De “supremacista” a “colonialista”, Nicolás Maduro chamou de tudo um pouco à União Europeia (UE). Foi assim que o ditador venezuelano reagiu à notícia de que o Conselho Europeu tinha elevado para 36 a lista de nomes de personalidades do regime chavista alvos de sanções por “ações e decisões graves que prejudicam a democracia, o Estado de direito e os direitos humanos”.
“Quem são eles para sancionar? Quem são eles para se imporem com ameaças? Quem são? Já basta! Já basta”, disse, a 29 de junho. E, depois, deu a notícia que viria a marcar os próximos dia: “Decidi dar 72 horas à embaixadora da UE em Caracas para que abandone o nosso país”.
#EnVideo ????| Presidente de Venezuela, @NicolasMaduro, ordena a la embajadora de la Delegación de la Unión Europea en Caracas (@EmbajadoraUECCS) abandonar el país en un plazo de 72 horas "para exigir respeto a la UE. ¡Ya basta de colonialismo contra Venezuela!" pic.twitter.com/8IurWAmswq
— VTV CANAL 8 (@VTVcanal8) June 29, 2020
Em causa estava Isabel Brilhante Pedrosa, diplomata de carreira de nacionalidade portuguesa que, desde maio de 2017, é embaixadora da UE em Caracas. A reação por parte de Bruxelas não demorou muito. O Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros, o espanhol Josep Borrell, reagiu com uma promessa: “Tomaremos as medidas necessárias habituais de reciprocidade”.
Condenamos y rechazamos la expulsión de nuestra embajadora en Caracas.Tomaremos las medidas necesarias habituales de reciprocidad. Sólo una solución negociada entre Venezolanos permitirá al país de salir de su profunda crisis.
— Josep Borrell Fontelles (@JosepBorrellF) June 30, 2020
Cada um dos lados parecia preparado para um violento embate. Não seria o primeiro (em 2019, o embaixador da Alemanha foi declarado persona non grata durante quatro meses), mas seria sem dúvida o mais grave entre a Venezuela e o conjunto dos países da UE. Mas se, de fora, o choque parecia inevitável, nos canais diplomáticos ouviu-se um travar a fundo. Quase no final das 72 horas anunciadas por Nicolás Maduro, foi anunciado desde Bruxelas que o ministro dos Negócios Estrangeiros da Venezuela, Jorge Arreaza, tinha decidido retirar a ordem de expulsão de Isabel Brilhante Pedrosa.
A Covid-19 deu a Maduro a Venezuela com que sempre sonhou — mas a que vem aí pode ser um pesadelo
Estava resolvido: afinal, a embaixadora Isabel Brilhante Pedrosa continuaria em Caracas. “Celebro a decisão alcançada por Josep Borrell Jorge Arreaza”, reagiu no Twitter a diplomata portuguesa, que não respondeu aos pedidos de contacto para este artigo. De acordo com o comunicado de Bruxelas, Josep Borrell e Jorge Arreaza “concordaram quanto à necessidade de manter o marco das relações diplomáticas, especialmente nos momentos em que a cooperação entre ambas as partes pode facilitar os caminhos do diálogo político”.
Naquela resolução de paz notava-se, porém, uma ausência pouco pacífica: Juan Guaidó. Ou seja, o homem que vários países da UE reconhecem como Presidente interino da Venezuela, mas que, até hoje, não conseguiu ter mais poder e influência nas mãos do que uma ONG.
O dia em que Portugal (e não só) reconheceu Guaidó (e Maduro) como Presidente
Foi há quase 600 dias. A 4 de fevereiro de 2019, um total de 19 países da União Europeia (aos quais mais tarde se viriam juntar outros seis, fazendo um total de 25) reconheceu Juan Guaidó como Presidente interino da Venezuela com funções para convocar eleições.
As palavras utilizadas pela Europa fora foram praticamente as mesmas, para que não houvesse grandes equívocos. A partir de cada um daqueles países, chefes de governo e ministros dos Negócios Estrangeiros sublinharam a “legitimidade democrática” (Pedro Sánchez) de Juan Guaidó para “pôr a funcionar um processo eleitoral” (Emmanuel Macron) em “linha com a Constituição da Venezuela” (Heiko Maas). A estes juntaram-se outros chefes de governo e ministros dos Negócios Estrangeiros, entre os quais o português Augusto Santos Silva.
A partir do Palácio das Necessidades, o ministro dos Negócios Estrangeiros assumiu um “apoio político claro” a Juan Guaidó, reconhecendo-lhe “legitimidade” para assumir “o encargo de convocar, preparar e organizar eleições presidenciais livres, inclusivas e justas que decorram de acordo com os padrões internacionais aplicáveis”.
Horas mais tarde, Juan Guaidó viria a dizer à TVI que o apoio de Portugal era “uma posição muito poderosa e muito importante para a luta democrática que a Venezuela tem há anos”.
O que Juan Guaidó não comentou foi a outra metade da declaração de Augusto Santos Silva. Numa declaração que deu direito a perguntas dos jornalistas, o ministro dos Negócios Estrangeiros acrescentou que, apesar da “legitimidade” de Juan Guaidó, o Governo português iria continuar a lidar com as autoridades “de facto” — isto é, com o regime chavista e o seu líder, Nicolás Maduro, a quem Augusto Santos Silva se referiu como “Presidente”.
Volvidos esses cerca de 600 dias, o poder de Juan Guaidó em nada cresceu e as suas perspetivas de vir a substituir Nicolás Maduro no curto-médio prazo em tudo diminuíram. Embora seja reconhecido por um total de 58 países (a maioria na Europa e na América Latina), alguns dos quais receberam diplomatas em nome da Assembleia Nacional (AN) apenas reconhecida pela oposição, Juan Guaidó não conseguiu ser governo.
Tentou-o pela via pacífica (através de manifestações) e também pela via armada (da tentativa de golpe de abril de 2019, à qual Juan Guaidó se associou, à intentona militar com mercenários em maio deste ano, da qual se dissociou), mas até aqui esbarrou sempre no mesmo muro até agora incontornável: é Nicolás Maduro quem controla todas as alavancas do poder na Venezuela, desde uma economia débil a um exército com ele comprometido.
1,4 milhões de razões para não romper com Maduro e o embaixador chavista
A expressão latina “de facto” é chave — e, diz a expressão portuguesa, contra factos não há argumentos. É a essa a posição do Governo de Portugal em relação à disputa de poder na Venezuela, mantendo como principal foco da sua atuação a comunidade de emigrantes portugueses e também de luso-venezuelanos residentes naquele país da América do Sul — num total que em 2017 era de 1.426.336 pessoas, entre os quais 55.441 que nasceram em Portugal.
“O Governo português procura sobretudo acautelar da melhor maneira possível os interesses da vasta comunidade portuguesa que vive e trabalha na Venezuela”, diz ao Observador, por escrito, a diretora-geral de Política Externa do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), Madalena Fischer. “As principais preocupações são a segurança e o bem-estar da comunidade”, diz aquela diplomata de carreira, referindo iniciativas como “o envio de medicamentos através de canais próprios”, o financiamento a associações luso-venezuelanas e também o auxílio ao repatriamento de cidadãos portugueses e das suas famílias.
“Para tal, o Governo português continua a manter contactos com as instâncias que exercem o poder de facto na Venezuela, para tratamento das múltiplas questões que resultam dos referidos interesses nacionais naquele país”, explica Madalena Fischer.
Isto implica que, em Portugal, e à semelhança do que acontece em todos os países da UE, ainda seja reconhecido o embaixador designado pelo regime de Nicolás Maduro — trata-se de Lucas Rincón, militar que esteve ao lado de Hugo Chávez durante a tentativa de golpe de Estado em 2002 e que é embaixador em Lisboa já desde 2006. Contactada pelo Observador, a embaixada afeta ao governo de Nicolás Maduro remeteu o pedido de entrevista para o ministério competente em Caracas, mantendo-se até agora sem resposta.
À pergunta do Observador sobre quantas vezes é que o Governo de Portugal contactou com o embaixador chavista desde que foi assinalado o reconhecimento de Juan Guaidó como presidente interino, Madalena Fischer não responde diretamente. Refere apenas que esse contacto existe “com a regularidade e natureza que sejam necessários, consoante as questões que surjam, sejam elas de teor formal e substantivo”.
A tudo isto, Portugal soma a presença no Grupo de Contacto Internacional (GCI), organismo que junta vários países europeus e latino-americanos com o objetivo de sentar Nicolás Maduro e Juan Guaidó, ou as respetivas equipas, em espírito de negociação. Aqui, Madalena Fischer admite que os resultados são “assumidamente menos positivos”, mas sublinha que ainda assim o GCI mantém a sua relevância e objetivo: “A sua posição, não sendo de modo algum cega à realidade no país, procura sempre ser equilibrada, na busca de uma solução pacífica e inclusiva”.
Enviado de Guaidó em Portugal quer “expulsão dos diplomatas de Maduro”
José Rafael Cotts é, amiúde, descrito pelos media como o “embaixador de Juan Guaidó” em Portugal. Porém, é ele próprio quem corrige esse equívoco logo a abrir: “Eu sou reconhecido como representante da Assembleia Nacional”. Mas ele próprio abre espaço a alguma ambiguidade quando diz que “é como um embaixador”. “Quem me nomeia é o Estado que envia”, refere, apesar de o Estado venezuelano que Portugal reconhece ser aquele que é chefiado por Nicolás Maduro. “As relações diplomáticas são estabelecidas com Estados e não com Governos”, respondeu ao Observador Madalena Fischer quando questionada sobre a razão de Portugal reconhecer Lucas Rincón como embaixador da Venezuela.
Também ele diplomata de carreira, foi designado por aquele parlamento que na Venezuela o regime não reconhece desde 2016 e ao qual Juan Guaidó preside desde janeiro de 2019. É o primeiro posto que desempenha desde que fugiu da Venezuela em 2010, após ter sido “perseguido” por se ter juntado ao movimento de jovens, entre os quais Juan Guaidó, que iniciou uma série de manifestações contra o regime em 2007.
“Mais vale prevenir do que remediar”, pensou José Rafael Cotts à altura, quando viu várias pessoas à sua volta a serem presas sob acusações de terrorismo, entre outras. Mal pôde, pôs-se dentro de um avião e fugiu. “Fui para um sítio que não posso dizer qual há, porque ainda há quem use essa rota”, disse, referindo apenas que era uma ilha das Caraíbas. Daí, viajou para a Europa. Como representante da AN, garante que trabalha sem qualquer tipo de remuneração, referindo que vive das poupanças que fez ao longo da sua carreira diplomática de três décadas.
Destacado em Portugal desde fevereiro de 2019, José Rafael Cotts (que tem ascendência portuguesa e catalã) diz estar “contente” com a sua relação com o Governo de Portugal. “Portugal tem muito claro que o governo de Maduro é um governo de facto e não de jure. Caso contrário, não pedia eleições”, sublinha.
Mas, para lá de de Portugal, José Rafael Cotts insiste que é à União Europeia que tem de agir de maneira a pressionar o regime de Nicolás Maduro. “A UE tem de ter uma posição mais decidida, mais forte, com respeito às sanções individuais e de caráter económico”, exemplifica o representante da AN da Venezuela. Mais do que isso, porém, será difícil — isto porque o reconhecimento de Juan Guaidó ainda não é uma questão consensual dentro da UE, sobrando ainda a resistência de Itália e do Chipre entre o grupo dos 27.
De qualquer modo, José Rafael Cotts admite que à Europa cabe tomar uma medida clara: “Tem de começar a retirar o reconhecimento aos diplomatas de Maduro. Expulsá-los”. No caso particular Lucas Rincón, o embaixador venezuelano em Portugal, insiste: “Declará-lo non grato. E não continuar com o seu reconhecimento”. Essa expulsão, acredita José Rafael Cotts, “poderia prejudicar algumas empresas portuguesas que ainda está a trabalhar lá, mas não creio que afete os interesses da comunidade”. Isto, porque, sublinha, os portugueses já são de qualquer modo “dos mais afetados”. “O setor mais afetado na crise foi o alimentar, que era gerido sobretudo por portugueses e canários”, explica.
Porém, perante a possibilidade de declarar o atual embaixador da Venezuela persona non grata, também José Rafael Cotts sente que esbarra contra um muro que lhe diz que contra de facto não há argumentos. “Não é tão fácil quanto isso”, acaba por admitir.
“Aceitou-se viver dentro desta contradição”
Na sequência do incidente diplomático que foi a quase-expulsão da embaixadora da UE em Caracas, o Parlamento Europeu aprovou uma nova resolução de apoio a Juan Guaidó e condenação de Nicolás Maduro e do regime. A resolução foi aprovada por uma maioria que foi do centro-esquerda à direita e teve entre os seus relatores a eurodeputada do PSD Cláudia Monteiro Aguiar.
No plano nacional, refere a eurodeputada social-democrata, “tem de haver um diálogo mais profícuo e positivo entre Portugal” e Juan Guaidó. “Se aprovámos Juan Guaidó, temos de estar ao lado dos que lutam para uma situação política mais aberta e livre na Venezuela”, sublinha aquela eurodeputada, que foi co-relatora de um resolução de apoio a Juan Guaidó e oposição a Nicolás Maduro, que foi aprovada com votos do centro-esquerda à direita — no caso dos eurodeputados portugueses, contou com voto favorável do PS, PSD e CDS, e votaram contra os eurodeputados da CDU, do BE e também Francisco Guerreiro, deputado independente eleito pelo PAN.
A eurodeputada Cláudia Monteiro Aguiar insiste na necessidade haver um “posicionamento forte e vincado” por parte das instituições europeias e dos diferentes países da UE — mas trava a fundo quando lhe é perguntado se deve haver um corte de relações diplomáticas com Nicolás Maduro. “Não sei até que ponto deve ser um corte absoluto. Efetivamente, nós precisamos de ter uma voz que permita a defesa de quem está do outro lado”, acrescenta, referindo-se à comunidade luso-venezuelana — e esbarrando também ela no mesmo muro.
E é desse muro que dá conta Francisco Assis, ex-eurodeputado socialista que, no final do seu mandato, se destacou na defesa de Juan Guaidó e nas críticas ao regime venezuelano. Agora, há uma palavra que lhe ocorre para descrever o atual estado das coisas: “Contradição”. É isto que diz: “A contradição é reconhecer Guaidó, mas, no fundo, reconhecer como Presidente Maduro. Mas isso é o assumir da contradição e esse é talvez o primeiro problema desde o primeiro momento: aceitou-se viver dentro desta contradição”.