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Um ataque a uma torre de vigia. Entradas ilegais e explosões perto de postos da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL, sigla em inglês). Capacetes azuis feridos. Nos últimos dias, têm sido vários os episódios que colocam em risco de vida os membros da missão de paz. “Saiam do caminho de perigo” foi o aviso do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu. Contudo, as indicações dadas por responsáveis da Organização das Nações Unidas (ONU) vão em sentido inverso: independentemente da pressão de Israel, ficarão no Líbano. E António Guterres, secretário-geral da ONU, sugeriu que os “ataques” israelitas a membros da UNIFIL podiam constituir uma “violação do direito internacional e um crime de guerra”.
Ao longo da História, a relação entre o poder político israelita e a ONU nunca foi pacífica com críticas de parte a parte, que se intensificaram após o início da guerra na Faixa de Gaza em 2023. O conflito sai agora do plano da retórica e envolve as Forças de Defesa de Israel (IDF, sigla em inglês) e os capacetes azuis da UNIFIL. Desde que começou a invasão terrestre no Líbano, as tropas de Telavive foram instruídas a destruir as infraestruturas pertencentes ao Hezbollah, o grupo xiita pró-iraniano que controla parte do sul do território libanês. Israel argumenta que os capacetes azuis estão a impedir de concretizar esse objetivo ao não se retirarem de certas zonas.
Contudo, o mandato até 31 de agosto de 2025 proveniente do Conselho de Segurança, o órgão mais importante das Nações Unidas, não permite que simplesmente as forças de manutenção de paz da UNIFIL abandonem os postos na “linha azul” — de cerca de 120 quilómetros — estabelecida no sul do Líbano. Seguindo essa lógica, vários Estados-membros da ONU têm vindo a público criticar as ações israelitas, principalmente aqueles países que têm nacionais no terreno, como Espanha, França e Itália.
Num comunicado, 16 países da União Europeia (UE) concordaram entre si “exercer pressão política e diplomática intensa a Israel” para que não ocorram mais “acidentes” entre os capacetes azuis, alguns dos quais que ficaram feridos na sequência das operações militares israelitas. Existe igualmente um forte consenso na comunidade internacional para que não haja uma escalada pela parte de Telavive direcionada à missão de manutenção de paz; até os Estados Unidos realçaram que é necessário que os membros da força de manutenção de paz não “estejam em risco de vida”.
Especialistas em Direito Internacional ouvidos pelo Observador concordam que podemos estar perante possíveis crimes de guerra, se for provada “intenção” de Israel em atacar a missão. Janina Dill, professora de Direito Internacional na Blavatnik School of Government pertencente à Universidade de Oxford, vai mesmo longe e diz existirem “provas no domínio público” que “sugerem” que Israel violou o Direito Internacional.
Do lado israelita, a perceção é outra. Eytan Gilboa, professor de Relações Internacionais e membro do think tank Jerusalem Institute for Strategy and Security, afirma que o país tem direito à “auto-defesa” e que ações militares contra a UNIFIL podem encaixar-se nesse conceito, se esta não fizer nada “para prevenir que o Hezbollah ataque Israel nas redondezas das bases militares da UNIFIL” — algo que crê estar a acontecer.
Até ao momento, Israel não dá sinais de ceder. E a UNIFIL também não.
O que Israel realmente pretende com os ataques contra a UNIFIL?
A decisão do Conselho de Segurança em formar uma missão de manutenção de paz para o Líbano remonta a 1978. Na altura, havia uma guerra civil no país e Israel tinha-o invadido, sendo que houve outra ofensiva israelita no país vizinho quatro anos depois. As IDF ficaram desde 1982 até 2000 no sul do território libanês. Após a saída das forças de Telavive, a missão desenhou uma linha azul que delineava as regiões em que os capacetes azuis ficariam.
Porém, em 2006, irrompeu um conflito entre Israel e o Hezbollah. Durou 34 dias. Após um cessar-fogo, o Conselho de Segurança adotou a resolução 1701 e “aumentou significativamente a força da UNIFIL, expandindo o seu mandato”. Era permitido à missão da ONU “tomar todas as ações necessárias” para garantir que as áreas em que operavam não eram “utilizadas para atividades hostis”.
Apesar da presença da UNIFIL, houve sempre um clima permanente de tensão na região — e sempre existiu a perceção de que o Líbano podia ser o palco de um novo conflito violento. Desde o dia 8 de outubro de 2023, o dia seguinte ao início da guerra na Faixa de Gaza, houve uma escalada: o Hezbollah começou a atacar território israelita continuamente, de forma a que Telavive desviasse recursos, apoiando o Hamas e desgastando as IDF em duas frentes.
Foi, no entanto, uma questão de tempo até que Israel se focasse no Hezbollah. Em setembro de 2024, inauguraram uma “fase da guerra” designada “Setas do Norte”. O primeiro sinal desta nova etapa consistiu na explosão de pagers e walkie-talkies em meados daquele mês; depois passou para bombardeamentos de vários locais no sul de território libanês e também no sul de Beirute. Esses ataques aéreos causaram a morte de vários líderes do Hezbollah, nomeadamente o secretário-geral, Hassan Nasrallah. Contudo, nada disto era suficiente, na ótica do governo de Benjamin Netanyahu, para parar o grupo xiita. Seguiu-se, assim, a invasão de partes do sul do Líbano.
Ora, desde o início “Setas do Norte” no Líbano, Israel tem insistido numa ideia: que os residentes que habitam no norte de Israel regressem às suas casas, dado que foram obrigados a abandonar as regiões que moraram por causa dos ataques aéreos contínuos do Hezbollah. Já é mesmo considerado um objetivo da guerra, juntamente com a destruição do Hamas. Neste contexto, Telavive entende que a única forma de o travar é desmantelando e enfraquecendo o grupo pró-iraniano, que mantém bases militares no sul do Líbano.
“Sem qualquer provocação, o Hezbollah, uma organização terrorista reconhecida que controlou o Líbano e é um proxy iraniano, tem atacado cidades e vilas no norte de Israel e também outras partes do país”, denuncia Eytan Gilboa, do think tank Jerusalem Institute for Strategy and Security, ao Observador. O especialista israelita aponta o dedo depois à missão de manutenção de paz no Líbano: “Por mais de um ano, a ineficaz UNIFIL não fez nada para parar esta agressão que não foi provocada”.
As tensões com as Nações Unidas tornaram-se inevitáveis para Israel. Segundo alega Eytan Gilboa, durante as “incursões ao sul do Líbano”, as Forças de Defesa de Israel viram que os militantes do Hezbollah “estavam a usar postos da UNIFIL como esconderijos e locais para fazerem emboscadas”. O especialista israelita é categórico e declara que os capacetes azuis estão “a ajudar o Hezbollah a lutar contra Israel”: “Israel pediu várias vezes à ONU para que isto parasse e deslocasse as suas forças para a parte norte do Líbano, mas sem sucesso”.
Seguidamente, de acordo com Eytan Gilboa, a UNIFIL “não fez nada para prevenir as violações da resolução do Conselho de Segurança 1701 de 2006”, instituída após a Segunda Guerra do Líbano, e para impedir que o Hezbollah “construísse uma infraestrutura militar gigantesca”. Da ótica israelita, aquela missão da manutenção de paz é ineficaz e coloca em causa o direito que o país diz que tem em “defender-se” dos adversários. O ministro dos Negócios Estrangeiros de Telavive, Israel Katz, destacou no X que o país até vê com bons olhos “as atividades da UNIFIL”, não deixando de ressalvar que a “organização terrorista do Hezbollah usa membros da UNIFIL como escudos humanos, disparando deliberadamente contra os soldados da IDF de localizações perto das posições da UNIFIL”.
The State of Israel places great importance on the activities of @UNIFIL_ and has no intention of harming the organization or its personnel.
Furthermore, Israel views UNIFIL as playing an important role in the "day after" following the war against Hezbollah.
It is the Hezbollah…
— ישראל כ”ץ Israel Katz (@Israel_katz) October 16, 2024
Por sua vez, a UNIFIL rejeita as acusações e assegura vai ficar nas mesmas posições. O porta-voz da força de manutenção de paz, Andrea Tenenti, indicou que havia uma “decisão unânime de ficar” — e de rejeitar o pedido de Benjamin Netanyahu de sair da região — uma vez que “é importante a bandeira da ONU voe alto nesta região e que seja capaz de reportar as situações ao Conselho de Segurança”. A decisão do secretário-geral foi no mesmo sentido: “Os membros da força da UNIFIL devem continuar a exercer o seu mandato”.
Numa entrevista ao El País, Andrea Tenenti atirou a Israel e declarou que não podia ser um “Estado-membro a ditar o destino de uma missão que a comunidade internacional quer [que fique] no Líbano”. “Se o Líbano nos dissesse para nós irmos embora, nós iríamos, porque estamos a pedido do governo libanês. Mas não estamos a pedido das autoridades israelitas. Isso é muito claro. A monitorização é muito importante, ainda que tenhamos uma capacidade muito limitada. Ainda temos 10 mil tropas em 50 partes da linha azul e dentro da área de operações”.
Confrontado com as críticas de Israel, Andrea Tenenti recorda que a UNIFIL não tem poderes suficientes para levar a cabo essas certas operações. “Há áreas a que não podemos aceder. A propriedade privada está fora do nosso alcance. O mandato não permite que as forças entrem em casas para registá-las. Estamos aqui para apoiar o exército libanês. Podemos definitivamente fazer uma parte, mas não tudo.”
Como missão de paz da ONU a UNIFIL tem de seguir três regras basilares: consentimento das partes, imparcialidade e o não uso da força, a não ser autodefesa ou em defesa do mandato. Mas pode recorrer ao “uso proporcional e gradual da força” para proteger civis. Isto significa que a sua atuação não pode imiscuir-se em certos assuntos, como aqueles que dizem apenas respeito ao governo libanês. “Desencadear mais violência não é papel da força de manutenção de paz”, realça Andrea Tenenti. Não existe, para além disso, contacto direto entre o Hezbollah e os capacetes azuis; o intermediário é o executivo de Beirute.
A ação da UNIFIL é, por isso, limitada, resignando-se à monitorização e a agir apenas sob ameaça. À NPR, Jeffrey Feltman, antigo embaixador norte-americano no Líbano de 2004 a 2008, sinalizou que não culpa a missão pela escalada da tensão por causa do seu mandato limitado no terreno. Apesar disso, o antigo diplomata critica os “relatórios pouco concretos” dos capacetes azuis sobre o que o “Hezbollah fazia no país”.
Dezasseis Estados-membros da UE reconhecem que o Hezbollah não pode usar capacetes azuis como “escudo humano no contexto do conflito”. Realçaram, ainda assim, que é “importante manter uma presença estável no Líbano, sublinhando que qualquer decisão sobre o futuro da missão da UNIFIL tem de ser decidido dentro da ONU” — e não unilateralmente por Israel.
Neste momento, a UNIFIL conta com mais de 10 mil capacetes azuis, oriundos de 48 países, os principais Itália, França, Índia, Indonésia, Malásia, Gana, Espanha, China e Irlanda. Possui também algo único numa missão de manutenção de paz: uma task force marítima, que vigia as águas territoriais libanesas e cujos objetivos consistem em “prevenir a entrada de armas não autorizadas e materiais por mar e fortalecer as capacidades da marinha libanesa”.
Para além disso, no dia a dia, a UNIFIL faz vigia do terreno que controla durante 24 horas, estabelece postos de vigia e de controlo, monitoriza as atividades e procede à limpeza dos terrenos, incluindo com atividades de desminagem. Também desempenha um papel fundamental na distribuição de ajuda humanitária à população do sul do Líbano.
Ataques a capacetes azuis pode constituir um “crime de guerra”?
A reação das Nações Unidas foi de indignação perante as ações de Israel. O secretário-geral da ONU frisou que os elementos da UNIFIL “não devem ser um alvo”, avisando que os “ataques contra capacetes azuis vão contra o Direito Internacional, incluindo o Direito Internacional Humanitário”. “Pode constituir um crime de guerra”, prosseguiu, apelando a “todas as partes, incluindo das IDF” a “parar com todas as ações que põem os capacetes azuis em risco”. António Guterres deixava no ar que Telavive possa vir a sofrer consequências jurídicas pelos ataques contra a missão de paz do Líbano.
Em declarações ao Observador, dois professores universitários na área do Direito Internacional concordam com António Guterres. Neve Gordon, docente na Universidade Queen Mary em Londres, lembra que o artigo 8.2.iii do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, estabeleceu como crime de guerra “qualquer ataque intencional contra pessoal, instalações, material, unidades ou veículos envolvidos em assistência humanitária numa missão de manutenção de paz de acordo a Carta das Nações Unidas”.
Neste sentido, os ataques à UNIFIL podem constituir um crime de guerra se houver uma “intenção” por trás para a prejudicar deliberadamente, salienta Neve Gordon: “Existem várias provas que as forças israelitas atacaram a missão da UNIFIL no sul do Líbano, mas, para que se constitua um crime de guerra, é preciso que haja provas de que esses ataques foram intencionais e não um erro”, explica.
Seguindo a mesma lógica, Janina Dill, da Universidade de Oxford, diz ao Observador que “atacar intencionalmente uma missão de manutenção da paz é proibido à luz do Direito Internacional e seria um crime de guerra”. Ainda assim, há que “fazer duas questões para uma avaliação legal” completa: “Se os incidentes são mesmo ataques e se esses ataques foram direcionados contra a UNIFIL, as suas infraestruturas ou os seus veículos”.
A docente universitária assinala que existem “provas no domínio público” que “sugerem” que Israel violou o Direito Internacional: “É um caso grave e não é uma violação muito comum do Direito Internacional Humanitário”. Mesmo que os ataques até sejam acidentais, continua Janina Dill, as ações israelitas levantam “sérias preocupações” sobre o respeito à “inviolabilidade das forças da ONU”.
Para Neve Gordon, as declarações de líderes israelitas, principalmente as de Benjamin Netanyahu, “sugerem que querem que as forças da UNIFIL saiam do sul do Líbano para que possam operar livremente”. O professor de Direito Internacional expõe que, como as forças de manutenção de paz recusaram fazê-lo, surgiram “uma série” do que o especialista chama “ataques de advertências” com a “esperança de que isso levasse as forças da ONU a abandonarem a área”.
Neste cenário, o professor da Universidade Queen Mary não tem dúvidas que os “ataques são deliberados”, logo são “crimes de guerra”. Na opinião de Neve Gordon, os capacetes azuis devem manter-se no sul do Líbano: “A sua presença tem a capacidade de diminuir os níveis de violência que Israel utiliza. Mesmo que Israel esteja a bombardear fortemente [o Líbano], se a UNIFIL não estivesse lá, temo que seria pior”.
Os dirigentes e especialistas israelitas têm uma interpretação diferente. Na visão de vários líderes de Telavive, a autodefesa vem em primeiro lugar e é mais importante do que propriamente a salvaguarda da proteção da missão de manutenção de paz. “Israel tem o direito inalienável de se defender contra qualquer agressor, incluindo a UNIFIL, quando esta não faz nada para prevenir que o Hezbollah ataque Israel nas redondezas das bases militares da UNIFIL”, sustenta Eytan Gilboa.
O professor de relações internacionais israelita destaca que o Hezbollah ataca Israel “de propósito” perto das bases das forças de manutenção de paz, uma vez que o grupo xiita acredita que isso lhe “vai conceder imunidade dos contra-ataques israelitas”. Eytan Gilboa descarta, assim, que os ataques sejam um “crime de guerra” — e deixa críticas a António Guterres: “Critica frequentemente Israel, mas ainda não condenou as atrocidades do Hamas e a agressão do Hezbollah. Por conta dessas falhanços, a sua queixa sobre as violações de Direito Internacional no sul do Líbano não passa de uma piada”.
A UNIFIL tem poderes limitados, reporta o sucedido no terreno ao Conselho de Segurança e apenas pode usar a força em autodefesa. O ministro dos Negócios Estrangeiros Israel Katz até vê aquela missão de manutenção de paz a “desempenhar um papel importante no day after após a guerra contra o Hezbollah”. Mas, por agora, os objetivos israelitas são os de fazer pressão os capacetes azuis — mesmo que isso signifique violar as leis estabelecidas pelo Direito Internacional.