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Cristina Guerra: "Um Ministério da Cultura que não sabe o que faz nem precisa de existir"

A mais conhecida das galeristas portuguesas, Cristina Guerra diz que falta estratégia à política cultural. Na semana em que arranca a ArcoLisboa Online, comenta a crise e a reabertura da economia.

Trabalha com arte conceptual e gosta de sublinhar isso. “Quem aqui chega tem mesmo de estudar um pouco os artistas”, resume. “Há quem ache isto um pouco intelectual, à partida não são peças decorativas.”. Na cave do número 33 da Rua de Santo António à Estrela, em Lisboa, com vista para obras de João Onofre e Matt Mullican, a galerista fala rapidamente sobre criadores que representa e ganha balanço para uma conversa com um mote e três temas.

Com a reabertura de museus e galerias na segunda-feira, conforme decidiu o Governo no contexto pós-confinamento, importa ouvir de Cristina Guerra — uma das mais antigas galeristas portuguesas em atividade e certamente a que primeiro procurou internacionalizar-se, através das feiras de arte — o que pensa da crise económica que se instalou, do mercado da arte contemporânea e da ArcoLisboa online.

A feira internacional de arte organizada desde 2016 na capital portuguesa pelos espanhóis da IFEMA (Feira Internacional de Madrid, ou seja, a conhecida ArcoMadrid) anunciaram em abril o cancelamento da edição 2020, que teria acontecido entre 14 a 17 de maio, na Cordoaria Nacional. E há dias fizeram saber que uma versão adaptada e exclusivamente digital acontecerá a partir desta quarta-feira, 20, durante quatro semanas em arcolisboa.com.

Ao Observador, durante duas horas, Cristina Guerra disse o que pensa sobre o atual Ministério da Cultura (e não pensa o melhor) e lembrou problemas de anos que considera não estarem resolvidos por incúria de sucessivos governos. “Há dinheiro, claro que há dinheiro, falta é vontade e cabeça”, afirmou. Incisiva como sempre.

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Nascida há 65 anos em Lisboa, numa família de médicos e advogados, é filha de um colecionador de arte e desde cedo começou a frequentar exposições. Esteve para seguir medicina mas optou estudar por geologia e só depois se aproximou do negócio da arte. Por volta de 1981 estreou-se na Galeria Ana Isabel, no Centro Comercial Gemini, e depois esteve na Quadrum, da mítica galerista e colecionadora Dulce d’Agro (1915-2011). Criou a César em 1997, a meias com Filomena Soares, e no ano do ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque surgiu em nome próprio.

Quando há 17 anos começou a frequentar a Art Basel, na Suíça, uma das mais importantes feiras de arte contemporânea, era tratada como “a portuguesinha”, num tom supostamente carinhoso que denunciava o espanto dos pares perante aquela representante de um país sem nome na cena artística. Mas, ao que conta, abriu as suas próprias portas da internacionalização e depois ajudou outros portugueses a passarem por elas.

Hoje marca presença em inúmeras feiras, integra o comité de seleção de galerias da ArcoMadrid e da ArcoLisboa, é capaz de estar em inaugurações em Nova Iorque num dia e regressar a Lisboa menos de 24 horas depois. Negociar arte, estar com as pessoas, discutir com colecionadores e diretores de museus tornou-se há muito o seu modo de vida.

Trabalha sobretudo com homens, 25% dos quais são portugueses que gerem empresas. A galeria que dirige conta cerca de três dezenas de artistas em carteira. Julião Sarmento, André Cepeda, Filipa César, Ângela Ferreira e Paiva e Gusmão são apenas alguns dos portugueses.

Cristina Guerra (à esq.) na apresentação da ArcoLisboa 2018 na Câmara Municipal de Lisboa

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

As pequenas e médias galerias é que sustentam o sistema internacional da arte, disse em entrevista recente ao Observador a curadora Deborah Harris, antiga diretora-adjunta do Armory Show. Concorda?
Completamente. São as pequenas e médias galerias que introduzem novos artistas e apostam naqueles que ainda estão a crescer. As grandes limitam-se a ter nomes já reconhecidos. Para nós, é muito caro ir a uma feira de arte e aí estamos a concorrer com as grandes galerias, que são a minoria, diria que há umas 20 a 30. Ora, sem as pequenas e médias, uma feira não existe, e no entanto todas pagam o mesmo para lá estar. A questão é que as feiras são o melhor meio para introduzir novos artistas, ou artistas pouco conhecidos, no meio internacional.

Como define a sua galeria?
É uma galeria média-alta. Somos a 60.ª galeria a nível internacional, o que é ótimo, sendo portuguesa.

Isso é medido em função das vendas?
Não. É em função da legitimidade que nos reconhecem, em função daquilo que expomos e da forma como trabalhamos. São fatores qualitativos. Só se entra em certas feiras porque nos submetemos a um comité de seleção, com critérios bastante apertados. Quando se consegue entrar, temos de nos aguentar e isso só se consegue com qualidade objetiva. Há quatro ou cinco anos em Basel — e no próximo ano faz 18 anos que lá estamos —, mandaram-nos uma carta a aprovar a nossa participação, mas com uma ressalva: para termos cuidado com as obras que mostrava. Tinha tentado ser um pouco mais comercial e imediatamente fui chamada à atenção. Na altura, era a única galeria portuguesa em Basel, hoje está a Pedro Cera no programa geral e a Madragoa. Grandes galerias como a Hauser & Wirth, a David Zwirner ou a Gagosian vendem uma só obra por um milhão, por isso não têm problema nenhum em pagar 120 mil euros para estar numa feira. Nós que vendemos maioritariamente obras de seis mil ou 15 mil, e só ganhamos metade, menos impostos, temos de vender tudo o que levamos a uma feira e mesmo assim temos prejuízo. Mas se tentarmos facilitar um pouco, se tentarmos um caminho um pouco mais comercial, chamam-nos imediatamente à atenção. O que estas feiras querem de uma galeria são obras com a máxima qualidade, caso contrário também não seriam as melhores.

Isso significa que o mercado da arte contemporânea vai entrar em crise. Ou não? Por causa do coronavírus, as pequenas e médias galerias estiveram fechadas durante longas semanas e houve muitas feiras canceladas.
Neste momento temos o mesmo problema tanto no turismo como na restante economia, ou seja, as regras de afastamento entre pessoas. As galerias vivem de confiança e proximidade. Mostrar arte visual apenas através de plataformas digitais é uma aproximação, pode até despertar o interesse dos compradores, mas não tem a afetividade, a emoção e o contacto. As pessoas que trabalham numa galeria têm de ter uma relação real com os clientes. Se eles conhecem muito bem a obra de um artista, são capazes de escolher virtualmente, mas por norma, principalmente quando os artistas não têm carreiras internacionais, o cliente precisa de sentir a obra presencialmente, de falar, de conversar, de perceber.

Como serão os próximos tempos?
Estive na ArcoMadrid em fevereiro e houve clientes, principalmente mexicanos, colombianos e franceses, que efetivaram a compra de obras, mas entretanto ficou tudo em stand by. Não quer dizer que não venham a comprar, mas houve uma hibernação por causa da pandemia. As pessoas entraram em pânico, é normal. Por isso, agora tenho de esperar calmamente e ver se as pessoas continuam interessadas ou não.

"É sempre importante termos uma feira, para dinamizar o mercado e chamar a atenção para a arte contemporânea", diz Cristina Guerra sobre o número de visitantes da ArcoLisboa

RODRIGO GATINHO

É normal um comprador não pagar logo?
É normal, antes de uma aquisição, a pessoa ficar a pensar, às vezes demora meses, salvo raras exceções.

Mas também não leva a obra para casa.
Não leva, a não ser que conheçamos muito bem essa pessoa e exista uma relação de grande confiança.

Num contexto normal, o galerista deve esperar silenciosamente pelo contacto do cliente que mostrou interesse durante uma feira?
Depende das características do galerista. Tenho obras um bocado difíceis, não são daquelas em que a pessoa olha, gosta e resolve. É preciso conhecer um pouco o artista.

Insiste com eles?
Se conheço bem o cliente, seja um particular ou um diretor de museu, ajudo a quebrar a indecisão. Explico melhor a obra, falo com as pessoas para que compreendam melhor. É uma pressão muito relativa. A pressão comigo não resultaria. Se entro numa loja e começo a ter uma pessoa atrás de mim para me vender seja o que for, digo-lhe logo: “Estou a ver. Se me interessar, depois pergunto.” Para mim, o galerista deve dar uma explicação sobre as obras e procurar conhecer os interesses do cliente. Acontece que vivo essencialmente de colecionadores, pessoas que conhecem, sabem e gostam de arte. Com essas estabeleço uma relação de confiança muito grande. Tenho colecionadores que me ajudam a pensar, que me ensinam coisas. É uma troca muito interessante. Há um lado social, intelectual e de cultura que se estabelece.

Há telefonemas, almoços, jantares?
Por exemplo, tenho um cliente colombiano que mostrou interesse em comprar uma obra, mas que ainda não comprou. Chegámos da ArcoMadrid a 6 ou 7 de março, entrou esta maluqueira “covidiana”, como eu digo, e é normal que a pessoa até hoje não tenha dito mais nada. Estou à espera que tudo acalme e vou-lhe telefonar a perguntar se sempre continua interessado nessa obra.

Se ele disser que não?
Paciência, é a vida. Anulo a fatura e acabou. A vida não é sempre como gostaríamos que fosse.

Uma venda não concretizada é uma grande frustração?
Temos sempre frustrações, mas também alegrias. Umas coisas compensam as outras. Há uma luta contínua, temos de acreditar no que fazemos, por mais contratempos que tenhamos. Sou uma mulher feliz, faço aquilo de que gosto. No dia em que achar que já não gosto, mudo de ramo.

Tem crises de confiança e de ânimo?
De confiança, não. Sou muito teimosa e tenho convicções fortes, mas às vezes apetece-me desistir, claro. No contexto português é tudo tão difícil que às vezes apetece desistir. É um facto que somos um país pequeno, os colecionadores são poucos e a nível governamental a desgraça é total.

Que desgraça total é essa?
Repare que não temos em Portugal uma burguesia culta. São muito poucos os que se interessam realmente por cultura. Os governos são completamente ignorantes em relação a estas coisas, nunca se interessaram.

Está a criticar o facto de os museus públicos não terem orçamento para comprar arte contemporânea?
Vou responder com uma história. Há uns anos, a Inês de Medeiros, que conheço bem, convidou-me para um encontro com o então candidato a primeiro-ministro, dr. António Costa. Era um encontro informal, com várias pessoas da cultura. Eu disse que não ia, mas ela insistiu e resolvi ir. Estavam 40 ou 50 pessoas, era uma discussão sobre cultura, com uma plateia num clube de jazz, algo assim. Quando falei, perguntei ao dr. António Costa quem é que seria o ministro da Cultura. Era a única coisa que me interessava saber. Ele sorriu. Eu acrescentei: de preferência, alguém que se interesse por cultura; se não perceber nada, que seja suficientemente inteligente e se rodeie de pessoas que se interessam. Não é preciso um ministro saber, precisa é de ter a inteligência de perceber o que é preciso, munindo-se de pessoas que sabem. Não desgosto da atual ministra da Cultura, é uma pessoa que dá a cara, que responde. Agora, veja aquele episódio do festival de um milhão de euros na RTP: como é que uma ministra resolve ser programadora? Não pode, não pode.

Mas a ministra recuou e cancelou esse festival.
Ainda bem que recuou, mas como é que uma pessoa pensa, sendo ministra, que pode ser programadora? É uma loucura.

"A Inês de Medeiros, que conheço bem, convidou-me para um encontro com o então candidato a primeiro-ministro, dr. António Costa. Quando falei, perguntei ao dr. António Costa quem é que seria o ministro da Cultura. Era a única coisa que me interessava saber. Ele sorriu."

É assim tão importante o titular da pasta? Ou conta mais a política e o orçamento que um determinado Governo decide ter para a cultura?
Pois, o problema é que tem de haver uma ideia para a cultura e tem de se seguir essa ideia. Até pode não ser a minha. Nunca teria havido Descobrimentos se não houvesse uma ideia e uma vontade. Ouvi agora uma entrevista de um colecionador, que por acaso conheço bem, no podcast de um espaço cultural e ele estava preocupado com o valor das pensões de reforma. Não me interessa nada o valor das pensões. O que me interessa é que haja mais economia para subir o valor das pensões. A cultura é muitíssimo importante, faz parte da vida das pessoas e elas têm que lhe ter acesso. Tem de se fazer o melhor possível com o mínimo de dinheiro. Para isso, tem de haver linhas de orientação. Espero que o primeiro-ministro, agora que está rodeado de arte na residência oficial, comece a olhar para as coisas com atenção e a interrogar-se. A partir do momento em que há interesse, começa a pensar em como fazer as coisas acontecerem.

Que pensa da verba que o Ministério da Cultura disponibilizou para compra de obras para a Coleção de Arte Contemporânea do Estado?
Não se resolve o assunto com 300 mil euros [montante para 2019, que ascende a 500 mil em 2020, confirmou esta semana a ministra Graça Fonseca]. Nem tenho ligado, 300 mil euros não é nada. Acho abominável da parte do Governo e da parte de quem aceita. É uma espécie de esmolinha. Detesto esmolas. Precisamos de uma ideia real para a cultura, um projeto com cabeça tronco e membros. Coisas avulsas não dão em nada. São 300 mil euros para nos calarem a nós e aos artistas? Não me interessa. Isto é governar de forma avulsa.

Num país com tantos problemas na educação, na justiça, na saúde, os contribuintes aceitariam aumentos exponenciais do orçamento da cultura?
Para já, o orçamento da cultura continua a não ser 1% do total do orçamento. Prefiro que ponham a economia a funcionar. Um Ministério da Cultura que não sabe o que faz nem precisa de existir. O Ministério devia pensar no que quer fazer e arranjar o dinheiro para isso, em vez de medidas avulsas para calar este ou aquele sector. Isso é tapar buracos. O Museu do Chiado não funciona de maneira nenhuma porque nem tem orçamento. É uma loucura. Mas o Centro Cultural de Belém e Serralves têm dinheiro do Estado. Tenho quase 20 anos nesta galeria e Serralves comprou-me até hoje duas pinturas pequenas e uma grande do José Loureiro e outra do Yonamine. Para mim, isto não é normal. Não sei o que compraram a outras galerias, mas terá sido certamente pouco. A Caixa Geral de Depósitos não compra arte há mais de 20 anos e é o banco público. Somos os pobrezinhos da Europa, não por falta de dinheiro, mas por falta de vontade. Há corrupção por todos os lados e aí não se fala dos problemas de saúde e de educação. Nós somos pobrezinhos, mas é de cabeça. A minha galeria é portuguesa, está nas feiras internacionais e mantém-se sem a ajuda do Estado. Em França, na Áustria, em Espanha o Estado subsidia as galerias que conseguem participar nas feiras de referência, desde que exponham alguns artistas dos respetivos países. Onde é que vemos governantes portugueses? Na ArcoMadrid. Não há um único que decida ir a Basel para perceber como funciona e o que acontece.

"Não me interessa agradar a ninguém, interessa-me fazer coisas. Ainda vivemos em democracia, julgo eu. Se alguém puder ler esta entrevista e ficar a pensar, tanto melhor. Se ficarem muito aborrecidos, paciência."

Em duas décadas nunca viu um representante do Governo português em Basel?
Nunca. Os ministros vão a Madrid, porque é aqui ao lado, é mais fácil, é Península Ibérica. Enquanto governantes portugueses ainda são importantes em Espanha. Se forem a Basel, à Frieze ou à FICA são apenas pessoas anónimas. Não sei se é isto, talvez seja. Nestas coisas, sou radical. Como sou apaixonada pelo que faço, quando me proponho fazer é mesmo para fazer. Meias-tintas, não. Repare que agora há 150 mil euros para compras na ArcoLisboa [investimento da Câmara de Lisboa]. É um orçamento muito pequeno, mas já é alguma coisa. Tem que haver uma política de aquisições séria e pensada. O mundo da arte contemporânea é elitista, não por ter uma elite rica, mas por ter uma elite culta, e infelizmente muitos portugueses continuam afastados por, entre outras razões, não terem um museu de arte contemporânea onde haja exposições permanentes que possam visitar. Não existe. As pessoas não têm referências.

Serralves não é essa referência?
Sim, mas não tem uma exposição permanente, tem exposições temporárias. Quem quiser ter a noção do que se faz em arte contemporânea — e já não falo dos artistas de outros países, que deveríamos comprar, ou então deveríamos tomar conta de coleções que andam por aí abandonadas, como a da Fundação Ellipse — não tem onde ir. O Museu Berardo tem uma exposição permanente, mas se for lá duas vezes num ano continua a encontrar as mesmas obras. Não há nada de novo, claro, as coleções são finitas quando não há aquisições. Temos de ter um museu de arte portuguesa e arte internacional, para que as pessoas comecem a ter referências da arte que se faz hoje. Um museu legitima os artistas, dá referências. Os nossos governantes têm poucas referências, porque veem pouco. Talvez vão ao Museu do Louvre ou ao Grévin nas férias.

Consta que há pelo menos três clientes institucionais na ArcoLisboa: Serralves, Gulbenkian e Câmara de Lisboa. É assim?
São poucos e temos que saber os valores que essas instituições gastam e comparar isso com o valor médio das obras. Mas há outros privados com compram na Arco: PLMJ; António Cachola, que no fundo é um privado institucional [através do MACE — Museu de Arte Contemporânea de Elvas]; ou o José Lima [Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira]. Depois há os particulares, que realmente mantêm as galerias.

Mas não é sempre assim que funciona o mercado da arte: menos clientes institucionais e mais particulares?
Deveríamos ter ambos. Além disso, para mim o Estado tem obrigação de pôr a lei do mecenato a funcionar, para que os particulares possam fazer doações e tenham um benefício nos impostos. Se assim fosse, se calhar não precisávamos de 300 mil euros para comprar obras para a coleção do Estado. A questão é que o Estado precisa de um nível brutal de impostos em virtude da nossa dívida pública que é monstruosa. Andamos há muito tempo numa “pescadinha de rabo na boca”. Estou nas artes há uns 40 anos e sempre ouvi dizer que não há dinheiro. O António Cachola tem uma coleção de arte contemporânea portuguesa maior do que a do Estado. Ele é um privado, assalariado, a trabalhar numa empresa. A diferença entre ele e o Estado é a vontade. É simplesmente isso, a vontade, o querer fazer, o perceber, o gostar. Há dinheiro, claro que há dinheiro, falta é vontade e cabeça.

A forma tão direta como apresenta as críticas talvez seja pouco habitual. Acaba prejudicada enquanto empresária?
Não sei se me prejudica, mas tenho de dizer aquilo que penso. Não me interessa agradar a ninguém, interessa-me fazer coisas. Ainda vivemos em democracia, julgo eu. Se alguém puder ler esta entrevista e ficar a pensar, tanto melhor. Se ficarem muito aborrecidos, paciência. Vários ministros e governantes já se quiseram reunir comigo, já apresentei a intenção de ajudar, inclusivamente com um grande colecionador que também tem vontade de o fazer, mas pelos vistos nunca há tempo para que as coisas possam avançar.

Ou seja, já se reuniu com representantes de vários governos…
E depois nada acontece. Ora, tem de haver uma estratégia. Sou muito objetiva. Claro que tenho um lado emocional, porque me apaixona trabalhar nesta área. Se fosse apenas racional, nem tinha uma galeria, fazia segundo mercado, trabalhava menos e se calhar pagava menos impostos. Tenho de tentar fazer coisas e tentar mudar o que não funciona. Há muito medo em Portugal e isso é um problema.

Esse medo é estrutural ou está relacionado com a pandemia do coronavírus?
É estrutural. Tenho outra forma de estar, estou viva. No tempo da II Guerra Mundial, nunca teria estado metida num buraco à espera que a guerra passasse, entrava para a Resistência, matava ou morria. Em relação à covid-19, tenho cuidado, mas a minha vida não é hibernar, preciso de ar. Se deixarmos de viver, estamos mortos.

"Temos de ter um museu de arte portuguesa e arte internacional, para que as pessoas comecem a ter referências. Os nossos governantes têm poucas referências, porque veem pouco. Talvez vão ao Museu do Louvre ou ao Grévin nas férias."

estudos que apontam um abrandamento em 2019 no mercado global da arte. Ou seja, antes da pandemia. Já sentia essa quebra? Com a crise de saúde a quebra pode acentuar-se?
Não sabemos ainda. Sou uma otimista, mas acho que estamos em crise desde a bancarrota de 2011. Você olha para os sucessivos governos, para os nossos governantes, e vê as mesmas caras há demasiado tempo. São pessoas muito pesadas. Pior: são só políticos, nunca fizeram nada na vida a não ser política, com algumas exceções. Aqui concordo com aquele antigo ministro, Medina Carreira. Os nossos políticos são, na sua maioria, teóricos que vivem para a política, sem noção nenhuma da realidade. A realidade é muito mais dura. Ser político não deve ser fácil, admito. Por exemplo, acho que António Costa é um grande político, uma pessoa sem complexos, um otimista, etc., mas também um grande sofista. Os portugueses não são burros, é preciso dizer-lhes a verdade.

Os seus empregados, que penso serem três, ainda estão em lay-off?
Estiveram em lay-off no mês de abril. Fechámos a 13 de março. Desde o início de maio, estamos em lay-off parcial e trabalhamos quatro horas da parte da tarde, das 15 às 19h00. Ou seja, em vez de reabrirmos no dia 18, o dia todo, já estamos a trabalhar desde o dia 4. O mundo não pode parar por causa de uma doença. Não tive as portas abertas ao público, mas se viesse aqui um cliente eu atendia-o. Com máscara, com a distância devida, mas atendia-o. Chama-se a isto bom senso.

Quando é que prevê inaugurar uma nova exposição?
Espero que seja a 25 de junho, exposição que deveria ter inaugurado a 22 de março.

Está a dizer que a forma como o Governo geriu a crise não foi do seu agrado?
Acho que a geriu bem. Não tínhamos ventiladores nem máscaras, ninguém estava preparado para isto.

O Ministério da Cultura ou a Direção-Geral da Saúde informaram-na sobre regras a cumprir na reabertura?
Não. Vamos cumprir regras de bom senso. Os funcionários estão de máscara, como já estão hoje. Caso chegue um cliente, terá de a usar também. Estou a dar esta entrevista e estamos a dois metros um do outro, sem máscara. Foi instilada uma ideia de pânico e de medo que as pessoas interiorizaram. Ninguém quer que ninguém morra ou fique doente, mas uma economia não pode nem deve parar e temos de ter bom senso.

João Onofre é um dos artistas representados por Cristina Guerra

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Fale-nos da ArcoLisboa online, que começa na quarta-feira. Vai servir para quê?
No fundo, é uma forma de chamar a atenção.

Manter a marca viva?
Exatamente. Não deixar passar o ano sem que a ArcoLisboa apareça.

Espera fazer bons negócios?
Pode ser que sim, pode ser que não. Houve quem encarasse isto de forma cautelosa, porque era, e é, uma epidemia. Houve pessoas que ficaram paralisadas pelo medo. O medo paralisa. Houve pessoas que conheço que nem iam dar uma volta ao quarteirão. Tenho de ter uma atitude positiva.

A ArcoLisboa já teve quatro edições e o número de visitantes não arranca. Foram 11 mil em 2019 e em 2018, tinham sido 15 mil em 2017 e 13 mil em 2016. É grave?
É sempre importante termos uma feira, para dinamizar o mercado e chamar a atenção para a arte contemporânea. Espero que haja um aumento de visitantes nas próximas edições, com uma retoma de turismo cultural mais qualitativo e menos quantitativo. Precisamos de turismo e eventos de qualidade, que valorizem a nossa cultura.

O online vai instalar-se como tendência, por causa desta crise?
Será uma ferramenta mais presente, que deverá ser mais bem trabalhada. Não acho que possamos prescindir do contacto pessoal e de ir a feiras de arte, que são absolutamente necessárias.

Fala-se muito da “fairtigue”, a fadiga das feiras de arte.
O problema é que as feiras são caríssimas e há imensas. Há um lado positivo nesta crise. Até agora vendia-se muito “gato por lebre” e a partir de agora acho que as pessoas vão pensar mais no que compram. Os mercados estavam muito dirigidos. Compravam de qualquer maneira a preços astronómicos, porque hoje valia 10 e amanhã podiam valer 50. Ninguém adquire sem estudar e compreender a obra de um artista. A arte não é a bolsa de valores. Pode ter um lado de investimento, mas também tem que ter um lado emocional, afetivo, tátil. É preciso sentir.

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