A denúncia chegou à Polícia Judiciária (PJ) de Ponta Delgada em 2017: “O Farfalha está novamente a receber miúdos na garagem”. Os inspetores não queriam acreditar que, passados quase 15 anos, a história se repetia. O protagonista do caso de pedofilia que escandalizou o país em 2003 — já abalado pelo processo Casa Pia, tornado público no ano anterior — tinha cumprido oito dos 14 anos de prisão a que tinha sido condenado. Estava em liberdade condicional desde 2014 e, talvez, a cometer os mesmos crimes.
Essa possibilidade deixou a PJ em pânico. A denúncia podia significar que José Augusto Pavão, conhecido como “Farfalha” na cidade de Lagoa, na ilha de São Miguel, era novamente o cabecilha de um esquema de abuso sexual de menores — que, no caso de 2003, lhe deu a alcunha de “Bibi dos Açores” — e poderia estar há já três anos a gerir, novamente, uma rede de pedofilia a partir da sua garagem.
Foi exatamente a essa garagem — a poucos metros da casa onde Farfalha vivia e continua a viver com a mãe — que a PJ se deslocou mal recebeu a denúncia. Na equipa de investigação havia inspetores que tinham já investigado o caso de 2003. Alguns entraram, por isso, naquela garagem pela segunda vez.
A garagem de Farfalha era o espaço para o qual o homem atraía crianças de bairros pobres para depois serem abusadas sexualmente por outros adultos seus conhecidos — isto no esquema de 2003. Além de Farfalha, outros 17 homens que frequentariam aquele espaço também foram julgados por juízes e jurados: entre eles, dois irmãos de José Augusto Pavão, um médico, um bancário e empresários da zona. Apenas três foram absolvidos. À data, o acórdão do Tribunal de Ponta Delgada deu como provado que a garagem tinha sido adaptada para criar um “ambiente propício à desinibição” das crianças.
Em 2017, a PJ encontrou-a praticamente igual, transformada num “espaço de convívio”. Ali estava, de novo, um sofá, uma televisão, algumas decorações na parede e “umas bebidas”, descreveu ao Observador fonte da PJ. A investigação viria a apurar, porém, que, apesar de o espaço estar quase intocado, o caso, ainda que igualmente grave, era diferente do de 2003: “Não tinha exatamente os mesmos contornos”, acrescentou a mesma fonte.
Levado de novo à justiça, José Augusto Pavão foi acusado de três crimes de violação de menores, um crime de coação sexual de menor, dois crimes de recurso à prostituição de menores e um crime de tráfico de estupefacientes agravado. O julgamento arranca esta quinta-feira, no Tribunal de Ponta Delgada, nos Açores.
Quinze anos depois, um caso diferente. Farfalha terá aliciado jovens com haxixe e dinheiro
Aquilo que agora chega a tribunal tem, desde logo, uma grande diferença: ao contrário do que aconteceu em 2003, não há registo de abuso sexual de crianças. Em 2017, as alegadas novas vítimas de Farfalha tinham 16 anos ou mais. “Abriu-se a investigação e identificaram-se algumas pessoas: jovens entre os 16 e os 18 anos”, conta fonte da PJ. Além disso, desta vez, as vítimas não seriam postas à disposição de outros homens. Os menores seriam abusados sexualmente apenas por Farfalha.
Quando é que terá começado? É difícil dizer com certeza. José Pavão saiu em liberdade condicional em 2014 e voltou a viver com a mãe na casa ao lado da garagem, no concelho de Lagoa. “Após sair, voltou a relacionar-se sexualmente com jovens. Mas não crianças: eram rapazes de baixa condição económica e financeira”, adianta fonte ligada ao processo, detalhando que as vítimas viviam naquela zona.
Essa condição seria fundamental para que os abusos acontecessem: Farfalha é acusado de aliciar as vítimas oferecendo-lhes droga, nomeadamente haxixe, mas também dinheiro.
Alguns desses encontros aconteceram na garagem, mas “as práticas relativamente às quais há indícios mais fortes aconteceram no exterior”, diz fonte da PJ, explicando: “Há situações em que o suspeito oferece uma boleia a um jovem, mas depois não lhe dá boleia para onde ele quer. Em vez disso, terá levado a vítima para o meio do pasto, onde se terão consumado as práticas sexuais” com o menor. Há ainda a suspeita de que tenha sequestrado uma das vítimas e tenha depois havido uma violação.
Mãe de Farfalha alega que as vítimas deram consentimento — o que pouco importa em julgamento
José Augusto Pavão nega ter cometido todos os crimes e garante que o que quer que tenha acontecido foi com o consentimento das vítimas. Foi nisso que insistiu numa entrevista à CMTV, em junho deste ano. “Se eu fizesse mal à senhora, a senhora amanhã estava comigo? Falava comigo? Andava comigo?”, questionava. Ao que o Observador apurou, pelo menos um dos menores terá voltado a ter “contactos sexuais gratificados” com ele, uma segunda vez.
Também a mãe do suspeito defende o filho e culpa as vítimas. “Não são menores, isso já são prostitutas e prostitutos”, insistindo que as relações eram consensuais e desejadas por ambas as partes.
Se esta for a defesa de Farfalha perante o juiz, terá pouco ou nenhum impacto na decisão final, acredita Miguel Matias, o advogado que representou as vítimas no caso Casa Pia. Isto porque, explica, mesmo que tivesse havido consentimento por parte dos rapazes, “a lei não lhes reconhece essa capacidade”. Mesmo sendo adolescentes que “já têm noção do que é que está a acontecer” — ao contrário das crianças que não têm essa consciência —, a lei “não lhes reconhece a capacidade jurídica para o consentimento” — pelo contrário, cabe ao adulto saber que o comportamento é errado e impedir que aconteça.
Além de um crime de tráfico de estupefacientes agravado (relacionado com a suspeita de os menores serem aliciadas com droga), Farfalha está acusado de seis crimes sexuais: três de violação de menores, um de coação sexual de menor e dois de recurso à prostituição de menores. Todos remetem para situações diferentes. “Na violação, a pessoa é apanhada, agarrada e obrigada a ter a relação sexual fisicamente. A coação sexual está relacionado com o manietar da capacidade de resposta da pessoa, para depois ter o ato sexual, podendo não vir a existir esse ato sexual”, explica Miguel Matias ao Observador. Já o crime de recurso à prostituição de menores pune quem “praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 18 anos, mediante pagamento ou outra contrapartida”, lê-se no Código Penal.
A violação de menores e a coação sexual de menores estão previstas no artigo 173.º do Código Penal, que diz respeito ao crime de atos sexuais com adolescentes. O de recurso à prostituição de menores configura um crime por si só — o artigo 174.º. Todos eles são crimes contra a autodeterminação sexual. “O bem jurídico protegido pela lei, e que as pessoas que cometem esses crimes violam, é sempre a falta de capacidade para autodeterminação sexual. Uma pessoa com mais de 18 anos é uma pessoa com autodeterminação sexual. Com menos, não”, explica Miguel Matias. E é por isso que pouco importa, em tribunal, se houve ou não consentimento, uma vez que todas as vítimas tinham menos de 18 anos.
Apesar de acusado neste novo processo, Farfalha está a aguardar em liberdade o julgamento, que arranca amanhã. Há uma previsão que, desde já, pode ser feita: o crime de atos sexuais com adolescentes é punido com pena de prisão até três anos — e o arguido terá cometido quatro (três de violação de menores, um de coação sexual de menor). O crime de recurso à prostituição de menores é punido com pena de prisão até três anos — e o arguido terá cometido dois. Já o crime de tráfico de estupefacientes agravado pode ir até 15 anos. Tudo acumulado poderá traduzir-se numa pena pesada, em caso de condenação. Até porque existem antecedentes criminais. “No final, vai ser uma agravante da pena”, aponta Miguel Matias.
Num caso como este — de alegada reincidência grave —, torna-se, porém, ainda mais relevante a questão do tratamento, além da punição. Em conversa com o Observador na semana passada, a propósito do caso de um homem que pediu para ser preso para não ceder a um desejo incontrolável de abusar de crianças, o psicólogo Mauro Paulino alertava para a reincidência dos abusadores sexuais. “Eles vêm para fora, por isso, é necessária a prevenção da recaída. Estes indivíduos têm de ser acompanhados para avaliar o risco, perceber quais são as suas condutas, perceber se trabalham ou vivem perto de uma escola”.
A mesma ideia foi defendida pelo professor de psicologia forense Carlos Poiares, que alertava para o facto de os abusadores sexuais ficarem na prisão quase como que a acumular a compulsão que sentem: “Enquanto estão presos, portam-se bem porque não têm grande alternativa, mas, quando saem da cadeia, o comportamento provoca uma tal compulsão que eles continuam a cometer crimes, mesmo sabendo que correm o risco de ir presos”.
A história do homem que foi à PSP pedir para ser preso para não abusar de crianças