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O projeto de inglesa Jade Passley nasceu como um biscate, em 2019, nas viagens pelo país à procura de objetos interessantes, de cerâmicas a mobiliário, já aí com a ideia de curadoria © Duarte Drago
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O projeto de inglesa Jade Passley nasceu como um biscate, em 2019, nas viagens pelo país à procura de objetos interessantes, de cerâmicas a mobiliário, já aí com a ideia de curadoria © Duarte Drago

O projeto de inglesa Jade Passley nasceu como um biscate, em 2019, nas viagens pelo país à procura de objetos interessantes, de cerâmicas a mobiliário, já aí com a ideia de curadoria © Duarte Drago

Curadores, caçadores, colecionadores, cuidadores. Quatro histórias de recoletores de objetos, de norte a sul do país

Viajam quilómetros à procura de uma cadeira usada, são detetives dentro das suas próprias coleções e conseguem trazer peças antigas para os dias de hoje

João Cabaço

Stood Design

Lisboa

Um chapéu e uns óculos escuros compõem a ilustração que João Cabaço escolheu para partilhar a “caça” que faz diariamente, na página de Instagram da Stood Design. Carrega-se no ícone e desfilam diante dos nossos olhos imagens de armazéns recheados de velharias, carrinhas com móveis empilhados, barracões com prateleiras atravancadas e a “caverna do Aladino”, como já escreveu. João tem 30 anos e está apaixonado por peças de design com o dobro ou o triplo da sua idade. O que faz é procurá-las, ir buscá-las onde for preciso, nalguns casos vendê-las e noutros colecioná-las.

No dia a dia não usa o disfarce que desenhou, mas reconhece que há um lado de detetive que é precisamente o que mais o motiva. “Este foi um lote de peças que troquei por outras e, nunca diria, mas são de origem portuguesa, de um senhor que no início dos anos 90 vendia na Feira da Ladra o que fazia”, conta, mostrando um candeeiro de pé e outro de mesa à entrada de casa – uma antiga discoteca na Graça, em Lisboa, que serve também de showroom. Por estes dias, anda ocupado a tentar descobrir quem seria “esse artista”, mas também à procura de uns parafusos específicos para outro candeeiro que adquiriu em Queluz e que terá vindo da embaixada da Suécia. “Originalmente são umas peças cromadas redondas que têm uma rosca, não sei se ainda existirão em casas de ferragens, mas esteticamente são pormenores que fazem a peça valer mais”, diz.

Quando não anda no terreno, a alimentar o separador “hunting” (à caça) ou a partilhar o “find of the day” (achado do dia) através do Instagram, o mais usual é encontrá-lo a procurar referências visuais em livros de design e revistas de decoração antigas. “Os anúncios das lojas são ótimos para perceber como é que as marcas eram vendidas cá e quem representava o quê”, diz, enquanto folheia gordas encadernações em pele da revista Casa e Decoração desde 1968 a 1974, que comprou na Feira da Ladra. “É muito bom para ter referências visuais, porque no fundo o que eu faço depende muito disso: ter a capacidade de reconhecer alguma coisa quando estou a fazer uma pesquisa no OLX.”

Quando não anda no terreno, a alimentar o separador “hunting” (à caça), o mais usual é encontrar João a procurar referências visuais em livros de design e revistas de decoração.

Manuel Manso

Na sala de casa, que está “em constante mutação” e onde a maior parte das peças tem uma etiqueta com o preço, estão vários exemplos do que descobriu assim: uma cadeira desenhada por José Cruz de Carvalho para a Altamira, “inspirada na Superleggera do Gio Ponti”; dois cadeirões Alky de Giancarlo Piretti, de 1969 – “de vez em quando aparecem porque eram muito usados nos espaços públicos” –; ou ainda uma Wassily de Marcel Breuer, a célebre cadeira de cabedal e aço tubular, desenhada em 1925 e batizada com o nome do artista Kandinsky, “que a terá adorado assim que a viu”.

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À exceção de um candeeiro alemão space age – um estilo de que o colecionador gosta muito –, todas as peças foram compradas em Portugal. “Esta cadeira amarela atribuída ao Luigi Colani fui buscar a Leiria, no mesmo dia em que fui a Coimbra apanhar estes dois cadeirões. Desmontei os bancos da minha Golf, saí de manhã e estava em Lisboa para almoçar”, ri-se João Cabaço. A cadeira amarela de traços futuristas é das peças mais caras que tem à venda, por 1400€.

Em estudante já tinha o hábito de vender na Feira da Ladra, “sempre que a mesada ia acabar”: “Enviava mensagens a familiares, a perguntar se tinham coisas guardadas que já não queriam, fazia a recolha e lá ia eu”, recorda. Em 2014, e também através da família, teve acesso a parte do espólio de um hotel vendido pela Fundação Oriente, no Monte Estoril, e viu “pela primeira vez a chapinha a dizer Móveis Olaio, que não sabia o que era”. Vendeu umas mesas de apoio e umas cadeiras desenhadas por José Espinho no modelo Brasil sem poder imaginar que, anos mais tarde, ia estar a comprá-las de volta “à mesma senhora”, já com a ideia de fundar a Stood.

Inspirada na expressão “it stood the test of time” (passou no teste do tempo), aplicada ao bom design, a marca foi registrada no final de setembro de 2022. Em dezembro acontecia a primeira venda física de “24 peças em 24 horas” – 13 foram vendidas nesse fim de semana, as restantes foram um pretexto para apostar nas fotografias da divulgação online. Mas nem tudo o que João adquire é para vender: “Parte da Stood nasce para divulgar e preservar o que é património português”, diz, avançando que a maioria dos amigos da sua idade “não conhecia Daciano da Costa”, por exemplo. O chamado pai do design português é precisamente um dos que o fundador da Stood tem estado a colecionar, com o intuito de “um dia fazer um museu ou pelo menos colaborar com uma instituição como o MUDE”. “Não coloco à venda nada do que é português e a verdade é que em menos de um ano já reuni 180 peças.”

No armazém que o colecionador tem no Cacém, “80% são cadeiras”, o restante divide-se entre candeeiros e outras peças de mobiliário.

Nesta vertente do trabalho, João não tem problemas em considerar-se um aprendiz e tem procurado “rodear-se das pessoas certas”: João Paulo Martins e Jorge Spencer, que trabalharam no ateliê Daciano da Costa – o primeiro foi mesmo curador da exposição organizada em 2001 na Gulbenkian –, e com quem já esteve em reuniões; ou ainda Pedro Novo, arquiteto e colecionador de cadeiras portuguesas que organizou recentemente a exposição “Esperar Sentado… O Design da Cadeira em Portugal”. “Vou-lhe perguntando coisas e já estamos a agendar umas trocas”, diz João. “Ele às tantas tem umas cadeiras repetidas, e eu tenho outras”, continua. Não falta sequer uma caderneta: o livro Cadeiras Portuguesas Contemporâneas, do qual só foi feita uma edição (pela Asa), entretanto esgotada, que está pousado num móvel-bar dos anos 70, na sala. “Isto é de Álvaro Siza Vieira, de vez em quando aparece nuns leilões”, aponta João enquanto folheia o calhamaço. O cromo de ouro que lhe falta encontrar por agora é a cadeira Osaka de António Garcia, de 1970.

No armazém que o colecionador tem no Cacém, “80% são cadeiras”, o restante divide-se entre candeeiros e outras peças de mobiliário. “Uma pessoa não tem bem noção da importância que a cadeira tem. É um objeto do dia-a-dia, dado como garantido, mas é fascinante”, diz João, que não só fotografa todas as peças quando já estão prontas para vender, como faz muitos dos arranjos.

“Com esta aventura já aprendi a eletrificar candeeiros e fui tirar um curso de marcenaria e restauro na Santa Casa [da Misericórdia], todos os dias durante sete meses”, conta. Sem nunca esquecer o lado de detetive, tornou-se ainda um especialista em ler todas as pistas que uma peça vintage possa ter. “Se há um tipo de ficha que está no candeeiro, e é original, já sei que remonta a certa época”, diz, concluindo: “O mesmo com as etiquetas – se diz CE, já sei que é posterior a determinada data.”

Filipa Alves

Flórida

Porto

Talvez a formação em medicina tradicional chinesa e os oito anos passados a fazer acupuntura expliquem o olho clínico de Filipa Alves, de 39 anos. “Quando vou a feiras de velharias, não paro a olhar. Vou seguindo o meu passo ao longo das bancas e se alguma coisa me chama a atenção, pela forma ou pela cor, é porque há ali qualquer coisa.”

Afinal, já são 15 anos à procura de peças diferentes, em negócios que se vão somando e que a levaram até à Flórida, um estúdio de arranjos de flores que é também uma concept store na Avenida da Boavista, no Porto, “onde todos os objetos têm uma história”.

Em 2008 abriu a primeira loja online, “muito à frente do tempo”, de roupas em segunda mão. Era a Wohh!, e para fotografar as peças para o site foi tirar um curso profissional de fotografia. Em 2014 fundou, juntamente com Rita Dixo, a Coração Alecrim, uma das lojas mais conhecidas da Invicta, novamente com uma predileção por peças vintage ou feitas à mão. Simultaneamente, era uma das organizadoras dos Pratos em Volta, uma série de jantares inusitados em sítios normalmente fechados ao público, como a sede das Águas do Porto. “Levávamos tudo: as mesas, as loiças, a decoração, o chef, e só dizíamos onde era o jantar uma hora antes”, conta Filipa. “As flores entraram aí.”

O que a curadora vende através da Flórida desdobra-se em dois grandes ramos: “uma miscelânea de peças antigas”, que já tiveram outras vidas e que adquire “em leilões, feiras de rua e lojas de associações”; e outras novas feitas à mão © Luís Ferraz

Inicialmente, a Flórida surgiu como um projeto de arranjos e de fotografia, mas o ramalhete parecia incompleto. “Percebi que me faltava a parte da loja, dos artesãos, de estar com as pessoas e de contar a história dos objetos.” Depois de duas pop ups, em outubro o projeto instalou-se no número 740 da Avenida da Boavista, com montra virada para a rua, plantas de todos os tamanhos e três pisos que espelham o gosto particular da recoletora.

“Ando sempre à procura de peças que não haja em todo o lado. E a verdade é que os clientes identificam isso”, diz Filipa enquanto mostra umas caixas em forma de conchas, feitas em vime, que descobriu num armazém numa viagem recente ao sul do país. “Fui entregar uns candeeiros em terracota que desenvolvi para um alojamento e aproveitei para fazer uma ronda pelo Algarve e pelo Alentejo. Queria ir a lojas de segunda mão, feiras de rua, visitar artesãos e olarias.” No regresso, passou por Alcobaça, “para bater nas capelinhas todas, a perguntar: ‘tem loja de fábrica?’”. Numa dessas visitas descobriu um serviço de mesa com flores pintadas, cestinho de ovos incluído, que está agora em destaque na montra de primavera. “Estas viagens são o que mais gosto no meu trabalho, e já tenho outra agendada para Trás-os-Montes”, diz.

O que a curadora vende através da Flórida desdobra-se em dois grandes ramos: “uma miscelânea de peças antigas”, que já tiveram outras vidas e que adquire “em leilões, feiras de rua e lojas de associações”; e outras novas feitas à mão, muitas delas criadas em parceria com artesãos de diferentes ramos. Da cestaria à cerâmica, passando pela joalharia e a tecelagem, entre a coleção da loja quase todos os materiais e técnicas estão representados. “Há que ser inclusiva”, ri-se.

No ramo das peças antigas, imperam os objetos utilitários para a casa, entre copos de todas as cores, porta-revistas, candeeiros e jarras.

No ramo das peças feitas à mão cabem as almofadas desenvolvidas com a artista têxtil Alice Aranha, por exemplo, os vasos da marca Flórida – feitos por um oleiro em Barcelos –, as peças em madeira de João Graça, os frutos e vegetais em porcelana de Fernando Sarmento, ou ainda os tapetes criados por Fátima Gomes, uma artesã de Mirandela que corta e fia ela própria a lã. “Se encostares o nariz, ainda cheira à ovelha.”

Já no ramo das peças antigas, imperam os objetos utilitários para a casa. Entre copos de todas as cores, porta-revistas, candeeiros e jarras, Filipa admite “uma pancada grande por candelabros e velas”. Umas das últimas que comprou, com relevos e flores pintadas, valeram-lhe uma surpresa: “Um dia entrou aqui um senhor que ficou muito admirado e me perguntou: ‘onde é que a menina arranjou isto?’. Ele trabalhava na fábrica que produzia estas velas, em Gondomar, e contou-me como é que as fazia. Se calhar à primeira vista podem parecer um bocado too much, mas aplicadas numa mesa minimal ficam incríveis”, diz. “A ideia também é mostrar que se podem reutilizar coisas antigas, até dar-lhes um novo contexto. Há pessoas que entram e dizem: ‘eu tenho isto, está guardado há anos, não sabia que se podia usar assim’. E só com isso eu já ganhei o dia.”

Paulo Barata e Rita Múrias

Letreiro Galeria

Lisboa

Dos “penteados coiffure” com nomes próprios (Telma, Célia, Eleonora) às “modas pronto-a-vestir” com números de telefone de cinco dígitos, a coleção de néones reunida por Paulo Barata e Rita Múrias desde 2014 é uma verdadeira viagem ao passado. “Acreditamos que contamos uma parte da história da cidade através dos nossos letreiros”, resume o casal de designers. “É uma memória gráfica.”

Há nove anos fundaram a Letreiro Galeria porque começaram a perceber que os nomes comerciais “estavam a desaparecer das fachadas” de Lisboa, sobretudo na zona da Baixa, onde Paulo trabalhava e onde as casas encerradas se somavam com a crise. “Nessa altura estávamos a querer envolver a comunidade e o design, mas não sabíamos bem como”, recorda Rita, de 53 anos, formada em design de comunicação. “Soubemos que em Berlim havia um pequeno museu de letreiros resgatados e deu-se um clique.”

O primeiro letreiro de uma coleção que vai agora em 300 e que se desdobra em néones, caixas de luz e portas corta-vento, foi o da Sapataria Elite, em Alcântara, o bairro do casal. “Era em metal, já antigo, do Raul Tojal, que foi um arquiteto que fez muitos estabelecimentos comerciais”, conta Rita. À semelhança do que acontece ainda hoje, o letreiro foi oferecido pelos proprietários depois de muitas conversas “e da timidez inicial vencida”. “Na maior parte das vezes somos nós que fazemos um levantamento prévio [de letreiros interessantes] e vamos ter com os lojistas, na eventualidade de irem trocar de identidade gráfica ou até encerrar”, explica a designer de comunicação. “Há quem faça disto negócio”, acrescenta Paulo. “Compra e depois revende, legitimamente, mas o nosso propósito não é esse, é preservar. Fazemos inclusivamente esse compromisso com os lojistas.”

Há nove anos, Paulo e Rita fundaram a Letreiro Galeria porque começaram a perceber que os nomes comerciais “estavam a desaparecer das fachadas” de Lisboa, sobretudo na zona da Baixa

Manuel Manso

No início alguns ficavam desconfiados, hoje já há quem os contacte e recebem também muitos alertas através do Instagram, fruto da cobertura mediática e de exposições como “Lisboa, Cidade Gráfica” ou “Brilha-Rio”, batizada com o nome de um restaurante na Estefânia e que iluminou um parque de estacionamento em Marvila, no final de 2021.

“Temos muita gente que não estava alerta para este lado da cidade e que depois das exposições não só nos vem agradecer como nos passa a enviar mensagens sempre que vê alguma coisa ameaçada. Passa a reparar e a perceber que isto faz parte da nossa rotina diária”, conta Rita.” É a mesma coisa quando cai um edifício, ou quando cortam árvores. Só reparamos quando desaparece alguma coisa.”

Ao longo dos anos, a forma de retirar os letreiros também melhorou. Agora têm uma plataforma elevatória para fazer as recolhas, cedida por uma empresa de eletricidade sempre que necessário, mas durante muito tempo não foi assim: “Íamos às seis da manhã para não acordar ninguém, com uma carrinha emprestada e o ‘super Constantino’, um senhor romeno que já não vive em Portugal e que não tinha medo de nada”, conta Paulo. “Era o nosso diretor técnico e para ele era tudo fácil. Durante seis anos, o Constantino ensinou-me tudo. Nós pagávamos-lhe mas eu é que era o assistente dele”, ri-se o designer gráfico. “Há fotografias que não podemos mostrar, porque são censuráveis em termos de segurança, mas se estivéssemos à espera de ter as condições todas, porque não tínhamos dinheiro, os letreiros acabavam por ir para o lixo”, acrescenta Rita.

Temporariamente, a coleção está guardada num armazém da Fundição de Oeiras, um cenário impressionante com paredes descascadas, vidros partidos e dezenas de letreiros deitados em paletes ou encostados ao longo de metros quadrados a perder de vista. Retrosaria Roma, Rei das Fardas, charcutaria Os Perus, sapataria Presidente, ou restaurante O Bacano – a imaginação não tem limites e também há slogans inspirados para vender collants: “Corra Portugal de lés a lés com meias Ferrador nos pés”.

“Cada letreiro tem uma história: a nossa, a dos donos, a de alguém que vai à loja, a de quem o construiu e desenhou”, conta Rita, normalmente encarregada da parte da investigação. “Para encontrar o autor, pesquisamos na Câmara, que tem o cadastro do prédio desde que foi construído”, explica. “Qualquer pessoa que queira colocar um letreiro na fachada tem de pôr um processo com uma memória descritiva, pedir licença de autorização da colocação e pagar uma taxa municipal, que varia consoante o letreiro é luminoso ou não – se for luminoso, paga mais. Infelizmente, nem sempre há documentação, ou os papéis saltam 10 anos. Porque houve incêndios, desaparecimento de dossiers nos arquivos… Às vezes é muito frustrante.”

Nessas investigações ou falando com funcionários ainda vivos, o casal encontrou relatos de letreiros que ocupavam um terço da altura de um prédio pombalino. “Parecia que quanto maior, melhor, mas havia imensos acidentes, reclamações dos vizinhos… Porque os néones eram muito pesados e aqueles edifícios não estavam preparados”, conta a designer. “E as condições para os montar”, acrescenta Paulo. “Levavam escadas de 14, 16, 18 metros. Como não cabiam em carro nenhum, iam a pé da Estefânia à Baixa com o escadote, em fila. O letreiro ia no elétrico, um homem a segurar no início e outro no fim, com o neon de fora. Imagina!”, exclama o designer. “Nós já fizemos parecido”, atira Rita.

Os exemplares mais antigos da galeria serão da década de 30, alguns em estilo Art Déco: da livraria Aillaud & Lello, encerrada em 2018 e que estava na fachada desde 1931; da Casa Pereira, que existia na Rua Garrett; ou ainda de uma loja de “venda e reparação de canetas” no Porto, “uma coisa que já nem se faz”. Mas há muitos outros tesouros em três centenas de peças, maioritariamente da Grande Lisboa: o néon original do Ritz, gigantesco, que o hotel mandou substituir por já estar muito danificado; o peixe da Docapesca, pescado no Seixal; um painel ilustrado da BP dos anos 60, “que parece a corrida mais louca do mundo”; ou ainda o letreiro verde da Tarantela – desenhado por Victor Palla –, uma das muitas pastelarias desaparecidas com lugar aqui (a par da Suíça e da Sul-América, por exemplo).

Temporariamente, a coleção está guardada num armazém da Fundição de Oeiras, um cenário impressionante com paredes descascadas, vidros partidos e dezenas de letreiros deitados em paletes © Manuel Manso

Manuel Manso

Num património tipográfico vasto, o casal não esconde a preferência pelas letras do período do Estado Novo: “Não havia a tradição do designer de letra como há agora e eram desenhadas por arquitetos muito conhecidos: o Keil do Amaral, o Pardal Monteiro, o Agostinho da Silva… Faziam o projeto todo, incluindo o letreiro.” Dois exemplos que ainda se podem ver passeando pela cidade são a Casa da Moeda, de Jorge Segurado, e o Galeto, de Victor Palla e Joaquim Bento d’Almeida.

Para além do casal, da equipa da galeria faz parte um serralheiro que ajuda na reparação das estruturas de metal que seguram os néones. O dinheiro das exposições e de outras iniciativas, como o aluguer de letreiros – aconteceu recentemente, para uma série da Netflix rodada em Lisboa –, serve para fazer essa manutenção, mas ainda falta um investimento para conseguir estender a iniciativa a outros pontos do país, e falta sobretudo um espaço definitivo. “Estamos aqui entre os intervalos da chuva, porque a Fundição de Oeiras está à espera de um grande empreendimento”, diz Paulo. “O nosso intuito este ano é tentar encontrar um espaço permanente: um museu ou pelo menos um armazém expositivo.”

Enquanto isso não acontece, a coleção vai crescendo, numa cidade cada vez mais pressionada ao nível imobiliário. E ao contrário do que acontece com a maioria dos colecionadores, uma peça nova nem sempre é motivo de alegria: “Quando tiramos um letreiro, há uma conjugação de sentimentos”, remata Paulo. “Estamos felizes porque estamos a preservar, e é importante, mas o nosso início é o fim de muitos destes espaços. Gostamos de namorá-los é nas fachadas.”

Jade Passey

Escolhido

Algarve

Jade Passey é inglesa, nasceu há 33 anos em Norfolk, mudou-se há quatro para o Algarve e encontrou no dicionário português a palavra perfeita para batizar o seu estúdio de design de interiores: Escolhido. “O nome fala por si: cada detalhe é escolhido com consideração e cuidado”, resume.

O projeto nasceu como um biscate, em 2019, nas viagens pelo país à procura de objetos interessantes, de cerâmicas a mobiliário, já aí com a ideia de curadoria. No início era sobretudo um canal online para vender objetos e móveis “pré-amados”, como se diz em inglês, mas rapidamente evoluiu para um estúdio de styling e design de interiores assente na criação personalizada “de espaços únicos e intemporais”. “As nossas casas serão, provavelmente, o maior investimento que fazemos, por isso devem refletir quem somos e melhorar as nossas vidas”, diz Jade. E aí vamos bater novamente na ideia de objetos singulares, sejam um armário vintage em bambu ou uma cadeira amarela de realizador, para dar alguns exemplos de peças que já passaram pelas mãos da decoradora. “Fico muito feliz quando consigo encontrar objetos que podem transformar um espaço, sejam eles uma peça subtil ou statement, e dar-lhes uma nova vida.”

“Acredito que, em muitos casos, uma peça vintage acrescenta personalidade a um espaço”, defende Jade, cuja assinatura passa também por misturar objetos antigos e outros mais contemporâneos

Este lado circular do design é um aspecto que também valoriza: “Reutilizar objetos poupa recursos naturais e tem um melhor custo-benefício”, resume. “Estamos numa altura interessante em que somos forçados a olhar para a maneira como consumimos, desde o que compramos até à forma como viajamos, e aqui o design pode contribuir para uma mudança positiva. Para além disso, cada objeto já tem a sua própria história mesmo antes de entrar numa casa nova.” Parte do gosto de escolher, para além da adrenalina da procura e do lado humano de falar com os vendedores nas feiras de rua – um programa que adora fazer aos fins de semana –, é precisamente visualizar onde podem ir parar estes tesouros. “Acredito que, em muitos casos, uma peça vintage acrescenta personalidade a um espaço”, defende Jade, cuja assinatura passa também por misturar objetos antigos e outros mais contemporâneos.

Na loja online do Escolhido e em projetos de interiores como a Casa Almargens – um alojamento na Carrapateira, perto de onde vive, que serviu de cenário à sessão fotográfica –, essa mistura é evidente. Ao lado de uma escultura em pedra dos anos 70 ou de uma cadeira inspirada em Marcel Breuer estão edições limitadas feitas em colaboração com artistas e criadores, como o par de azulejos pintados à mão “A Portuguese Love Affair”, ou as bases para copos em cerâmica com um efeito marmoreado.

Nestas colaborações o processo começa quase sempre com um moodboard ou um esboço partilhado com o artista ou artesão, já na caça de peças antigas é mais “uma intuição”. “Acredito que tenho a sorte de ter olho para escolher os objetos mais interessantes e visualizá-los num novo ambiente”, diz. Ter uma mente aberta quando se procuram peças e não ir atrás de um estilo específico também é importante, embora Jade reconheça que há um padrão nos objetos que a atraem: “Qualquer coisa de ferro e mármore, peças inspiradas no oceano e no sol, formas estranhas ou móveis de madeira feitos com amor e cuidado”, diz. “Os meus olhos também são naturalmente atraídos por uma paleta de cores mais monocromática, mas adoro acrescentar detalhes coloridos como candeeiros num espaço.”

O banco de ordenha “de estilo brutalista” foi uma das peças que Jade adquiriu nas viagens por Portugal e está entre as suas peças preferidas © Duarte Drago

Entre os maiores achados que já fez está um “banquinho de ordenha de estilo brutalista” que encontrou numa viagem pelo país, um castiçal de ferro ondulado que acredita ser “uma peça pós-moderna do estilo Memphis dos anos 1980”, ou ainda um par de mesas de mármore e pedra das quais não conseguiu abrir mão.

No futuro, a curadora gostava de reunir mais objetos antigos de cerâmica e fazer crescer a loja online também com algum do mobiliário que tem desenhado para os projetos de interiores. Na lista atualmente em mãos está um “alojamento moderno em Santa Bárbara de Nexe, inspirado simultaneamente no design português contemporâneo e na estética tradicional algarvia”, e a consultoria para um novo estúdio de beleza em Londres. “O coração do Escolhido está em Portugal, mas também trabalhamos com clientes remotamente”, aponta.

Escolher, neste caso, também passa por criar uma comunidade de pessoas que admira, de várias partes do mundo. Por isso, no site é possível encontrar ainda uma série de entrevistas a artesãos e criadores, como os portugueses Miguel Saboya e Sofia de Moser Leitão, ou a ceramista australiana Sarah Nedovic Gaunt e a artista têxtil Sarah Espeute, conhecida pelas toalhas de mesa bordadas.

Este artigo foi originalmente publicado na revista Observador Lifestyle n.º19, lançada em março de 2023.

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