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O novo vírus que já matou pelo menos 26 pessoas e infetou 830 eclodiu numa cidade com mais residentes do que a população portuguesa. Miguel Matos vive no epicentro do surto, Wuhan, há um ano e meio. Quando viajou para o sul da China para um estágio em que ficaria nos 40 dias seguintes, o mundo ainda não sabia que uma nova estirpe de coronavírus iria motivar um alerta mundial. E “estava longe de imaginar” o cenário que iria encontrar.
Treinador de guarda-redes do Hubei Chufeng Heli, um clube de futebol chinês de terceira divisão, Miguel Matos, 43 anos, tinha uma viagem marcada para as Filipinas esta quinta-feira para celebrar por lá o Ano Novo chinês. Não vai acontecer. O governo chinês enviou uma mensagem aos 11 milhões de habitantes a pedir que se mantenham em casa o mais possível e que sigam as regras das autoridades, nomeadamente o uso de máscaras. Antes, a China já tinha suspenso todos os voos e comboios de e para Wuhan na esperança de travar o avanço da doença.
“A situação está mais assustadora e as pessoas estão assustadas”, descreve Miguel Matos ao Observador. Numa destas manhãs, quando saiu de casa para comprar “alguns bens essenciais”, os supermercados estavam “a abarrotar de gente”: “Conseguimos comprar alguma carne, alguns enlatados, umas massas e pão, mas já não conseguimos comprar legumes porque estava tudo esgotado”, conta.
À tarde, ao espreitar pela janela do apartamento em que vive, não viu quase ninguém. As ruas, antes “bastante agitadas e cheias de trânsito”, estavam “desertas”. “As pessoas estão a cumprir à regra aquilo que o governo pediu, para que as pessoas se mantenham em casa o máximo que conseguirem. As coisas estão controladas”, assegura ao Observador.
Miguel Matos é um dos 10 portugueses que vive atualmente em Wuhan. Antes do surto, pensava que eram apenas ele e os outros três portugueses com quem trabalhava no clube de futebol chinês. Agora, para facilitar a troca de informação, a comunidade criou um grupo numa aplicação de mensagens semelhante ao WhatsApp. Mantêm-se em contacto. Diz que “estão todos bem”.
Mas os casos não param de aumentar, o número de mortos também não, o contágio chegou a outras cidades chinesas (duas outras foram “encerradas) e há pelo menos sete países onde foram identificados doentes infetados. As últimas notícias dão conta de que a que começou por ser conhecida simplesmente como uma “doença misteriosa” pode ter chegado à Europa: há cinco estudantes chineses sob suspeita na Escócia.
Coronavírus. “Ainda não é uma emergência global de saúde”, diz OMS
O “paciente zero” do novo coronavírus
Zeng tinha 61 anos quando morreu, a 9 de janeiro deste ano. Tinha dado entrada pela primeira vez num hospital em Wuhan a 26 de dezembro com queixas de tosse forte que já se prolongavam havia uma semana. A partir desse dia, a saúde de Zeng piorou vertiginosamente, conta o The New York Times. A 27 de dezembro foi transferido para os cuidados intensivos, três dias depois foi ligado a um ventilador e logo a seguir foi levado para outro hospital porque precisava de uma máquina que lhe oxigenasse o sangue.
Nada resultou. Zeng foi a primeira vítima mortal de uma nova estirpe de coronavírus, o 2019-nCoV, que, apesar de já ter sido identificada em animais, nunca tinha sido detetada em humanos. Os primeiros casos de infeções com o novo coronavírus surgiram num grupo de 41 pessoas que tinha visitado um mercado de animais em Wuhan. Poucos dias depois, a comunidade científica já tinha sequenciado o material genético do vírus.
Essa informação permitiu descobrir duas coisas sobre o 2019-nCoV: a primeira, a de que era muito semelhante ao 2003 SARS, um vírus que provocou um surto em 2002 que infetou oito mil pessoas e matou 800, mas sobre isso já falamos. A segunda, que era geneticamente parecido a um vírus que existe numa espécie de cobras da China, as Twain, muito venenosas, mas com as quais os chineses fazem espetadas e que estavam à venda no mercado onde o surto parece ter começado. O aspeto físico do vírus é semelhante também a um agente infeccioso que foi detetado nos morcegos, mas o genoma é mais parecido com o vírus que existe nessas cobras.
Segundo a Universidade da China, que fez a descoberta e a divulgou esta quinta-feira, isso indicia que os morcegos infetaram as cobras com este vírus; e que as cobras o transmitiram aos humanos por via aérea. Na teoria destes cientistas, que ainda necessita de confirmação, o vírus vindo da cobra pode ter ficado nas fezes do animal, mas depois espalhou-se pelo ar do mercado e foi respirado pelos clientes. Para isto acontecer, os morcegos e as cobras teriam de conviver muito próximo do mercado, tinha de haver muitas cobras à venda e muitas pessoas tiveram de ir ao mercado por aqueles dias. Ora tudo isto corresponde ao que se passa quase diariamente no mercado de Wuhan.
Vírus espalha-se mais facilmente do que se pensava
Há uma característica do vírus 2019-nCoV que o torna particularmente preocupante para as autoridades, seja a Organização Mundial de Saúde — que chegou a ponderar emitir um alerta de emergência internacional com a propagação do vírus para fora China, mas que decidiu não o fazer para já —, seja o Centro Europeu de Controlo de Doenças, que elevou para “moderada” a probabilidade de o vírus chegar à Europa (o que pode já ter acontecido face aos cinco casos suspeitos na Escócia). É que o novo coronavírus transmite-se entre humanos. E isso aumenta o risco de circular na população.
Mas há dois tipos de transmissão viral entre pessoas. Uma chama-se “limitada” e acontece apenas quando há um contacto muito próximo entre os fluidos corporais de duas pessoas, como o sémen, o sangue ou a saliva (tosse ou espirros), por exemplo. Outra é a “sustentada” e verifica-se quando o vírus circula mais livremente, mesmo em pessoas que não tenham uma grande proximidade entre elas. No caso do 2019-nCoV, ele está oficialmente enquadrado na primeira categoria.
Isso pode significar que é mais fácil contê-lo porque não se transmite tão facilmente como uma gripe. No entanto, David Heymann, um dos porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS), revelou esta quinta-feira que, mesmo sabendo que os dois vírus são diferentes em termos de capacidade de infeção, o 2019-nCoV espalha-se com mais facilidade do que se pensava inicialmente.
De acordo com o especialista, já se está a observar “difusão de segunda e terceira geração”, isto é, já se detetaram casos em que uma pessoa que mexeu em animais infetados no mercado passou o vírus a outra pessoa, que por sua vez a passou a terceiros simplesmente por tossir ou espirrar junto dela. Os primeiros sintomas são dores de cabeça e enxaquecas, nariz entupido, tosse, dores de garganta e dores musculares. Depois, a doença evoluiu para febres acima dos 38ºC e dificuldades em respirar que podem evoluir para uma pneumonia. Nos casos mortais, as vítimas, tinham entrado em septicémia.
Mas há um dado estatístico que parece conter as preocupações em redor do 2019-nCoV. É que, até agora, ele parece ter afetado sobretudo homens acima dos 60 anos e que sofrem de problemas crónicos como a hipertensão, diabetes, doenças associadas ao fígado e dificuldades respiratórias. Isso não significa que as mulheres, as pessoas com menos de 60 anos e que não tenham qualquer problema de saúde sejam imunes à infeção pelo vírus. No entanto, as estatísticas dizem que essas pessoas estão menos vulneráveis e que a doença não se desenvolve de forma tão severa como no outro grupo.
[THREAD] More on how to reduce your risk of #coronavirushttps://t.co/atyRD3bGLO
— World Health Organization (WHO) (@WHO) January 23, 2020
Além disso, quase todas as instituições de saúde (com excepção para os Estados Unidos), assim como a Direção-Geral de Saúde em Portugal, estão satisfeitas com os esforços que a China tem feito para conter o surto dentro das suas fronteiras. O vírus 2019-nCoV já foi detetado não só na China (onde apenas três províncias ainda não reportaram casos), como também na Tailândia, Macau, Taiwan, Coreia do Sul, Japão, Estados Unidos, Singapura e Vietname. No entanto, as autoridades chinesas já cancelaram qualquer viagem para dentro e para fora de Wuhan, Ezhou e Huanggang.
Qual é o pior cenário possível?
Numa altura em que os números oficiais dizem existir 26 vítimas mortais do novo vírus e mais de 800 infetados, um estudo publicado pelo Imperial College London na quarta-feira estima que pode haver quatro mil doentes com 2019-nCoV só em Wuhan, onde estão cerca de 450 dos casos identificados até agora. No entanto, esta análise não tem em conta qual é o cenário fora de Wuhan, noutras cidades chinesas e pelo mundo fora.
Para descobrir o pior cenário possível, resta recorrer à História. Em 2002, um outro coronavírus foi detetado na China. Tinha sido passado de gatos selvagens para humanos. Em 2002, esse agente infeccioso provocou uma onda de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV) que acabou por chegar aos Estados Unidos e ao Canadá. Oito mil pessoas ficaram doentes. Oitocentas morreram.
Mais recentemente, em 2012, a Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS-CoV) foi detetada na Arábia Saudita e chegou à Europa. Registaram-se 2,2 mil casos e 790 mortes. Contagiou os humanos através do contacto com camelos dromedários. E enquanto o SARS desapareceu, foi erradicado, o MERS sobreviveu e ainda hoje é detetado, até em Portugal. É assim porque, no Oriente, nem mesmo a ameaça desta doença leva os donos dos camelos a abatê-los. Como é uma espécie muito próxima ao humano, a circulação do vírus continua.
Em declarações ao Observador, Jaime Nina, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, afirmou que só dentro de um ano é que se saberá a dimensão do surto deste novo coronavírus. No entanto, acredita que o caso não será tão grave como o MERS porque o novo vírus não parece ter uma capacidade de difusão tão forte e eficaz.
Quanto ao SARS, que tem uma informação genética semelhante ao 2019-nCoV em 73%, é Vineet Menachery, professor do departamento de microbiologia e imunologia da Universidade do Texas, que garante que os dois casos são incomparáveis: “Este vírus não é o SARS-CoV e nem sequer está próximo dos seus padrões. Baseado numa investigação prévia, este vírus até é mais atenuado em termos de doença. Nalguns pacientes mais velhos ou com outras doenças, o vírus pode danificar mais, mas está longe de ser problemático como a estirpe do SARS”, afirma.
De resto, duas semanas depois do surto ter conquistado a atenção das autoridades internacionais, a OMS veio garantir que “é muito cedo para considerar que este evento é uma emergência de saúde pública de preocupação internacional”. Já o Centro de Controlo de Doenças (CDC) pediu aos norte-americanos para evitar a todo o custo viajar para Wuhan, queixando-se de falta de informação prestada pelas autoridades chinesas.