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É um território “muito importante”, tido como a “joia da coroa” para o regime de Vladimir Putin, mas a Ucrânia não abre mão da península da Crimeia e quer que 2023 seja o ano da reconquista. O objetivo está já na agenda de Kiev, confirma ao Observador Maria Tomak, chefe da Plataforma da Crimeia — que integra a comitiva que aconselha a presidência ucraniana sobre a região: “Estamos a preparar-nos para o momento em que a desocupação vai acontecer por ordem do Presidente da Ucrânia” — e já está em marcha um plano para o efeito.
O objetivo é ambicioso, mas não um sonho impossível. Peter Dickinson, analista do think tank Atlantic Center e editor da revista UkraineAlert, não tem dúvidas de que a reconquista da Crimeia “é militarmente possível”. Contudo, em declarações ao Observador, o especialista nota que o Kremlin “certamente não reagiria de ânimo leve” a uma possível derrota militar e poderia responder com “ações extremistas”, tais como “ameaças com armas nucleares”.
Tudo isto, porque “com a perda da Crimeia, Putin provavelmente perderia o poder e seria o seu fim”, preconiza Peter Dickinson, indicando que “a Rússia tem sido muito clara sobre o futuro da península” e que Moscovo interpreta a reconquista da península pelas tropas de Kiev como “uma linha vermelha”. “Na linguagem russa, a Crimeia é muito diferente do Donbass, de Zaporíjia e de Kherson. É um caso muito específico.”
Ainda assim, a Ucrânia não deverá dar o braço a torcer nesta contenda pela Crimeia, um território que a Rússia anexou ilegalmente em fevereiro em 2014. “Nenhum Presidente ucraniano aceitará um tratado de paz sem a Crimeia”, começa por vincar o professor de Política Comparada na Universidade de Kyiv-Mohyla, Olexiy Haran, que também acredita ser possível reconquistar o território nos próximos meses com uma combinação de medidas “estratégicas, militares e diplomáticas”. É, aliás, isso que vários dirigentes militares têm dado a entender. “Os ucranianos estão pronto para libertar o país”, garante.
Volodymyr Zelensky já assinalou, num discurso em agosto, que a “guerra da Rússia contra a Ucrânia e contra toda a Europa livre começou a Crimeia e deve acabar na Crimeia — com a sua libertação”. Na altura, o Presidente ucraniano confessou não saber quando é que isso “vai acontecer”, mas deixava uma garantia: “Eu sei que a Crimeia ucraniana vai regressar”.
Mas, afinal, o que explica a importância desta península banhada pelo Mar Negro — mais pequena do que o Alentejo — para o Presidente russo? E porque é que Zelensky tem tanta certeza de que a vai recuperar?
O plano de Kiev para uma Crimeia outra vez ucraniana
Em primeiro lugar, o governo da Ucrânia não só coloca as fichas na reconquista, como até já estabeleceu quais serão os passos que nortearão as autoridades do país após esse momento. “Estamos a tentar desenhar — com outros Estados, agências, especialistas e uma plataforma que representa os tártaros — uma visão sobre como a Crimeia vai ser gerida após a desocupação”, afirma Maria Tomak, que esclarece que a prioridade consiste em inserir a península numa ligação com o “Mar Mediterrâneo” — virada para o Ocidente — e “isolada da Rússia”.
Neste momento, estão a ser discutidos vários temas pela comitiva responsável por ajudar a planear o futuro da Crimeia. A conselheira de Volodymyr Zelensky salienta que o principal objetivo passa por “terminar com as políticas de colonização” que a Rússia tem adotado desde 2014 no território: “Os russos trazidos para a península foram para lá colonizar”.
Maria Tomak reforçou, na conversa que teve com o Observador a partir de Ancara (onde esteve reunida com vários dirigentes políticos turcos na passada segunda-feira), que o plano ainda “não está fechado” — “é demasiado cedo para isso” — e que vários pontos ainda estão “em desenvolvimento”. No entanto, a responsável adianta que as conversações sobre alguns tópicos estão já bastante adiantadas. Alguns desses assuntos são:
- “O desenvolvimento de parâmetros legais para a reintegração na Ucrânia”: “Como é que a estrutura dos órgãos governamentais vai ser desenhada e a sua articulação com Kiev”;
- A maneira como funcionaria a “amnistia” dos cidadãos russos e dos militares que lutaram contra a Ucrânia;
- Que eventuais penas é que a Ucrânia deve aplicar aos “cidadãos russos que se deslocaram para o território depois de 2014”. Aqui já há uma conclusão: “Eles têm de deixar a península, uma vez que estão lá ilegalmente, mas o mecanismo vai contar com algumas exceções”;
- Articulado com o terceiro ponto, estão os “direitos de propriedade” dos cidadãos russos que poderão ter de abandonar a Crimeia. Não revelando se os bens serão confiscados, Maria Tomak diz apenas que a Ucrânia terá de “balançar os prós e os contras para preservar o interesse nacional”;
- Um plano económico e outro para o desenvolvimento de infraestruturas com o “objetivo da recuperação da Crimeia”. Há ainda pouco de substancial que foi discutido sobre este tema: “Vai ser desenvolvido mais tarde”;
- O “tema do tártaros”, uma comunidade que vive essencialmente na Crimeia: o objetivo passa por “aprovar uma lei” que “providencie garantias e direitos” à minoria, que tem sido “desprezada pela Federação Russa”;
Ainda não é claro, porém, o que vai acontecer à única ligação terrestre entre a Crimeia e a Federação Russa — a ponte de Kerch — que foi atacada pelas tropas ucranianas no dia de aniversário de Vladimir Putin e que ficou parcialmente destruída (um ataque que desencadeou uma retaliação russa, com ataques às infraestruturas civis de toda a Ucrânia, dois dias depois).
Segundo a conselheira de Voldoymyr Zelensky, o futuro da ponte “vai depender da situação” e de como terminar a ocupação russa, mas Tomak deixa uma certeza — tudo o que for feito terá em consideração os “melhores interesses dos ucranianos”.
Como é que a Crimeia poderá ser reconquistada?
Alguns dos planos para o pós-reconquista são já uma realidade, mas, previamente a serem colocados em prática, a Ucrânia precisa de agir militarmente, abordagem que, ao Observador, Maria Tomak recusou comentar. Salienta apenas que o governo confia nas capacidades e no desempenho das “Forças Armadas da Ucrânia e dos militares”.
Peter Dickinson estima que a Crimeia possa voltar à alçada ucraniana em 2023, mas não logo no início. “A acontecer, será a última etapa da libertação. Antes, há muito território que precisa de ser libertado, como o sul e leste da Ucrânia. Só aí faz sentido pensar na libertação da Crimeia”, explica, referindo que as tropas ucranianas precisam primeiro de atuar no restante território.
Só após os esperados avanços militares no sul e no leste — e caso sejam bem sucedidos –, é que Dickinson considera estarem reunidas as condições para as tropas ucranianas avançarem com uma contraofensiva na Crimeia. O objetivo passa por “isolar a península” e cortar as cadeias de abastecimento que chegam desde o restante território ucraniano e russo. Já no que diz respeito às ligações terrestres diretas com a Rússia, defende ser imperioso “destruir a ponte de Kerch” para que Kiev obtenha sucesso nesta operação militar.
Com a entrada na península, o especialista britânico refere que as tropas ucranianas precisam de ganhar superioridade naval. Esse objetivo “não se afigura muito difícil”, se bem que seja imperioso “destruir os portos que estão sob domínio da marinha russa”, uma missão que deverá ser levada a cabo antes mesmo da invasão por via terrestre. “A Ucrânia deve bombardear todos os navios. A Rússia não iria conseguir depois retê-los, ficar com eles ou mobilizá-los para combaterem”, explica.
Na opinião do major-general ucraniano Viktor Yagun, a Crimeia pode mesmo representar uma armadilha para a Rússia e até pode dar uma futura moeda de troca à Ucrânia. “Os russos não têm o número suficiente de navios nem para retirar as tropas, nem para lhes fornecer armamento. E isso é um problema militar”, descreve, citado pelo Odessa Times.
Adicionalmente, o responsável militar vaticina que quando as tropas ucranianas entrarem na península terão apenas de enfrentar um “grupo de militares que não tem nada para se defender e um grande número de civis que, de acordo com a lei ucraniana, não tem o direito de estar lá”. “Isso será objeto de negociações: o que faremos com eles e para onde os enviamos”, detalha.
A reação russa e a possível perda de apoio do Ocidente
Militarmente, a reconquista ucraniana da península até pode ser viável, até porque, segundo Peter Dickinson, “não é difícil isolar a Crimeia” e os “soldados ucranianos estão mais motivados e mostram ser mais competentes do que os russos”. No entanto, também é quase certo que haverá uma reação russa, já que a perda do território representaria uma “humilhação” para Vladimir Putin, para além da simbologia que o mesmo tem para o Kremlin.
O analista militar britânico conjetura que, caso a Crimeia estiver mesmo em risco de ser tomada pelas forças de Kiev, o Presidente russo irá adotar uma mentalidade mais radical — de “tudo ou nada” —, porque deverá interpretar que isso representa uma derrota total, na medida em que significaria o falhanço completo da guerra e até um retrocesso à situação geopolítica anterior a fevereiro de 2014.
Na ótica de Peter Dickinson, este golpe poderia, por esses motivos, revelar-se “fatal” para a continuidade de Vladimir Putin à frente dos desígnios políticos russos, uma vez que precipitaria o fim da sua legitimidade e autoridade política. Para além disso, todo o “legado da grandeza russa” que o Presidente russo tem tentado impor dissipar-se-ia, colocando a Rússia numa posição vulnerável na comunidade internacional. Neste cenário, o chefe de Estado “não conseguiria salvar a face”.
Antes de uma eventual queda, o Presidente russo “não ficaria obviamente parado”, conjetura Peter Dickinson, admitindo a hipótese de o Kremlin continuar a tentar “motivar a população russa” para o conflito e “mobilizar mais pessoas para lutar na Crimeia”, podendo, decretar até a mobilização total. Para o exterior, nomeadamente para o Ocidente, o analista considera que o chefe de Estado russo enviaria também múltiplas ameaças.
Até porque a Crimeia não é apenas uma questão de sobrevivência política para Putin. A população russa também deverá estar ao seu lado pelo que mostram as sondagens. Um estudo de opinião publicado pelo Washington Post no início de dezembro dá conta de que 78% dos russos considera inaceitável a Crimeia deixar de ser administrada pela Rússia e voltar a integrar a Ucrânia.
“O simbolismo da Crimeia para a população russa é bastante forte”, destaca Peter Dickinson, que refere que o território foi governado por múltiplas entidades durante a História, tendo-se tornado russa apenas em 1783. “Existe uma estranha convicção na Rússia de que a Crimeia foi sempre genuinamente russa”, reforça o especialista, que ressalva que apenas uma “parte pequena” da História da península está relacionada com Moscovo. Aliás, em 1954, a União Soviética transferiu a soberania da região para a República Socialista Soviética da Ucrânia.
Tendo em conta a importância da Crimeia para o Kremlin e para a população russa, o tema levará muito provavelmente a uma atitude de intransigência da Rússia, que “deverá recusar um cessar-fogo” sem o controlo da península. Tendo em consideração esta rejeição completa pela via negocial, a “questão é outra” para Peter Dickinson: “A comunidade internacional continuaria a apoiar a Ucrânia se esta estivesse prestes a retomar o controlo da Crimeia?”
“Há uma diferença de perspetiva na comunidade internacional. A tomada de Kherson, a defesa de Kiev e a própria integridade territorial da Ucrânia excluindo a Crimeia é muito popular entre os aliados. Mas a reconquista da Crimeia será tão popular, tendo em conta os riscos muito maiores de uma escalada do conflito?”, questiona o analista, que prevê que possam existir “divisões” entre o apoio dos países que atualmente estão do lado ucraniano. “Nunca será de forma aberta e oficial, mas penso que muitos países poderão passar a não apoiar a Ucrânia de um modo tão expressivo e tão forte.”
As negociações — e como a Crimeia pode ser uma “peça chave”
Perante a possibilidade de haver negociações entre as duas partes, o docente universitário Olexiy Haran não acredita que Kiev deva “fazer concessões à Rússia” no que diz respeito à integridade territorial da Ucrânia, incluindo a Crimeia. “Nem deve haver garantias de segurança. Isso é de loucos: a Ucrânia não está no solo russo, foi a Rússia que atacou a Ucrânia”, sublinha, lembrando que foi Moscovo que “violou todos os princípios europeus” no âmbito da segurança coletiva.
Posição diferente tem Peter Dickinson, que salienta que a Crimeia pode ser a “chave para um tratado de paz” entre Kiev e Moscovo. O analista diz que “obviamente o governo ucraniano nunca vai admitir a perda da região”, devido à impopularidade da medida no seio da sociedade ucraniana, mas pode decidir, por exemplo, “congelar” a situação administrativa da península durante dez anos.
“A Crimeia pode ser o instrumento negocial de feição para a Ucrânia acabar com o conflito, mas nunca divulgará essa informação de uma forma oficial”, sustenta Peter Dickinson. Mesmo que seja “inaceitável” quer para Kiev, quer para a generalidade da comunidade internacional — que condenou a validade da anexação russa em 2014 —, o que pode acontecer é que a Rússia pode trocar um cessar-fogo no resto do território da Ucrânia pelo controlo total daquela península.
A cientista política alemã Liana Fox e o historiador norte-americano Michael Kimmage defendem a mesma ideia num artigo de opinião da revista Foreign Affairs. Os dois especialistas consideram que a “Ucrânia deve manter a Crimeia vulnerável” e deve transmitir a ideia de que a península pode ser atacada. “A ameaça de uma invasão nunca deve estar fora de questão”, reforçam, explicando que isso dá “à Ucrânia um poder real sobre a Rússia e poder em possíveis negociações”.
Numa futura mesa de negociações, a Crimeia pode “ser o maior trunfo que a Ucrânia tem” por causa da “fixação de Putin” com aquele território. Liana Fox e Michael Kimmage aconselham também que a Ucrânia e os seus apoiantes olhem para a questão com “confiança”. “A Rússia infligiu uma derrota estratégia a si mesma com a decisão de invadir a Ucrânia. Já ficou provado que o seu exército é mais fraco do que muitos previam antes da guerra”, argumentam, ressalvando, contudo, que Kiev deve avançar com calma e de forma consistente para uma ofensiva na península, de modo a evitar um aumento da presença militar russa na região.
A diplomacia ucraniana e a importância da Crimeia para Kiev
Até à possível reconquista da Crimeia, Olexiy Haran insiste que a Ucrânia tem de sensibilizar a comunidade internacional para a importância do território e também para a necessidade de “continuar a colocar pressão na Rússia”, impedindo a participação de Moscovo em vários fóruns internacionais.
Numa possível negociação que implique a perda da Crimeia para a Rússia, o docente universitário alerta, todavia, para a legitimidade que isso daria a possíveis futuras anexações ilegais em todo o globo. “A Crimeia tem uma importância para a Europa e para todo o mundo. O que Putin fez é uma violação de tudo o que ficou estabelecido após Segunda Guerra Mundial — violou todos os tratados no que concerne à integridade territorial.”
Olexiy Haran recorda como Putin quebrou o Memorando de Budapeste, assinado em 1994, em que ficou acordado que “a Ucrânia abdicaria o direito a ter um arsenal nuclear em troca da sua integridade territorial”. “Mas a Rússia não quis saber disso. Violou as palavras e as suas obrigações ao anexar a Crimeia e ao desencadear uma invasão total”, lamenta o professor da Universidade de Kyiv-Mohyla.
Deste modo, se ficar estabelecido num acordo de paz que a Crimeia é russa, isso subverte não só a lei internacional, como abre espaço para “acontecimentos semelhantes”. “As nações civilizadas reconhecem que a Crimeia pertence à Ucrânia. Tudo o resto vai contra as fundações de segurança estabelecidas desde 1945.”
O Presidente ucraniano tem mostrado em público a mesma posição, dramatizando o discurso. “A presença de ocupantes russos na Crimeia é uma ameaça para toda a Europa e para estabilidade global. A região do Mar Negro não pode estar segura enquanto a Crimeia estiver ocupada. Não haverá paz estável e duradoura em muitos países no Mar Mediterrâneo enquanto a Rússia utilizar a nossa península como base militar”, afirmou Volodymyr Zelensky.
A integração na Ucrânia da península — apesar de para muitos ser inevitável — tem de ser alvo de “discussão”, uma vez que é um território em que “russos, ucranianos e tártaros coabitaram durante décadas”. “Todas as comunidades devem ter um papel na Crimeia”, assinala Olexiy Haran, que sugere um regresso a 2014: o estabelecimento de uma “região autónoma da Crimeia”.
Aliás, este estatuto especial da Crimeia está “plasmado na Constituição ucraniana” desde 1996. “O sistema da estrutura administrativa e territorial da Ucrânia é composto pela República Autónoma da Crimeia, por oblasts, distritos, cidades, distritos, assentamentos e vilas”, lê-se no artigo 133.º da lei máxima de Kiev. Existe até uma assembleia legislativa própria, que desfrutava do direito de desenhar um Orçamento para a região.
Desde à educação até às infraestruturas, vários são os campos em que a Crimeia gozava de uma maior autonomia face ao restante território ucraniano. Questionada sobre se após a possível reconquista da Ucrânia este estatuto se manterá, Maria Tomak diz que está tudo ainda numa fase preliminar, mas diz que o estatuto especial da península não é algo que incomode o governo de Zelensky.
No entanto, a conselheira de Zelensky destaca que todos os vestígios de ocupação russa, incluindo a forma como administravam a península, devem ser eliminados. “Não podemos tolerar a política colonizadora, mas temos de ser realistas nestas decisões“, defende Maria Tomak, que acrescenta que tudo será feito de acordo “com a lei internacional”.
“O nosso objetivo passa por sobreviver e manter o controlo de todos os territórios da Ucrânia que pertencem ao país à luz do direito internacional”, vinca a conselheira do chefe de Estado ucraniana, que também estabelece que a prioridade — após a guerra — passa por conseguir integrar a União Europeia e a NATO. Ora, sem a questão da Crimeia resolvida, a tarefa de aderir às duas organizações torna-se mais difícil, já que as problemáticas relacionadas com a integridade territorial representam muitas vezes um entrave para a adesão na aliança transatlântica e na UE.
Maria Tomak reconhece que a possível reintegração da Crimeia na Ucrânia não pode ser feita sem um “cuidadoso balanço”, mas admite que em termos legais será “desafiante”. Antes de todos estes cenários, contudo, os desafios serão militares e diplomáticos.