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Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio
Iryna Timoshenko estava em Lviv numa viagem de trabalho para a sua empresa de investigação clínica quando Kiev começou a ser atacada. “Um dos dias em que estava aqui acordei e, de repente, tudo era terrível.” Pegou no telefone e ligou de imediato ao marido, que continuava em Kiev, onde o casal mora com os três filhos — de nove, sete e três anos: “Sai daí já, vem para Lviv”, disse-lhe. Ele assim o fez. Demorou quase 20 horas num percurso que normalmente demoraria sete. Para trás ficou a mãe de Iryna, em Kiev. A ucraniana acha que nunca mais a vai ver.
“Não quero saber da minha casa, das minhas coisas. Levo apenas isto, é tudo o que tenho agora”, diz ao Observador, apontando para as pequenas três malas de bagagem que a família de cinco pessoas tem consigo. A conversa decorre em plena plataforma da Estação Central de Lviv, onde Iryna e a família estão à espera para apanhar um comboio em direção à Polónia, como centenas de outros refugiados ali presentes. A família, porém, já está ciente de uma coisa: apenas ela e os três filhos vão subir a bordo da carruagem. “O meu marido não vai poder ir. Estamos sob a lei marcial…”, diz, com as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara e a aterrarem no anorak azul-claro que traz vestido. Ele, que prefere não se identificar, não diz uma palavra. Os seus olhos tristes, no entanto, transmitem muita coisa.
A disponibilidade para a reserva militar é agora obrigatória para todos os homens com mais de 18 anos e menos de 60 na Ucrânia, por forma a tentar combater a invasão militar de grande escala russa, que conquistou o leste do país e está a tentar controlar a capital, Kiev. A Lviv, na ponta ocidental da Ucrânia, as tropas ainda não chegaram. É por isso que milhares se dirigem para aqui, em estradas entupidas que tornam o percurso numa longa marcha lenta. Marcha essa também ela fúnebre. Quase todos choram os familiares que deixaram para trás, geralmente os mais velhos (“Eles acharam que já eram demasiado velhos para partir, que já iam morrer de qualquer maneira, sabe?”, comenta com o Observador uma das refugiadas que tenta embarcar, acerca dos seus pais). Choram a vida normal que levavam há menos de uma semana, os seus empregos, as suas casas. Mas choram, sobretudo, por temer não chegar a tempo ao outro lado da fronteira.
O casal divorciado que tenta salvar a filha e os pais que dizem “vamos só de férias”
“Só estou a tentar salvar a minha filha. Ela não dormiu esta noite com o barulho das sirenes. Isto é uma guerra!”, diz Oksana Vorzho, enquanto segura a pequena, de cinco anos, nos braços e acrescenta que não quer saber do apartamento que deixou para trás, nem da agência de viagens de que é dona. Está sentada em cima de uma das suas poucas malas, à beira da linha. Os olhos, muito azuis e marejados, arregalam-se quando fala, como se assim transmitisse melhor o desespero.
Ao contrário de Iryna, porém, Oksana tem a sorte de ter quem a espera do outro lado da fronteira. A irmã vive no Luxemburgo e, neste exato momento, o cunhado está a tentar viajar até à Polónia para os ir receber a todos quando chegarem. Todos, porque Oksana está acompanhada, para além da filha, do ex-marido, Alexander Semynov. O casal está divorciado, mas uniu-se neste momento, em nome da filha que tentam salvar, colocando-a fora do país. Alexander sabe que corre o risco de ser mandado para trás como tantos outros homens, quando chegar à fronteira. Mas vai tentar embarcar no comboio com destino a Przemysl, na Polónia, à mesma.
É um homem de poucas palavras e Oksana faz as despesas da conversa pelos dois. “Acho que é uma possibilidade eles ocuparem toda a Ucrânia”, confessa, razão pela qual quer sair o mais rapidamente possível de Lviv. Mais do que triste, está zangada. “São todos uns oligarcas!”, diz com desprezo. Mas há um em particular que a enfurece mais do que qualquer outro: “Acho que a situação só pode mudar quando um homem em específico morrer. Sabe de quem estou a falar, não sabe?”, atira, sendo de imediata interrompida por Alexander, que expressa o seu maior momento de assertividade durante toda a conversa. “Ele é louco!”, exclama. Falam ambos de Vladimir Putin, é claro.
Mas nem todos são tão abertos a expressar as suas opiniões. Entre as centenas de pessoas que enchem a estação de Lviv, fazendo filas gigantescas para tentar comprar bilhetes, há quem tenha mais medo do que outra coisa. Um casal, com outra filha de cinco anos, aceita falar com o Observador, mas prefere não se identificar nem ser fotografado. Chamemos-lhes Artem e Mikhaila. “Saímos de Kiev já há duas semanas e viemos para Lviv por causa das notícias. Os EUA disseram que ia haver um ataque iminente e não quis arriscar”, conta Artem.
Ambos têm família e amigos na Polónia e, por isso, sentem-se esperançosos. Também por isso, Artem vai arriscar tentar atravessar a fronteira, apesar da lei marcial. Este técnico na área de IT quer proteger a família até ao fim. Isso significa também não expressar demasiado as suas opiniões, por manter uma certa desconfiança sobre com quem está a falar ou como pode a informação que transmite ser usada.
Mikhaila, porém, não se contém. Começa a lamentar o facto de a filha chorar todas as noites desde que está em Lviv, com saudades dos colegas do jardim-de-infância. O casal diz-lhe apenas que vão viajar, que estão de férias. Mas a criança sente que estas não são férias como as outras: trouxeram malas e o pássaro da família, que está guardado numa gaiola verde tapada com um lençol; estão presos na zona de alimentação da estação, rodeados por desconhecidos sentados no chão; a sua mãe chora.
“Esta situação é muito difícil para mim. Este é o nosso país. A única coisa que queremos é paz e a nossa independência. Sempre quisemos ser europeus, não queremos a União Soviética outra vez!”, diz Mikhaila, com a voz a subir de tom a cada duas palavras. É então que Artem intervém e lhe diz algo em ucraniano. Ambos se calam e dão a entrevista por terminada.
“Agora todo o mundo sabe quem é Vladimir Putin”
A investigadora clínica Iryna Timoshenko, porém, não tem qualquer problema em expressar tudo o que sente aos jornalistas do Observador, agradecendo até o facto de estarem presentes a “mostrar ao mundo o que se passa na Ucrânia”. “Só espero que a Polónia nos receba”, suspira, sublinhando as boas relações de vizinhança com todos os países em volta com exceção da Rússia. “Tivemos o Holodomor, agora isto…”, afirma, referindo-se à Grande Fome estalinista dos anos 30. “Porque é que eles não nos deixam em paz?”
Aos três filhos não tem problemas em dizer que crê que o que se passa neste momento é culpa de um único homem: Vladimir Putin. “Ele diz que quer proteger todos os falantes de russo, mas… Ya rozmovlyayu ukrayinsʹkoyu, a ne rosiysʹkoyu [‘Eu falo ucraniano, não falo russo’]. Percebe o que quero dizer?”, diz, com um ligeiro sorriso, como quem sente que acabou de provar que não é isso que move o Presidente russo, caso contrário não estaria a atacar zonas onde há falantes de ucraniano. “Agora todo o mundo sabe quem é Vladimir Putin.”
Mas Iryna também aponta o dedo à NATO, ao Ocidente, à comunidade internacional. “Não compreendemos porque é que o mundo não acreditou em nós. O nosso povo anda a morrer há anos por causa da Rússia”, diz, referindo-se à guerra em Donbass. “Nós somos um país independente. Abdicámos das nossas armas nucleares em 1994 e não recebemos nada em troca. Como não fazemos parte da NATO, ninguém nos vai proteger.”, declara. O apoio em armamento e formação é “bom”, ressalva. “Mas não chega. Somos um país pequeno. Somos só a pequena Ucrânia.”
As suas afirmações ganham especial relevância pelo facto de esta estação em Lviv estar cheia não apenas de refugiados, mas também de soldados que vão partir para os vários locais da frente de batalha. Distinguem-se ao longe pelos uniformes, juntos em pequenos grupos, aproveitam para comer uma última refeição de fast-food ou fumar mais um cigarro.
Os homens prontos para ir para a frente de combate, onde se pergunta: “Quem de vocês quer derramar a sua última gota de sangue pelo nosso país?”
Não são contudo os únicos homens ali presentes que podem vir a ter de pegar em armas. Quando finalmente chega o comboio que irá levar alguns destes refugiados à Polónia, depois de uma manhã inteira à espera, rapidamente se percebe a divisão entre os que, como Alexander e Artem, vão tentar ir até à fronteira e aqueles que por patriotismo ou resignação decidiram já ficar para trás. Quando o comboio pára, a multidão precipita-se para as portas. Todos tentam encontrar um lugar dentro daquelas carruagens e, por momentos, há até alguns gritos e confusão. A tensão, porém, é dissipada ao perceber-se que para já deverá haver lugar para quase todos. Afinal, nem todos os que estão na plataforma vão subir a bordo.
Com a maioria já está sentada nos seus lugares, formam-se do lado de fora do comboio os grupos dos familiares que vão permanecer em Lviv. Uma avó chora ao dizer adeus ao neto de 7 anos, que vai ao colo da mãe, dentro do comboio. Ambos olham pela janela e ela atira-lhes beijos. “Vão tentar ir para Espanha!”, diz a avó ao Observador, com esperança.
Numas carruagens mais à frente, um conjunto de mulheres senta-se em fila, umas atrás das outras, muitas com filhos ao colo. Do lado de fora, os respetivos maridos encostam-se às janelas para uma última despedida através do vidro. Um casal em particular parece não conseguir largar a janela por onde se vêem. Falam ao telefone enquanto se olham e encostam a mão ao vidro, como se quisessem sentir o calor um do outro. Ele interrompe a conversa para a fotografar com o smartphone, enquanto ela chora sem parar, com a cara distorcida pela aflição.
Ele mantém o sorriso. Estará a forçá-lo para deixar uma última lembrança feliz ou ainda terá esperança? Terá medo pelo que pode vir a enfrentar nos últimos dias ou acredita que ainda pode evitar destinos como o do sobrinho de Iryna Timoshenko? Com apenas 18 anos, este cadete da Academia Militar de Odessa já foi enviado para combater. O relato que fez à tia é revelador da combinação de abnegação e coragem, misturadas com desespero, que ali se sentem: “Os comandantes perguntam aos soldados ‘Quem de vocês quer derramar a sua última gota de sangue pelo nosso país?’. Os que se oferecem recebem uma arma e vão para a frente”, conta esta ucraniana ao Observador, agarrando com mais força o filho mais velho, de nove anos, que entretanto se agarrou a ela. “O meu sobrinho ainda não conseguiu dar esse passo”, confessa. Por enquanto, está vivo.