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Era uma questão de tempo. Os dias de Portugal como “paraíso fiscal” para operações em criptomoedas estão contados. Ainda não se sabe quando — este ano já não deverá ser —  mas o Governo quer avançar com um enquadramento jurídico e tributário para estes negócios virtuais.

A iniciativa surge num momento de fragilidade nos mercados de criptoativos que nos anos recentes atraíram um fluxo crescente de dinheiro, de investidores e de curiosos. Em 2021, os ganhos com estes ativos somaram mais de 150 mil milhões de euros, de acordo com a consultora Chainalysis que atribui a Portugal uma fatia de 1,3 mil milhões de euros deste bolo.

Governo prepara modelo para taxar mais-valias em criptomoedas, mas não se compromete com data

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O Ministério das Finanças esclareceu entretanto ao Jornal de Negócios que o estudo pedido à Autoridade Tributária será finalizado nos próximos meses e inclui a avaliação dos desenvolvimentos internacionais. O Governo, acrescenta a mesma fonte, defende uma solução concertada a nível europeu, privilegiando a harmonização dos quadros nacionais no sentido da neutralidade.

Portugal é mesmo o paraíso fiscal das cripto?

Rodrigo Domingues admite que se entrarmos no rigor fiscal, Portugal pode não ser exatamente um paraíso fiscal, mas destaca também que “é aceite pelo Governo, pela AT (Autoridade Tributária) e pelos investidores que os ganhos com criptoativos não são sujeitos a tributação”. O tema não é novo e remete para atividade de comprar e vender moedas da qual também não se paga IRS, a não ser que faça dessas transações a sua atividade. “Mas aferir que estamos perante uma atividade não é claro do ponto de vista tributário nem jurídico e é uma discussão pouco densificada dentro da AT e dos tribunais”, refere.

A perceção de paraíso fiscal surgiu “em virtude da atual não tributação em sede de IRS de ganhos sobre as compras e vendas de criptomoedas, em consequência da inexistência de regras específicas no código do IRS, e da divulgação por parte da Autoridade Tributária de uma ficha doutrinária sobre ganhos com compra e venda de criptomoedas”, explica ao Observador Anabela Silva, partner da auditora e consultora EY. A especialista sublinha que a AT concluiu que estes “ganhos não poderiam ser tributados na Categoria E [rendimentos de capitais], dado que o que estava em causa era a venda de criptomoedas e não a aplicação de capitais, nem na Categoria G [mais-valias e incrementos patrimoniais], porque as criptomoedas não são partes sociais, não são valores mobiliários e também não são derivados, nem na categoria B [trabalho independente], a menos que se trate de uma prática reiterada que, como tal, corresponda ao exercício de uma atividade profissional”.

Numa newsletter de 2021, a Rogério Fernandes Ferreira & Associados questionou a tese de que Portugal é um paraíso fiscal, considerando que a AT apenas tomou posição em relação a um determinado tipo de transações que envolve um dos tipos de tokens digitais, a compra e venda de criptomoedas. E que, por isso, há outras transações com tokens digitais que podem gerar rendimento tributável em sede de IRS (ver pergunta 3). Por isso, aconselhava os contribuintes a manter o registo de todas as transações que justificassem os rendimentos, sobretudo se associados a despesas que pudessem ser vistas como potenciais manifestações de riqueza injustificadas. Não obstante, defendia a necessidade de ser criado um enquadramento jurídico e fiscal específico para esta atividade.

Que impostos cobram outros países? Os exemplos alemão e austríaco

Portugal é classificado em vários rankings internacionais como um dos pouco países em que a atividade de criptoativos não é tributada ao nível do IRS porque os rendimentos gerados não encaixam em nenhuma das categorias previstas (a não ser que seja uma atividade profissional). A lista divulgada em 2021 pela 3comas, uma empresa de consultoria nesta área, coloca Portugal no mesmo grupo de Malta, Dinamarca, Singapura, Eslovénia, Bielorrússia e Panamá.

Anabela Silva refere que a tributação destes ativos é muito variada entre os vários países, e depende da natureza dos rendimentos gerados (mais valias, rendimentos de capitais, ou profissionais e empresariais). E destaca o caso da Alemanha que emitiu recentemente regras que excluem de tributação os ganhos decorrentes da venda de critpomoedas (voláteis), como a bitcoin e a ether (da ethereum), se detidas por um período superior a um ano.

A Alemanha e a Áustria são modelos que estão a ser olhados como inspiração para Portugal. Na Alemanha se a posição de investimento for detida por um particular há mais de um ano não há tributação. Se o ganho for realizado no prazo inferior a um ano, mas num valor inferior a 600 euros também não é tributado. Em Portugal o intervalo temporal até um ano foi recentemente adotado para definir as mais-valias financeiras que devem ser englobadas no IRS e que para este efeito são catalogadas de especulativas.

A Áustria aplica dois regimes de tributação a investimentos em criptoativos. Quando estão em causa investimentos com juros, como um depósito ou uma aplicação num fundo com remuneração, o rendimento gerado, bem como eventuais mais-valias, são tributadas com uma taxa de 27,5%. Mas se não estiver em causa uma aplicação com juros, os ganhos com a venda ou troca (conversão entre várias criptomoedas) só são taxados se forem realizados em menos de um ano após o investimento. Se ultrapassarem esse prazo ficam isentos. A mineração é considerada rendimento de uma atividade profissional que é tributada com uma taxa progressiva.

O que são criptoativos ou token digitais?

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São formatos digitais construídos a partir de linhas de código informático aos quais é atribuído um determinado valor. São registados e controlados através de uma base de dados descentralizada — e sem regulação — que armazena todos os dados e transações efetuados numa linha temporal (blockchain) que traz transparência ao mercado e o protege de falsificações, segundo a newsletter de Rogério Fernandes Ferreira.

Há vários tipos de tokens. O mais conhecido é a criptomoeda bitcoin, uma moeda digital usada para fazer quase todas as operações que as moedas físicas, fiduciárias, permitem. O seu valor é igualmente variável, mas não são criadas pelos bancos centrais. Há também moedas estáveis (stablecoins) que indexam o seu valor a um ativo físico.

Os NFT (sigla inglesa para ativos não fungíveis) correspondem a representações codificadas em rede blockchain de ativos que podem ser físicos ou digitais, incluindo obras de arte ou até imóveis.

Que operações podem gerar ganhos e que rendimentos podem ser apanhados no IRS?

Segundo a referida newsletter do Rogério Fernandes Ferreira, as transações que podem gerar o pagamento de imposto são sobretudo:

  • A produção de tokens digitais através de mineração ou cunhagem;
  • Investimentos que passam por comprar e vender criptomoedas ou NFT ou obter rendimento destes ativos;
  • Receber criptoativos como pagamento de um bem ou serviço ou através de doações.

No IRS, está sobretudo em causa o enquadramento destes rendimentos como mais-valias (em caso de alienação), rendimentos de capitais (como investimento) ou atividade empresarial e ou profissional se existir trabalho dependente, refere Anabela Silva da EY.

Mas quando é que se considera que há um rendimento que deve ser tributado no mundo dos token digitais? O fiscalista da PwC, Rodrigo Domingues, aponta esta como uma das discussões centrais no enquadramento fiscal dos criptoativos. Na maioria dos países que já olharam para o tema, “só no momento em que há conversão para moeda fiduciária (dinheiro real) é que existe tributação”.

Já Anabela Silva admite que uma “eventual tributação poderá ser aplicável mesmo que não haja um ganho efetivo financeiro transposto para moeda fiduciária, já que as criptomoedas podem inclusivamente ser usadas como meio de pagamento de compras de bens e serviços. Em Espanha, tributam-se por exemplo as permutas (trocas de uma criptomoeda por outra criptomoeda), abrangendo, portanto, operações que não são transpostas para moeda fiduciária”.

Para além do IRS, que outros impostos estão em causa?

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, detalhou que a avaliação promovida pelo Governo desde 2021 abrange os impostos de selo e património, para além do IRS.

O imposto de selo aplica-se à generalidade das operações financeiras, designadamente em utilizações de crédito, refere o partner da PwC.

Segundo Anabela Silva da EY, “poderão estar em causa as transmissões gratuitas, já que, por exemplo, atualmente, estão sujeitas a imposto do selo (com algumas isenções) as transmissões gratuitas de participações sociais, valores mobiliários e direitos de crédito associados, ainda que transmitidos autonomamente, títulos e certificados da dívida pública, bem como valores monetários, ainda que objeto de depósito em contas bancárias (não sendo as criptomoedas abrangidas por não corresponderem a estas realidades), bem como operações de financiamento que envolvam criptomoedas”.

Já no que toca a impostos sobre o património, os fiscalistas ouvidos pelo Observador têm mais dúvidas. “Julgo que não estará em causa a criação de um imposto sobre a riqueza (já que em Portugal o mesmo não existe para outras realidades)”, afirma Anabela Silva. Rodrigo Domingues da PwC também remete para o caso de países como o Luxemburgo, onde há impostos sobre fortunas, o que “não existe no ordenamento fiscal português”, que não tem uma taxa sobre o património global.

Por outro lado, a aquisição de imóveis, mesmo que pagas com criptomoedas, será sempre sujeita a IMT, refere a fiscalista da EY. Ou seja, já paga este imposto no atual quadro. Rodrigo Domingues recorda que foi recentemente noticiada a compra de uma casa com bitcoins, mas foi um contrato de permuta. O comprador entregou 3 bitcoin ao vendedor e foi feita a transferência de uma wallet (carteira virtual) para a outra que foi validada por um notário. Ou seja, o comprador paga IMT e imposto de selo nesta operação.

Quanto vale o mercado das criptomoedas?

Dados divulgados pela plataforma e consultora Chainalysis em abril apontam para ganhos de 163 mil milhões de dólares (155 mil milhões de euros) nos mercados de criptomoedas. Um grande salto face aos 32,5 mil milhões de dólares registados em 2020. Para chegar a estas estimativas, que a consultora admite não serem perfeitas, é medido o fluxo de depósitos e aplicações mobilizadas para estes ativos e calculada a diferença em dólares de todos valores levantados face aos depósitos destes ativos. Para distribuir os ganhos por país, a Chainalysis usa o tráfego online com origem em cada país nos sites das corretoras (exchanges).

De acordo com estes dados, os fluxos associados a Portugal geraram ganhos de 1,4 mil milhões de dólares (1,3 mil milhões de euros), o que nos coloca em 25.º lugar numa lista liderada pelos Estados Unidos, seguidos a uma grande distância pelo Reino Unido, Alemanha, Japão, China, Turquia, Rússia e França. A bitcoin e a ether (da ethereum) foram a fonte de mais de 90% destes ganhos.

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No entanto, em 2022, o cenário de ganhos fabulosos não estará, para já, a repetir-se. “As duas últimas semanas foram difíceis para estes investimentos em resultado da quebra de uma stablecoin (moeda estável) algorítmica que causou medo e incerteza nos investidores”, refere o partner da PwC, Rodrigo Domingues, ao Observador. O fiscalista aponta outros fatores que explicam algum arrefecimento deste mercado.

“Quando há subida das taxas de juro, isso funciona como um incentivo para canalizar investimento para produtos de dívida” mais tradicionais. Por outro lado, a guerra e os seus efeitos na economia também “estão a penalizar quase todos os mercados financeiros”. Apesar de valer quase 30 mil dólares por unidade, a bitcoin está a perder quase 36% desde o início do ano.

Que dúvidas suscita o atual quadro fiscal português?

Anabela Silva, partner da auditora EY, dá exemplos das questões que permanecem em aberto, sobretudo na categoria B onde são declarados e tributados a maioria dos rendimentos que não resultam do trabalho dependente.

A fronteira é ténue entre investimento e exercício de atividade profissional com caráter de habitualidade, devido, entre outros aspetos, à (i) frequência das transações / período de detenção; (ii) montantes elevados por comparação com os rendimentos do trabalho dependente / rendimentos empresariais e profissionais; (iii) uso de algoritmos para realizar transações.

Relativamente aos Non Fungible Token (NFT) haverá que distinguir o eventual rendimento auferido pelo artista ou criador do NFT como potencial rendimento profissional ou empresarial em resultado da mera compra e venda desse NFT.

Os rendimentos provenientes da atividade de mineração de criptomoedas poderão ser tributáveis como sendo empresariais ou profissionais, no âmbito da categoria B.

Dado o caráter residual dos ganhos de capitais, alguns provenientes da detenção de criptomoedas poderão gerar rendimentos da categoria E (por exemplo, contas de criptomoedas geradoras de juros).

A fiscalista da EY sublinha ainda que o facto de não existir um enquadramento específico sobre as criptomoedas “é suscetível de poder vir a gerar no futuro diferentes interpretações entre a Autoridade Tributária e os contribuintes quanto à respetiva tributação no caso do IRS. Por outro lado, refere também, que se os ganhos forem auferidos na esfera de empresas serão tributados em sede de IRC.