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Da escola ao quartel na sombra do chef Nuno Mendes
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Da escola ao quartel na sombra do chef Nuno Mendes

Agata Xavier

Da escola ao quartel na sombra do chef Nuno Mendes

Agata Xavier

Da alta gastronomia aos almoços para 300 crianças: o que sai das mãos de Nuno Mendes chega agora a Portugal

O Observador passou dois dias na sombra daquele que é um dos mais consagrados chefs portugueses no estrangeiro e que chegará a Lisboa para liderar as cozinhas do Bairro Alto Hotel.

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“Meninos, está muito barulho aqui. Se não nos acalmarmos um pouco nunca mais chega a sobremesa”, diz uma jovem rapariga para uma multidão de crianças. São 150 no total (antes já se tinham sentado e comido outras 150) e todas vestem um uniforme: domina o azul escuro dos mini-pullovers, o branco das camisas e o cinzento escuro das calças, collants e saias. “Vá, vamos lá. Vocês conseguem! Só têm de fazer menos força a tocar com os talheres no prato”, continua a mesma educadora num tom animado mas com seriedade q.b.. Passam poucos minutos do meio-dia e em Hackney, nos arredores de Londres, o céu está como sempre — cinzento — e toda a gente usa um agasalho extra. Estamos na New Primary School e os alunos que estão a dar as últimas dentadas no seu almoço já só pensam na sobremesa, um brownie de chocolate.

“Fogo, olha que isto está mesmo bom”, comenta, agora em português, um homem alto, de barba grisalha farfalhuda e cabelo já pincelado de branco. Estamos fora do refeitório das crianças com o chef Nuno Mendes, um dos mais prestigiados cozinheiros portugueses que chama casa a Londres há pelo menos 15 anos, depois de ter passado quase toda a sua juventude a trabalhar em cidades como Miami, São Francisco, Barcelona, Santa Fé e Nova Iorque. Este é o segundo dia que partilhamos com ele: no anterior fomos conhecer dois projetos que lidera neste momento, o Chiltern Firehouse, um “restaurante com quartos”, como o próprio descreve meio a brincar; e o Mãos, o fine dining onde recebe apenas 16 clientes de cada vez num ambiente que parece mais a sua casa do que um espaço de restauração exclusivo. O que fazemos nós numa escola primária nos arredores da capital britânica, então? Conhecemos in loco outra aventura inglesa do chef, o projeto “Fuel For Learnig“, que criou a meias com a mulher, Clarise Faria, e o cozinheiro britânico Damien Currie, e que consiste em cozinhar diariamente refeições saudáveis e equilibradas para os 300 alunos deste estabelecimento de ensino.

Nuno Mendes é um homem do mundo, não há dúvidas disso, mas é também lisboeta de coração (o título do seu mais recente livro de receitas assim o comprova) e português de alma. Depois de tantos anos fora, percebeu que “estava a perder os laços” com a sua cidade e o seu país. O pai morreu, os avós também e isso fê-lo ver que, de repente, aquilo que o ligava a Portugal estava a desaparecer. Começou a fazer visitas mais frequentes, concebeu o tal livro de receitas chamado “Lisboeta” — um compêndio do receituário da capital — e tudo ganhou outra proporção quando o Bairro Alto Hotel o convidou para ser o coordenador gastronómico desta unidade hoteleira que apresentará uma nova cara muito em breve (meados de julho é a mais recente projeção).

Nuno Mendes ao fogão, horas antes do serviço de jantar começar no Mãos, o seu mais recente restaurante. D.R.

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Quem é este homem de voz calma e trato dócil? Porque que é que a GQ britânica o acaba de distinguir como “Melhor Chef” do Reino Unido? Quais são os projetos que fazem dele uma personagem altamente respeitada no estrangeiro e um dos mais conceituados chefs do mundo? Foi para conhecer melhor Nuno Mendes que o  Observador passou dois dias inteiros em Londres a ser a sombra deste “viajante” que “lá fora” todos conhecem e adoram, mas em Portugal poucos sabem aquilo que faz.

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Mini-adultos com mais facilidade em sujarem-se com molho

Uma fila enorme de pequenas bicicletas e trotinetes é o que mais chama à atenção quando chegamos à entrada da Hackney New Primary School. São seguramente mais de 100 e estão todas alinhadas e arrumadas. “É giro, não é? A maior parte dos miúdos moram aqui à volta e vêm nas suas bicicletas, na companhia dos pais. É assim com os nossos, por exemplo”, explica Nuno Mendes, que já lá estava quando chegámos, na companhia da mulher, Clarise. A família mora nas redondezas e os três filhos do casal andam nesta escola.

Atravessamos uns portões verdes e estamos logo perante uns contentores enormes, o refeitório descrito no início deste texto. Mendes explica que estas instalações são provisórias, é suposto durarem “mais uns meses” enquanto o novo edifício da escola — a uns metros de distância — está a ser terminado. “Vai ser espetacular! O novo edifício da escola vai ter uma zona de cozinha enorme e até vai haver um pequeno pátio interior onde nós gostávamos, mais para a frente, de vir a organizar uma feira de pequenos produtores aos fins-de-semana, já que não há nenhuma aqui para estes lados, só em London Fields”, explica.

Clarise (na ponta esq.), Damien (logo a seguir) e Nuno (na ponta dir.) sorriem para a fotografia na companhia de um ajudante de cozinha da escola. D.R.

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Enquanto conversamos, antes de ir espreitar as crianças a comer, Nuno e Clarise apresentam Damien, o homem alto, de cabelo curto e tez muito branca, que corria entre o refeitório e o carrinho de mão enorme onde guardava os pratos sujos e restos de comida — a cozinha que usam fica perto deste sítio, é tudo preparado lá, diariamente, e transportado de e para a escola neste veículo. Com vários anos de carreira em cozinhas profissionais, como a do mítico St. John do britânico Fergus Henderson, Damien estava cansado do ritmo desgastante que tinha quando, há três anos, Nuno lhe lançou o desafio de se juntar a esta “maluqueira”, trocando clientes adultos por crianças. “É uma experiência muito engraçada cozinhar para eles [crianças], mas já estava mais ou menos habituado, também tenho filhos”, conta o próprio Damien. A vontade de arranjar uma vida mais pacífica, que lhe desse mais tempo com a família, convenceu-o a abraçar este projeto que  nasceu na cabeça de Clarise — e Damien confessa não estar minimamente arrependido da decisão: “É desafiante encontrar, todas as semanas, formas criativas de usar o máximo de vegetais possível sem perder o interesse dos miúdos. O ritmo também é mais tranquilo e o facto de saber que estou a ajudá-los a comer melhor e a ter mais cultura gastronómica é apaixonante”, confessa o cozinheiro.

Dentro do tal contentor, os alunos vão comendo alegremente um chili de vegetais “com um bocadinho de carne”. Sentam-se em mesas corridas, uns ao lado dos outros, e a comida é colocada em travessas, no centro, para que os próprios aprendam a servir-se e ganhem esse hábito o mais cedo possível. Também é da sua responsabilidade pôr e levantar a mesa. Vê-los todos sentados e alinhados, a levantar os seus pratos ou a servir os colegas, é divertido. Parecem mini-adultos mas com mais facilidade em sujarem-se com molho. Quando todos terminam o prato principal (menos duas crianças que choramingam por não lhes apetecer comer mais), o tal silêncio que a professora pedia instala-se de uma forma impressionante — o brownie chegou-lhes às mãos e notou-se que não era só Nuno que o achava delicioso. Desapareceram num instante.

Minutos mais tarde, Nuno e Clarise seguiram com o Observador para um café que ficava a minutos da escola. O chef pede um chá forte de gengibre e curcuma para todos (deixou de beber café há uns tempos) e começa, ele e a mulher, a explicar melhor aquilo que tínhamos acabado de ver.

Os veículos dos alunos da Hackney New Primary School, as 300 barrigas que Nuno, Clarise e Damien alimentam todos os dias. D.R.

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Galinhas panadas da Austrália (ou Nova Zelândia?)

A Hackney New Primary School, como o próprio nome indica, é recente, tem três anos, e apesar de obedecer a regulamentos estatais é aquilo a que os britânicos chamam de “free school”, ou seja, “é independente do governo e tem a liberdade de fazer as escolhas que quiser”, conta Clarise. No primeiro ano de funcionamento a responsabilidade de alimentar as crianças “foi dada a uma empresa” que, para choque do casal, fazia com que os professores — que comiam o mesmo que os alunos — “tivessem de ir ao Tesco [supermercado] comprar sanduíches”, afirma Nuno. “Os miúdos chegavam a casa com fome e aquilo que lhes davam ao almoço era muito mau. Era galinha panada da Austrália! Coisas que eram fritas, antes de serem congeladas e de irem para o forno. Era uma alimentação terrível”, continua. “As galinhas eram da Nova Zelândia, até”, intromete-se Clarise, sorrindo. É ela que prossegue, explicando que, quando abriu um concurso para a exploração alimentar da escola, decidiu agir.

“Fiquei muito entusiasmada com a perspetiva de poder ter algo a dizer naquilo que os miúdos comem na escola. Eu tomo muita atenção a esse tema, tento dar-lhes comida saudável em casa mas gostava que eles pudessem comer da mesma forma na escola. A comida escolar em Inglaterra é muito má”, conta. Clarise é quem costuma cozinhar em casa e, habituada ao que chamou de mom tricks (truques de mãe), até inventou umas almôndegas que parecem de carne (e têm um bocadinho), mas quase só levam vegetais.

“Foi um momento de pânico quando soubemos que a nossa proposta tinha sido aceite. Estávamos a montar tudo, eu e a Clarise. O Damien estava a trabalhar comigo noutro projeto e percebi que ele queria sair da cozinha em ambiente de restauração. Foi antes do verão, estávamos a correr de um lado para o outro, foi muito stressante, muitos telefonemas, muitos e-mails. Não acreditámos que íamos conseguir. Foi a Clarise que preparou o nosso pitch, desenvolveu o conceito do “Fuel For Learning” e eles aceitaram”, lembra Nuno. Tiveram de montar uma cozinha só para este efeito, não tinham orçamento para quase nada, tiveram de “vasculhar muito”, mas Damien lá conseguiu encontrar “uns fornos” e a coisa seguiu. Na primeira semana só conseguiram servir sanduíches mas na segunda lá apareceram as tais almôndegas de Clarise.

"A minha tarefa é receber a proposta de ementa do Damien e ter a certeza que ele conseguiu espremer uma quantidade suficiente de vegetais. É o 'mom-check'."
Clarise Faria, mulher de Nuno Mendes

Qual a premissa deste projeto, então? “Cozinha limpa [‘clean cooking’, em inglês]”, resume Clarise. “Tradicionalmente a comida nas cantinas escolares britânicas é muito pesada ao nível dos hidratos de carbono — muitas massas, muitas batatas… Quisemos ter a certeza que as crianças estavam a comer vegetais e proteínas que lhes dessem energia suficiente para terem uma performance melhor na escola”, avança. Isto tudo traduz-se em menus definidos semanalmente por Damien ( “A minha tarefa é receber a proposta de ementa do Damien e ter a certeza que ele conseguiu garantir uma quantidade suficiente de vegetais. É o “mom check“) onde não entram hidratos, açúcares refinados, fritos ou farinha, só “coisas cozinhadas ao vapor ou assadas no forno”, sempre “com frutas e legumes da estação” e carne de alta qualidade. Todos os meninos, meninas e professores têm, diariamente, “uma opção ‘normal’ e outra vegetariana [se bem que às quartas-feiras é vegetariano para todos]”, bem como uma sobremesa que pode ser “fruta, iogurte ou batidos de fruta”, menos às sextas, o dia da visita do Observador, em que têm direito a uma guloseima. Até quando há visitas de estudo a comida é feita por este “Fuel For Learning”.

O tal brownie de chocolate que miúdos e graúdos estavam desejosos de provar. D.R.

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Embora nem sempre seja verdade, as crianças têm fama de ser mais “esquisitinhas” a comer. Isso poderia ser um fator prejudicial ao sucesso deste projeto, mas nada disso aconteceu, muito pelo contrário. “Os miúdos foram muito recetivos logo de início”, afirma Clarise, depois de bebericar o seu chá. O trio começou com comidas simples — um dos pratos até foi uma espécie de empadão mas com puré de couve-flor em vez de batata —, “coisas que eles conseguissem identificar.” Só mais tarde começaram “a inventar mais” e a fazer truques como misturar couve-flor ralada em pratos de arroz, por exemplo. Os pequenos gostaram tanto que vários pais já tentaram replicar receitas do Fuel For Learning em casa — algumas ficam disponíveis no site do projeto — apenas para receberem como feedback ‘Isto não está tão bom como o do Damien’.

Independentemente disso, os pais estão igualmente satisfeitos com o desenrolar do projeto e, segundo Clarise, “adoram que eles possam comer na escola da mesma forma que comem em casa. Isso torna-os mais recetivos a diferentes tipos de comida mas também ajuda-os a melhorar as suas maneiras à mesa. Eles já dominam os garfos e as facas muito bem e até já sabem levantar a mesa”.

No meio de toda esta boa receção, a mais impactante é a da escola. Ou melhor, escolas, já que Nuno, Clarise e Damien já foram desafiados a aplicar o mesmo projecto noutras unidades de ensino. Nuno vê este cenário com entusiasmo mas é o primeiro a afirmar que é preciso “ir com calma, sem pressa”, até porque a estrutura deste Fuel For Learning ainda é muito pequena. Por agora, pensa-se na criação de “workshops de pais e filhos”, algo que, de qualquer forma, só será fazível quando o novo edifício da escola ficar concluído. “Tal permitiria que eles [miúdos] aprendessem através da comida, mas também começassem a aprender a fazer receitas que gostam. Há um potencial enorme para isso!”, termina.

Ao acabar essa frase, Nuno Mendes desfaz-se em desculpas: “Vou ter mesmo de ir andando, tenho uma reunião financeira no Mãos à qual não posso faltar.” Acabamos todos os nossos chás e acompanhamo-lo. “Vamos de autocarro?”, claro. Siga.

O primeiro toque no Mãos e o contingente “tuga”

O tempo abriu um pouco: entre as duas horas que demorou a ir da escola em Hackney à zona de Shoreditch, onde mora o mais recente restaurante de Nuno Mendes, o Mãos, deu para comer qualquer coisa no Lyle’s, um dos vários espaços de “comida-criativa-sem-peneiras” que passaram a povoar esta outrora complicada zona da cidade. Clarise foi para casa e o chef estava na sua reunião: “Encontro-vos no restaurante por volta das quatro, pode ser?”, perguntou antes de nos separarmos.  À hora marcada lá estávamos, uma ou duas ruas acima do sítio onde nos tinham servido o almoço, num prédio de esquina que em nada parecia um restaurante. Se não tivéssemos lá passado antes com Nuno, nunca adivinharíamos que é ali que mora uma das mais faladas experiências gastronómicas de Londres.

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Visto do outro lado da rua, o edifício onde mora este Mãos (no primeiro andar) é cinzento claro, fica numa esquina e tem apenas uns ligeiros toques modernos que o distinguem. Um deles é a frase “Blue Mountain School”, o nome deste prédio, que aparece escrita em letras de traço minimalista, em ferro. “A família que comprou este edifício começou com uma pequena loja, no piso térreo. Mantiveram-na por dez anos até que quiseram transformá-la em algo mais. Pretendiam criar um espaço onde existisse um diálogo entre artistas e artesãos, mas onde acabaram por ir parar um perfumista, um espaço de galeria, um ceramista…” — foi assim que Nuno descreveu o espaço onde mora o seu restaurante.

O Mãos é um sítio muito particular. Num restaurante normal abrimos a porta, entramos e indicam-nos uma mesa. Aqui, não. O espaço foi pensado para ser como uma casa normal, com quatro divisões — WC, cozinha, sala de jantar e sala de vinhos — onde só jantam 16 pessoas, no máximo, por noite. Há uma mesa enorme na sala de refeições e é lá que todos os convidados, conhecendo-se ou não, passam umas boas quatro horas a provar a comida que Nuno e a sua equipa de três cozinheiros preparam. Menu único, degustação, sem opção à carta e com o preço de 150 libras por pessoa, sem vinhos (170 euros, aproximadamente). Para entrar nesta aventura é preciso tocar à campainha, tal como faríamos se fossemos a casa de amigos, e esperar que nos abram a porta. Foi isso que fizemos e cedo nos lembrámos do Ceia, projecto lisboeta a cargo de Pedro Pena Bastos, que senta 14 pessoas numa sala intimista do Santa Clara 1728, em Lisboa.

Do outro lado da porta, a primeira coisa que se vê é uma escadaria muito comprida, algo íngreme, ladeada por paredes texturadas de um bege carregado. Subindo esses degraus chega-se a um corredor/hall que se abre para três lados: a cozinha à esquerda, a casa de banho à direita e, em frente, a sala de refeições. É no fim desta que mora o acesso à wine room, divisão que serve de garrafeira e em muito se assemelha a uma normal loja de vinhos. Por todo o espaço dominam cores neutras como o bege (o mais presente), o azul e o verde escuro, tonalidades que contrastam com a presença de muitos elementos em madeira e um ou outro cabedal. Azulejos e metal juntam-se à festa apenas na cozinha.

"Foi tudo isto que o próprio Nuno Mendes nos mostrou, em jeito de tour, depois de nos ter aberto a porta e recebido com um "olá" tão efusivo que nem parecia que tínhamos estado a beber chá juntos há umas horas -- carinhoso e profundamente simpático, é assim a sua forma de ser. "

Foi tudo isto que o próprio Nuno Mendes nos mostrou, em jeito de tour, depois de nos ter aberto a porta e recebido com um “olá” tão efusivo que nem parecia que tínhamos estado a beber chá juntos há umas horas — carinhoso e profundamente simpático, é assim a sua forma de ser. Antes de nos mostrar tudo isto, porém, apresentou-nos uma cara familiar, o chef Rodrigo Castelo, da consagrada Taberna Ó’Balcão, em Santarém, que tinha pedido para passar umas semanas a estagiar com o chef Mendes. É este que, por sua vez, nos apresenta a outro “tuga”, como o próprio descreveu. Rodolfo Lavrador, jovem que só depois de ter terminado o curso de advocacia escolheu enveredar pela gastronomia,  faz parte da equipa fixa do Mãos na companhia de Edoardo Pellicano, o braço direito de Nuno Mendes, Warren Smith e Danny Hoang. Apresentações feitas, restava ouvir do próprio Nuno como tudo começou.

“16 lugares, that’s it!

Nuno já tinha mudado de roupa e vestia agora uma jaleca que mais parecia uma camisa normal, azul escura, e um avental verde tropa. O dia avançava e a luz que entrava pelas janelas tapadas com tecido esmorecia. “Sempre quis criar projetos que oferecessem uma experiência gastronómica com qualidade e criatividade, mas também tinha interesse em fazê-lo num espaço que não fosse um restaurante mas sim um sítio normal. Tinha memórias do Loft, lugar que me era muito próximo, e quis criar algo que fosse uma espécie de reminiscência disso”, começa logo por dizer.

O primeiro projeto de Nuno no Reino Unido foi o restaurante Bacchus, que abriu em 2006, e cedo chamou a atenção de Londres pela forma como aplicava os ensinamentos de mestres como Wolfgang Puck (com quem trabalhou em São Francisco, no Postrio) ou Ferran Adrià (do incontornável elBulli, em Espanha). Desde essa estreia seguiram-se muitas outras, como o The Corner Room, a Taberna do Mercado, o Viajante (que lhe rendeu uma estrela Michelin) ou este Loft em que Nuno diz-se ter inspirado.

A mesa do Mãos é o epicentro de toda a experiência, nela jantam 16 pessoas, na sua maioria desconhecidos. D.R.

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“Sempre gostei da ideia de tocares a uma campainha e alguém abrir a porta. Tínhamos isso no Loft. Quando estive no elBulli apaixonei-me pelo conceito de ‘destination restaurant’ mas só depois é que percebi que um espaço desse género não tem de estar à distância de uma viagem de avião ou a muitas horas de estrada. Há outras maneiras de criar restaurantes de destino. Podes passar à porta do Mãos sem perceber o que se está a passar lá dentro. Estás numa rua movimentada de Shoreditch e, de repente, tocas à campainha e vais parar a um mundo diferente. Podes criar essa experiência e apercebi-me disso com o projeto do Loft. As pessoas pagavam por algo que não conheciam minimamente e quando tocavam à campainha, abríamos a porta e dizíamos ‘Olá! Bem vindos ao Loft!’, elas ficavam tão contentes!”, lembra Nuno. O cozinheiro continua a explicar que uma das coisas que mais adorou nesse projeto “foi o diálogo que dele brotava”, tanto entre os clientes (também funcionava com uma mesa comunitária) como entre o próprio português e os cozinheiros que convidava para lá irem cozinhar.

Caso ainda não tenha percebido, o Loft era mesmo a casa de Nuno, a “mesa comunitária” era onde o chef fazia todas as suas refeições e os colegas que ele convidava (entre eles, o consagradíssimo Magnus Nilsson, sueco que lidera o inóspito Faviken, com data de encerramento marcada para dezembro deste ano), ficavam a dormir a poucos metros — “Os convidados podiam entrar na cozinha… Era a minha casa. Eu não moro aqui [no Mãos] mas sinto que a experiência é muito libertadora. Entras e passas algum tempo na cozinha, depois há o quarto dos vinhos e uma mesa.”

O andar onde tudo isto acontece, conta Nuno, era suposto ser um showroom, um escritório e uma cantina, mas, “felizmente”, tal não aconteceu. Nuno gosta “de se envolver muito” no momento de desenhar um restaurante novo, de trabalhar “com arquitetos e designers ” porque valoriza a confluência “de visões diferentes” e estas ajudam a criar uma experiência onde o espaço “condiz com aquilo que está a acontecer nele”. “Muitas vezes entras em sítios onde sentes que tudo o que está a acontecer é super-fora, eu já trabalhei em lugares assim, onde aquilo que se passava na cozinha não chegava à sala.”

Quando questionado sobre a escolha do nome para o restaurante, o quase impronunciável para britânicos “Mãos”, Nuno diz que  este representa bem uma interação ao nível do tato, de algo que vai além daquilo que se vê no restaurante. Obviamente que o facto de o nome ser em português também diz muito sobre a forma como Nuno vive o seu país à distância: “Mostrar Portugal aos outros é um prazer, faço porque gosto”. Essa vontade intensificou-se quando abriu o Viajante e que cresceu ainda mais quando desenvolveu a Taberna do Mercado. “No Viajante começámos a trazer o produto e isso fez com que fosse possível criar algo como a Taberna. Ela pretendeu mostrar um pouco a história de Lisboa, o dia-a-dia lisboeta…”, diz. “Pretendo mostrar Portugal o mais possível, levar as pessoas a conhecer o nosso país.”

"Na lista de pratos figuram combinações como o arroz tostado com lagosta e citrinos, presa ibérica maturada com cenoura roxa fermentada, vieiras de Northumberland com cogumelos enoki, caranguejo castanho ao vapor com praliné de avelã e alho selvagem ou até a absolutamente deliciosa sobremesa de raiz de aipo, cevada e trufa preta, que é colocada na mesa em duas enormes panelas de onde os clientes se servem, um dos vários esforços para fomentar o convívio entre os clientes."

Tudo isto, na prática, traduz-se na mesa onde conversávamos — que leva “16 pessoas, that’s it!” — e nos  18 pratos da refeição que serve. A simplicidade domina tudo neste restaurante: “Há uma grande tendência minha para isso. Tenho 46 anos, já sinto que não quero excessos, não é assim que gosto de comer ou oferecer comida. Quero que as pessoas saiam daqui leves, sem estar enfartadas. Há uma certa leveza no menu. Servimos kombuchas e outros fermentados durante o jantar, às vezes como acompanhamento. As pessoas saem daqui a sentir-se bem”, conta. Sem querer revelar muito, assim pede o chef, na lista de pratos figuram combinações como presa ibérica maturada, vieiras de Northumberland, caranguejo castanho ao vapor ou até uma absolutamente deliciosa sobremesa de raiz de aipo, cevada e trufa preta. Não são permitidas reservas de mais de quatro pessoas, para que a mesa não seja monopolizada por um grupo e haja a sensação de que “estamos na festa dos outros.”

“O diálogo que se cria à volta desta mesa é muito especial e isso é muito importante para mim. As pessoas podem pensar na cozinha, no wine room, mas eu acho que a mesa é essencial. Foi ela que me fez despertar para este modelo, já no Loft. Há muitos restaurantes agora a adotar o formato do fine dining ao balcão. Eu não gosto muito disso, para mim no balcão o foco vai para o chef e não para as pessoas. Quando se vem de várias partes do mundo ou da cidade, quando se tem vivências completamente diferentes, as pessoas sentam-se e acabam sempre por notar que têm algo em comum. Vêm abertas a conhecer pessoas que lhes são estranhas, pelo menos ao início. Isto dá uma dinâmica muito interessante ao projeto. As conversas à volta desta mesa são muito giras, nós participamos e somos uma espécie de anfitriões.”

Não admira que este Mãos seja “o restaurante mais intrigante de Londres”. Podíamos dizer mais sobre aquilo que deu para conhecer, mas isso seria desvirtuar o pedido que Nuno e a sua equipa fazem a todos os seus clientes: “Pedimos educadamente às pessoas para não tirarem demasiadas fotografias e elas respeitam. Achamos também que as fotografias não captam bem a imagem daquilo que é estar aqui. A experiência é única.”

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Chiltern Firehouse: “Um restaurante com quartos”

Parece um edifício saído de um filme do Harry Potter, mas não, é um quartel de bombeiros do século XIX. Elton John, António Guterres, os Beckhams, Kate Moss… Todos são clientes habituais desta casa e são também responsáveis, em parte, por ser quase impossível arranjar uma mesa debaixo deste teto. Quando o Observador visitou o famoso Chiltern Firehouse, a antiga Marylebone Fire Station, nenhum deles estava por lá, nem no pátio coberto que fica à entrada, nem no interior lindíssimo do restaurante, todo ele decorado ao jeito de um bistrot francês clássico e luxuoso, pleno em madeiras brancas, mármore, espelhos, veludo e dourados.

É difícil imaginar que, não há muito tempo, aqui se estacionavam carros de bombeiros. Nuno bebia chá numa chávena de porcelana com desenhos clássicos pintados a azul e comia umas torradas com abacate. Estava de jaleca branca vestida quando começou a revelar os pormenores que denunciam este passado não tão longínquo. “Já viram ali o varão?”, pergunta apontando para uma mesa no canto oposto. “Era do quartel! Mantivemo-lo!” A utilização do plural na sua frase diz respeito ao magnata norte-americano da hotelaria André Balazs (que detém o icónico Chateau Marmont, em Los Angeles, por exemplo). Eu e o André [Balazs] conhecemo-nos e começámos a falar sobre a possibilidade de avançarmos juntos neste projeto. A primeira vez que o conheci foi aqui, ainda antes de qualquer tipo de construção começar. Nessa altura isto ainda era um quartel de bombeiros, mas estava vazio, só tinha as paredes e o chão. Do lado de fora estava a ser construído o novo edifício que associaram a este, mais antigo. Entrámos aqui, ele mostrou-me os seus planos, comentávamos que íamos pôr o bar aqui, isto ali… Este sítio é bastante mágico e dava para ver o entusiasmo dele”, conta Nuno. No total, foi preciso uma ano e meio de obras até à grande inauguração, que aconteceu há cerca de cinco anos.

Nuno Mendes na cozinha aberta do Chiltern Firehouse, o antigo quartel de bombeiros convertido em hotel e restaurante de luxo. D.R.

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Nuno Mendes passou 15 anos nos EUA, trabalhou em alguns dos melhores restaurantes desse país mas sempre teve uma admiração especial por Wolfgang Puck, que ainda hoje considera como “amigo e mentor”. O chef austríaco que foi para os Estados Unidos e abriu o restaurante Spago na Califórnia em 1982, que se tornou numa meca para todos os fãs de gastronomia. Para Nuno, Puck “trouxe para os EUA uma versão sofisticada de uma brasserie europeia de luxo”, aquilo que ele acha ser “um tipo de restauração muito específico, completamente diferente do fine dining que se encontra na Europa”, que tantas vezes consiste em “sítios mais pequenos, sossegados, pouco boémios e formais.” Nuno não trabalhou no Spago mas sim no Postrio, casa irmã desse Spago em São Francisco. “O espaço era muito bonito, na altura era considerado um dos restaurantes mais bonitos dos EUA, dávamos 400 refeições aos jantares…Tínhamos lá muitas estrelas de Hollywood mas também vários foodies, bem como pessoas que iam atrás do hype“, relata. Ora foi este conceito que tanto Nuno como André decidiram replicar: “Comida verdadeiramente espetacular servida num sítio cheio de buzz.”

Quando abriu, o Chiltern “era bastante especial e bastante refrescante no panorama londrino”, podia não ser “um templo para foodies” mas tinha “comida e bebida espetaculares” que eram servidas “num grande espaço”. Nuno é humilde ao dizer que esta casa com capacidade para 120 pessoas (mais 65 na esplanada e outras tantas no bar) teve sorte logo no início: mal abriu, motivou grande admiração por parte dos clientes.  Mas alcançar isto não é nada fácil.

“Este sítio é uma besta, no bom sentido. É uma operação massiva, no total temos 350 trabalhadores no hotel inteiro. Só na cozinha temos 52 chefs, em média. O chef principal entrou poucas semanas depois de termos inaugurado, o Richard. Gostamos sempre de dizer que o Chiltern é um restaurante com quartos”, brinca Nuno. O português é o primeiro a admitir que o “F&B [food and beverage] é o rei disto tudo” mas isso é algo que não o incomoda minimamente, pelo contrário, sempre adorou que fosse assim, por acreditar “que um hotel devia estar virado para a cidade e não só para os hóspedes.” No seu ponto de vista, um hotel interessante “devia ter uma presença muito forte na orgânica do bairro onde existe”, ser mais uma peça nessa engrenagem urbana e “não um ovni fechado.” A restauração inserida num contexto de unidade hoteleira é para ele, portanto, algo de muito positivo: “Um hotel interessante dá-te a oportunidade de criar uma experiência muito mais especial porque dura 24 horas. Podes fazer muita coisa.”

"Quando estou na cozinha estou confortável com toda a gente, não há ninguém a correr atrás de mim a dizer "Yes chef!". Eu tenho amigos assim, que quando entras na cozinha deles só consegues pensar 'Bolas! Que loucura. Malta, relaxem, isto é só comida, divirtam-se!'"
Chef Nuno Mendes

Tudo o que diz respeito a comida está a seu cargo — e é isso que torna o Chiltern Firehouse um bom exemplo do que poderá vir a ser a componente gastronómica do futuro Bairro Alto Hotel (BAH), o projeto lisboeta que Nuno estreará em breve. Neste último também será responsável, juntamente com o chef Bruno Rocha, pela oferta do BAHR, o restaurante/bar principal do hotel, da Pastelaria, do Mezzanine e do Terraço. A equipa do Bairro Alto passou algum tempo a treinar no Chiltern e Nuno gostava de levar alguns colegas londrinos a Lisboa quando o BAH estiver a funcionar — “Talvez até os leve durante o período de abertura, para ajudar.”

O chef afirma passar muito tempo com a equipa do Chiltern “a experimentar coisas novas, o que é muito entusiasmante” — aquando da nossa visita estava a testar uns nabos especiais vindos do Japão com Rui, um dos cozinheiros portugueses a trabalhar no Firehouse — mas é o primeiro a admitir que já não está “tão envolvido no serviço em si”, tem uma equipa de “muitos rapazes e raparigas” que treinou durante muito tempo e com quem criou “amizades muito fortes”. Eles dão-lhe confiança suficiente para não estar todos os dias atrás dos fogões.

“Malta, relaxem, isto é só comida! Divirtam-se!”

No total, o Observador ficou cerca de duas horas e meia, mais coisa menos coisa, dentro do luxoso Chiltern Firehouse, a conhecer uma das “jóias da coroa” do chef português. Quando esse tempo acabou, partilhou-se um táxi no trânsito de Londres para mais uma hora de conversa.

Pormenor da sala de jantar do Chiltern Firehouse. D.R.

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Sentado no banco da frente, ao lado do condutor, Mendes começou a falar sobre o orgulho que tem na “família grande e fragmentada” com quem trabalha todos os dias. A utilização da palavra “família” não vem por acaso: nota-se no trato do chef português que as pessoas que trabalham com ele não são só trabalhadores, são algo mais, há uma proximidade maior que se nota até na sua forma de estar atrás dos fogões: “Quando estou na cozinha estou confortável com toda a gente, não há ninguém a correr atrás de mim a dizer “Yes, chef!”. Eu tenho amigos assim, que quando entras na cozinha deles só consegues pensar ‘Bolas! Que loucura! Malta, relaxem, isto é só comida, divirtam-se!'” Contudo, também sabe que ser assim “é uma vantagem e desvantagem” porque há sempre quem não perceba e desvalorize. Apesar disso, nem pestaneja quando diz: “Mas é assim que eu gosto de ser.”

Nuno Mendes passou quase 30 anos a cozinhar, ainda adora fazê-lo, mas as coisas já não são como eram. Ter um restaurante em Londres é cada vez mais difícil, especialmente no que diz respeito ao dinheiro que é preciso.”Precisas de, no mínimo, um milhão de libras! Tens de ter essa quantidade disponível… É uma loucura! Eu tenho uma família, três filhos, não tenho acesso direto a essa quantidade de dinheiro e se tivesse mais depressa comprava uma casa… Fazia coisas para os meus filhos”, conta. São sensações como esta que o fazem ter cada vez mais vontade de cumprir o sonho de “talvez um dia” reformar-se e ir para o Alentejo.

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As ligações com o Alto Alentejo vêm de um lado da família que “infelizmente já desapareceu todo”, mas que visitava com frequência quando era pequeno. “Não me lembro de muitas coisas mas acho que percebia o espírito, que é o mais importante. O Alentejo era muito diferente nessa altura. Quando lá estou ainda sinto que estou o mais próximo possível de uma certa sensação de paz.”

“Paz”, essa noção valiosa e escassa na vida da maior parte dos cozinheiros é cada vez mais um objetivo que Nuno procura conquistar. Ele é o primeiro a admitir que ainda vive a sua vida “de forma muito rápida” no que ao trabalho diz respeito, mas cada vez se refugia mais na família. De há cinco anos para cá, por exemplo, deixou de trabalhar aos fins-de-semana. E conclui: “Não quero que os meus filhos sintam que têm um pai distante, quero estar presente, quero que tenham uma ligação comigo, algo que é muito desafiante de alcançar neste tipo de empregos. É uma demanda quase impossível, estabelecer esse equilíbrio e tentar fazer alguma coisa criativa, tentar trabalhar em projetos novos, criar ideias novas e viver uma vida familiar, ir com a minha família de férias. Tive de começar a fazer as minhas próprias regras.”

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