um agente público, por força do exercício das suas funções, ou por causa delas, tenha de tomar decisões ou tenha contacto com procedimentos administrativos de qualquer natureza, que possam afectar, ou em que possam estar em causa, interesses particulares seus ou de terceiros e que por essa via prejudiquem ou possam prejudicar a isenção e o rigor das decisões administrativas que tenham de ser tomadas, ou que possam suscitar a mera dúvida sobre a isenção e o rigor que são devidos ao exercício de funções públicas.
Podem igualmente ser geradoras de conflito de interesses, situações que envolvam trabalhadores que deixaram o cargo público para assumirem funções privadas, como trabalhadores, consultores ou outras, porque participaram, directa ou indirectamente, em decisões que envolveram a entidade privada na qual ingressaram, ou tiveram acesso a informação privilegiada com interesses para essa entidade privada ou, também, porque podem ainda ter influência na entidade pública onde exerceram funções, através de ex-colaboradores.»
A OCDE adianta também que se pode falar em conflito de interesses aparente e potencial quando parece que os interesses privados de um agente público podem influenciar indevidamente o desempenho das suas funções públicas, mesmo quando esse ainda não é efectivamente o caso. Ou seja, mesmo um conflito potencial não deixa de ser um caso de conflito de interesses só porque o agente em causa optou, até ao momento, por não efectivar o conflito de interesses real. Como escreveu o Luís Aguiar-Conraria, aqui no Observador, “a palavra-chave é ‘podem’. O conflito existe quer a pessoa actue indevidamente ou não. (…) A área da regulação é uma das poucas onde se aplica a máxima de que ‘não basta ser-se sério, é preciso parecê-lo’.”
Desta perspectiva, na verdade, este tema aparenta ser de fácil perceção e abordagem, uma vez que todas as questões suscitadas pelo debate da ética governamental parecem ser facilmente resolvidas com bom senso ou com a existência de um mínimo de pudor, que naturalmente deveria existir no comportamento dos agentes públicos. Porém, as coisas são o que são e não como deveriam ser. E, como se sabe, este é um assunto difícil, de regulação complexa e que tem tido pouco debate na sociedade civil, que se tem limitado à discussão de casos pontuais, mais virada para o jogo partidário do que propriamente para a resolução de fundo do problema. Procurando fugir aos casos concretos, vejamos, então, o que está em causa, o que existe e o que há ainda por fazer.
Portugal: está tudo por fazer?
Não está tudo bem, nem está tudo por fazer. O ordenamento português possui diversos mecanismos de enquadramento das questões da ética governamental. Legislação e recomendações não faltam: desde logo, a Constituição, no que diz respeito à responsabilidade, aos estatutos e ao regime dos funcionários da Administração Pública; o Código de Procedimento Administrativo; o Regime de Incompatibilidades do pessoal de livre designação por titulares de cargos políticos; o Regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos; o Estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado; o Estatuto do gestor público; o Regime de vinculação de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exerçam funções públicas; o Estatuto disciplinar dos trabalhadores que exercem funções públicas; ou até a própria criação do Conselho de Prevenção da Corrupção, que tem encetado grandes esforços na prevenção de conflitos de interesses no sector público, por exemplo, através da Recomendação de 2012 que se mencionou anteriormente.
Além disso, desde 1993 que o Presidente da República, os membros do Governo e os Deputados são obrigados a preencher um Registo de Interesses, regulamentado pelo Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, que consiste na inscrição de todas as actividades susceptíveis de gerarem incompatibilidades ou impedimentos e quaisquer actos que possam proporcionar proveitos financeiros ou conflitos de interesses.
Agora vêm os problemas. Sucede que a instituição que controla e regula a entrega dos Registos de Interesses é a Comissão de Ética da Assembleia da República – ou seja, são os Deputados que se fiscalizam a si próprios, bem como aos membros do Governo, que, regra geral, se encontram de alguma forma relacionados com os partidos que, por sua vez, elegem os Deputados. Parece tudo transparente, até pode ser que tudo seja transparente, mas subsistem razões para que se possa acreditar que se houver vontade de contornar o sistema, tal não trará também grandes dificuldades. Talvez algo aqui explique o facto de a Comissão de Ética nunca sancionar ou identificar conflitos de interesses no seio dos Deputados.
Já em 2008, o Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO) dizia que Portugal apresentava um conjunto satisfatório de medidas susceptíveis de acautelar os riscos relacionados com situações de conflitos de interesses. No entanto, talvez seja de recuperar o que já dissemos relativamente ao tema do combate à corrupção: não, não estamos mal, mas podíamos estar melhor. E, sobretudo, estamos parados. Veja-se porquê.
Na já mencionada Recomendação de 2012, o CPC considerava fundamental reforçar o sentido e o alcance das medidas tendentes a uma cultura administrativa de rigor e transparência no domínio dos conflitos de interesses no sector público, reconhecendo que ainda muito estava por fazer, e que este é um tema que carece de permanente acompanhamento e actualização. Assim, o CPC recomendou que os gestores e órgãos de direcção de todas as entidades do sector público criassem e aplicassem nas suas organizações medidas que prevenissem a ocorrência de conflitos de interesses. E não foram poucas as sugestões: criação de manuais de boas práticas e códigos de conduta, identificação de situações que possam dar origem a conflitos de interesses ou promoção de uma cultura organizacional intolerante a conflitos de interesses.
Apesar da boa vontade teórica do CPC, os resultados práticos da Administração têm roçado a mediocridade. Em 2015, o CPC divulgou os resultados de um questionário feito a mil entidades que gerem património e dinheiro públicos e que tinham apresentado planos de prevenção de riscos de corrupção: 49,8% das entidades revelava que apenas estava a pôr em prática metade das medidas do plano; 50,5% das entidades não elaborava periodicamente relatórios da execução dos planos; 54,3% não tinha actualizado o plano; 52,7% admitia que a frequência para essa actualização não estava estipulada e 57,4% afirmava que não estava definido o responsável pela tarefa. Em suma: além dos argumentos que lamentam a falta de indicações sobre o que fazer, as entidades adiantaram ainda que as suas maiores dificuldades se relacionavam com a escassez de meios, a ausência de funcionários com conhecimentos ou competências técnicas específicas para acompanhar a prevenção de riscos. Mário Gomes, num trabalho de pós-doutoramento da Universidade Aberta, constatou também que apenas 60% das entidades tinha definido medidas específicas relacionadas com a prevenção dos riscos associados aos conflitos de interesses e que os documentos eram, na generalidade, muito incompletos e que muitas entidades nem os divulgavam na internet, pelo que a transparência dos mesmos era praticamente nula.
Mais recentemente, em Abril de 2018, o CPC apresentou as principais conclusões de um estudo sobre Gestão de Conflitos de Interesses no Sector Público: praticamente metade das entidades públicas que responderam ao inquérito não tinha códigos ou manuais de conduta e ética. Além disso, constatou-se também que 25% dos organismos não previa medidas específicas para gerir conflitos de interesses e 88% reconhecia não dispor de quaisquer medidas relativamente ao período que sucede o exercício de funções públicas. Uma constatação algo estranha foi ainda o facto de nenhuma das entidades ter detectado qualquer ocorrência de situações de conflitos de interesses em cinco anos, entre 2012 e 2017, apesar de dezenas de vezes por ano a comunicação social nos dar conhecimento de situações do género.
Lá está: não estamos mal em termos de produção legislativa, não estamos bem em termos de aplicação prática das medidas e, sobretudo, temos feito muito pouco por melhorar. A legislação é abundante, e, como disse o GRECO, satisfatória. Mas é possível que a letra esteja morta. Faltam meios, faltam recursos, falta formação, faltam conhecimentos e falta, o que não é menos importante, vontade.
Por que razão nunca há conflitos de interesses no Parlamento?
O problema de raiz já foi anunciado: os deputados funcionam como juízes em causa própria, o que explica que, apesar das várias situações em que parece existir conflito de interesses, os deputados decidam sempre que não. Num trabalho final de mestrado, Bruno Mesquita dissertou sobre o tema dos conflitos de interesses na XII Legislatura (2011-2015), um trabalho muito completo e que ajuda a compreender o que se passa globalmente na Assembleia da República relativamente a esta matéria, do qual salientamos aqui alguns aspectos.
Começando pelo exemplo que, desde logo, é oferecido pelos partidos com assento parlamentar, na sua organização interna, e procurando saber se as normas internas dos partidos prevêem a possibilidade de existência de conflitos de interesse ou se admitem sanções a aplicar, o cenário é desolador. O PCP esclarece que os seus Deputados têm o dever político e moral de prestar contas da sua actividade e de manter sempre os seus mandatos à disposição, que devem empenhar todos os esforços e capacidades na defesa dos interesses do povo e de informar os eleitores da sua actividade e que, no desempenho dos cargos para que foram eleitos, os membros do partido não devem ser beneficiados nem prejudicados financeiramente por tal facto. O PS apenas faz referência a uma situação de acumulação de cargos, mas internos. O PSD estabelece a regra que proíbe a aceitação de lugares no Estado ou nas autarquias locais ou de nomeação para funções governamentais fora dos termos dos seus Estatutos. O BE, o PEV e o CDS não têm quaisquer mecanismos normativos sequer semelhantes.
É, porém, o Estatuto do Deputado que traça as linhas de orientação que os membros do Parlamento devem seguir no exercício das funções parlamentares. Assim, a regra é a de que os Deputados podem exercer quaisquer outras actividades, desde que não seja posto em causa o regular cumprimento dos seus deveres parlamentares. O Estatuto parece até indicar o caminho da dedicação exclusiva ao Parlamento, quando salvaguarda a dispensa dos Deputados de todas as actividades públicas e privadas em paralelo com a de Deputado, mas o legislador não quis ir além disto. Assim, os deputados não podem, com a excepção dos casos de docência ou investigação a título gratuito, ser funcionários do Estado. Também não podem ter qualquer participação nos conselhos de gestão de empresas públicas ou de capitais públicos ou de participação maioritária do Estado, nem ser membros de órgãos de pessoa colectiva concessionária de serviço público, nem ser perito ou árbitro remunerado em processos em que o Estado seja parte, nem exercer cargos de nomeação governamental sem autorização da comissão parlamentar. Não podem, também, celebrar contratos com o Estado e demais pessoas colectivas públicas, nem beneficiar pessoal e indevidamente de actos ou tomar parte de contratos em que intervenham órgãos e serviços sob sua influência. Ora, como salienta Bruno Mesquita, estas últimas são das questões mais polémicas e contestadas e que carecem de um maior controlo prático.
No estudo, concluiu-se que, dos 306 Deputados que passaram pela XII Legislatura, cerca de 94% entregaram o seu registo de interesses – houve 18 que o recusaram, o que, legalmente, não implica qualquer sanção. No mesmo período, foram declarados 1261 potenciais conflitos de interesse, ou seja, 4,12 conflitos, em média, por cada Deputado. PS e PSD são os partidos que apresentam um maior número de conflitos potenciais, sendo que só o PSD representa 56% do total parlamentar (o PS representa 25%, o CDS 14%, a CDU 3% e o BE 1,5%).
Como se adiantou, a situação no Parlamento torna-se grave por dois motivos: primeiro, porque os mecanismos legais de prevenção e penalização de situações de conflitos de interesse não são suficientes; segundo, porque os Deputados se encontram em auto-regulação e legislam sobre si próprios. Uma das soluções propostas por Bruno Mesquita passa por retirar do espectro do Parlamento a resolução destes conflitos e por contratar especialistas externos ao sistema político-partidário para regular e fiscalizar potenciais conflitos de interesse, à semelhança do que fizeram o Canadá e o Reino Unido. Mais uma vez, é possível encontrar soluções. Mas é preciso existir vontade para as implementar.
Como fazem os outros países?
Como em todos os assuntos que vão provocando alguma indignação, gera-se muitas vezes a ideia de que Portugal é um caso raro no que diz respeito a casos de falhas nos processos de ética governamental. Mas, como sempre, o problema não é exclusivamente nosso e não nasceu ontem.
Para não irmos mais longe no tempo, recorde-se o caso dos Estados Unidos da América: apesar de terem sido pioneiros na abordagem deste tema, foi por não terem acautelado os conflitos de interesses que existiam na esfera de representantes públicos e até Presidentes, que eram legisladores e grandes proprietários de plantações, que os Estados Unidos acabaram por não resolver pacificamente a questão da escravatura e entrado em guerra civil. Já no século passado, o problema dos conflitos de interesses manteve-se ao longo das presidências de Hoover, Eisenhower ou Truman. Só com Kennedy, em 1962, é que se reorganizou a regulamentação relativa aos conflitos de interesses, numa altura em que boa parte do quadro normativo já tinha mais de um século de existência. Nessa altura, ampliaram-se os tipos de assuntos governamentais em que podiam surgir conflitos de interesses e quais deles seriam proibidos. Foi também criada uma categoria de funcionários especiais do governo, que abrangeu um crescente número de pessoas que podia trabalhar parcialmente para a administração como consultor sem que os seus trabalhos do dia-a-dia fossem postos em causa. Já depois de Watergate, foi criado em 1978 o Office of Government Ethics (OGE), uma agência independente do poder executivo, responsável por orientar as políticas relacionadas com a prevenção de conflitos de interesse por parte das administrações e funcionários do poder executivo federal. Criado ao abrigo do Ethics in Government Act, esta agência fazia parte do Office of Personnel Management, mas desde 1989 que foi dele separada.
O director do OGE, por exemplo, chegou a criticar a forma como Donald Trump manteve o seu império empresarial passando-o para a esfera dos filhos, quando a atitude correcta seria o presidente eleito vender seus activos e depositar os lucros num chamado “fundo cego”, aprovado pelo OGE. Donald Trump é, aliás, um Presidente envolvido em inúmeros casos de conflitos de interesses, o que ainda poderá vir a ser avaliado pelo Supremo Tribunal. Isto porque nos EUA há, efectivamente, mecanismos e uma tradição de controlo judicial destas questões – e era também isto que estava em causa com a nomeação do juiz Kavanaugh para o Supremo.
Como se disse anteriormente, no Reino Unido a regulação e fiscalização de conflitos de interesses é executada por agentes externos ao sistema político-partidário sendo que, ainda no âmbito do Parlamento, estas questões são reguladas por um Código de Conduta próprio. A propósito do registo de interesses dos membros do Parlamento, é muito interessante analisar e comparar o caso britânico com o português: neste último, não são só os cargos que se registam e aos quais se dá a devida publicidade, mas também as quantias que receberam por determinados trabalhos que tenham efectuado. Um Deputado britânico pode perfeitamente ter na sua folha pública de registo de interesses a indicação de que deu um parecer sobre um determinado tema, que o vendeu a uma certa empresa e que por ele recebeu determinada quantia monetária. Ou seja, no caso britânico, exige-se um grau de transparência mais elevado, que posteriormente possibilita um escrutínio mais fino dos casos que, efectivamente, constituem conflito de interesses.
Ao contrário do que se possa pensar, porém, Portugal é dos países da União Europeia com maior densidade regulatória a este respeito, sobretudo na regulação dos conflitos de interesses no exercício da actividade parlamentar ou na prevenção de situações de “portas giratórias”, ou seja, de pessoas que circulam entre os sectores público e privado, nas mesmas áreas de actividade. Com efeito, somos um dos países europeus que configura, através da lei, um maior “período de nojo” relativamente ao exercício de funções no sector privado a antigos actores políticos. Vejamos: por cá é regulado o regime de incompatibilidade dos Deputados com actividades profissionais, sendo o restante não regulado. Na Alemanha, a maioria das actividades e cargos são regulados por meio de regras de incompatibilidades durante o exercício do mandato, através de legislação combinada com códigos de ética. Em Espanha, todas as actividades são reguladas por legislação constitucional ou ordinária. Em Itália, a maioria das actividades profissionais não são reguladas, sendo que as actividades políticas externas, os cargos honorários e o regime de incompatibilidades dos Deputados são regulados por legislação ordinária. E, como se disse, mesmo em termos de regulação das chamadas situações de “portas giratórias”, só a França se nos equipara em termos de duração dos “períodos de nojo”. Já na Dinamarca, caso de sucesso no combate à corrupção, não existe regulação específica sobre incompatibilidade de cargos e actividades profissionais, por exemplo, é a legislação comum que regula as declarações de interesses financeiros e o seu ordenamento jurídico não cuida especialmente da questão das “portas giratórias”.
Há, neste assunto, uma evidente questão cultural que não torna uns países impolutos e os outros corruptos, mas que ajuda a perceber por que razão uns têm melhores resultados com menos legislação que os outros. Insista-se, pois, neste ponto: Portugal, quando comparado com os restantes países europeus, não tem défice de legislação. Tem, sim, falhas substanciais ao nível da fiscalização, do controlo jurisdicional e, também, da forma como a sociedade civil tem por hábito abordar estes temas.
O que concluir? Que as soluções existem, mas que não há vontade de as implementar
Os casos que têm vindo a público têm sido tratados na comunicação social, que os tem fiscalizado. Mas o ordenamento parece ser insuficiente (apesar de ser bastante extenso), de reduzida aplicação prática, deixando-se aos actores uma grande margem para agir e para elaborar teses ou narrativas sobre o que é ou não legítimo – possibilitando sempre uma enorme margem para o crescimento da descrença no sistema político e partidário e na democracia.
Vejam-se os casos de nepotismo que têm surgido em vários sectores do Estado, de incompatibilidades que atingiram ministros, de interacções duvidosas de agentes públicos com privados, como no caso das viagens, ou até dos já famosos casos de incompatibilidades evidentes que se têm manifestado na sequência do desempenho de funções públicas, como nos casos em que titulares de pastas ministeriais acabam por desempenhar, posteriormente, funções em entidades privadas cuja actividade tutelavam.
É por isto que se torna fundamental criar respostas, em democracia, a um problema que toda a sociedade encara como sério e real e a que, até hoje, os entes públicos têm posto de lado, criando enquadramentos a que, depois, se incumpre sem consequências. Por exemplo, o Governo criou um código de conduta, é certo. Porém, o mesmo não se tem revelado outra coisa que não inútil, o que seria de esperar de um documento que foi produzido em cima de uma polémica, sem reflexão, sem estudo e sem diálogo, servindo apenas para silenciar uma indignação que tomou proporções politicamente insuportáveis. A Assembleia da República também está há anos a trabalhar num conjunto de medidas de reforço da transparência, sem resultados visíveis e sem conclusões. Parece, e é, uma questão difícil de ultrapassar, e a sensação com que se fica é sempre a de que não se faz melhor porque não interessa a ninguém que se faça. Mas importa, pelo menos, debater e lançar ideias.
Em primeiro lugar, é fundamental reconhecer que, por mais e melhor legislação que exista, os sistemas não são infalíveis e que haverá sempre quem os tente contornar. Nesta matéria, como no combate à corrupção, em geral, é importante que se tenha a perfeita consciência de que não há soluções perfeitas e de que só alguém intelectualmente desonesto as prometerá. Também neste ensaio não se pretende descobrir a pólvora, até porque muitas soluções já têm sido propostas – só não têm sido aplicadas e é, sobretudo, para isso que se aponta.
Em segundo lugar, há que assumir que a legislação que existe é suficiente em quantidade, mas parca em qualidade e em capacidade de aplicação prática. O CPC tem insistido na implementação de medidas de cariz não normativo às quais as entidades públicas não têm dado resposta – o que é cada vez mais difícil de aceitar ou compreender. A aposta na formação,no controlo externo e na criação de mecanismos eficientes de fiscalização e de tutela jurisdicional de situações de conflitos de interesses ou de “portas giratórias” parece ser o caminho a seguir. Mais uma vez, não é preciso inventar nada. Basta cumprir com o que tem sido recomendado e olhar para os melhores exemplos que existem noutros países.
Em terceiro lugar, é fundamental que os partidos encarem a matéria do conflito de interesses como sendo essencial para a saúde da democracia e para a sobrevivência dos próprios partidos. Sendo que são estes quem tem poder para legislar sobre a sua própria actividade, é a estes que deve ser exigida a responsabilidade pelo aperfeiçoamento do ordenamento que rege a matéria de conflitos de interesses.
Terá algum partido, no quadro parlamentar actual ou futuro, a determinação necessária para avançar, por exemplo, com a regulação e fiscalização externa dos seus eleitos? Este é o grande desafio político que aqui está em causa.
Nuno Gonçalo Poças é advogado e foi assessor no XIX Governo. Escreve no Observador sobre o sistema político e a justiça.