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[Este é o 4.º de uma série de seis artigos sobre marcas de bebidas não-alcoólicas. Os anteriores podem ser lidos aqui:]

No sentido estrito, chá designa a bebida preparada com as folhas secas e curadas da Camellia sinensis, cujo consumo estava enraizado no Extremo Oriente e que o Ocidente apenas descobriu depois de os portugueses terem chegado a estas paragens no século XVI (ver o capítulo “Chá” em De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 17: O alimento-dos-deuses e a seda-das-fadas).

O chá foi adoptado um pouco por todo o mundo e tornou-se num negócio que gerou receitas de 200.000 milhões de dólares em 2020, ano em que pandemia provocou uma ligeira quebra numa tendência consistentemente ascendente, devido à diminuição do consumo de chá fora de casa. O país em que se vende mais chá é, por larga margem, a China, com 92.000 milhões de dólares (uma quota superior a 50%), seguida pelo Brasil, Índia, Japão e EUA. A Grã-Bretanha, com 2.100 milhões de dólares, surge em 6.º lugar, é o campeão europeu do chá e é também o país de origem de algumas das principais marcas de chá.

O apuramento das maiores empresas do ramo do chá não é linear, já que muitas delas também comercializam outras bebidas e produtos alimentares, bem como produtos que são designados, com pouco rigor, por “chás”, mas que não encaixam no sentido acima definido para o termo; incluem-se aqui as bebidas produzidas pela infusão de outras folhas, ervas, cascas de frutos ou raízes, da hortelã ao limão, passando pela camomila e pelo gengibre (que seria mais correcto designar por “tisanas” ou “infusões herbais”, para as distinguir do chá propriamente dito); e as bebidas em que o chá não é o ingrediente principal (como o “iced tea” de pacote).

Tetley

A Tetley é uma das empresas mais antigas do ramo ainda no activo, tendo sido fundada, como Joseph Tetley & Co., em 1837 em Huddersfield, no Yorkshire, pelos irmãos Joseph e Edward Tetley, que tinham começado por vender sal porta a porta. A firma mudou-se para Londres em 1856 e entrou no mercado dos EUA em 1880. É hoje a marca n.º 2 no mercado americano, n.º 1 no britânico e a n.º 2 a nível mundial.

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A loja da Joseph Tetley & Co. aberta em Londres em 1856

No ano 2000, o Tetley Group foi comprada pelo grupo indiano Tata Consumer Products, que já possuía as marcas Tata Tea (campeã de vendas na Índia) e Good Earth Teas e se tornou na 2.ª maior empresa no ramo do chá, só sendo superada pelo grupo Unilever, que detém as marcas Lipton, PG Tips, Tazo, Brooke Bond, Bushell’s, Lyons, Red Rose, T2, Sariwangi e Scottish Blend, entre outras. Vale a pena realçar que a Tata Consumer Products faz parte do mega-grupo indiano Tata, cuja subsidiária Tata Motors adquiriu, em 2008, a Jaguar e a Rover – o que significa que a ex-colónia britânica tem vindo a tomar conta das “jóias da coroa” da antiga potência colonial.

Este anúncio à Tetley, do final do século XIX (e impublicável nos dias de hoje), assenta num trocadilho, intraduzível e inadmissível à luz da moderna pedagogia, em torno da expressão “never beaten”, que tanto pode significar “imbatível” como “que nunca é espancado”: afirma que os chás Tetley são “como as crianças bem comportadas” – estas nunca são espancadas, tal como os chás são imbatíveis

Lipton

Thomas Lipton (1848-1931) nasceu em Glasgow numa família que deixara a Irlanda para fugir à Grande Fome de 1845 e explorava uma pequena mercearia; começou a trabalhar muito novo, primeiro como moço de recados numa tipografia, depois como operário numa fábrica de vestuário e grumete num navio. Usou as poupanças amealhadas nestes trabalhos para comprar um bilhete para os EUA, onde foi trabalhador agrícola, contabilista, caixeiro-viajante e empregado de mercearia. De regresso a Glasgow abriu em 1871 a sua própria mercearia, que, graças ao seu apurado sentido de marketing, teve tal sucesso que em 1888 já dera lugar a uma cadeia de 300 estabelecimentos.

Thomas Lipton, em 1909

Foi então que começou a focar-se no negócio do chá, onde logrou curto-circuitar a cadeia usual de distribuição: a partir de 1890, na sequência de uma viagem que o levou a Ceilão, começou a comprar chá directamente a James Taylor, pioneiro da plantação de chá naquela ilha, o que permitiu à Lipton lançar o seu próprio chá, que tinha preços inferiores aos da concorrência e era publicitado com o slogan “directamente da plantação para o bule”. Esta estratégia permitiu à Lipton tornar-se, em pouco tempo, num dos nomes preponderantes no negócio do chá.

A Lipton foi também das primeiras marcas a adoptar as saquetas de chá, cujo uso tinha sido iniciado por Thomas Sullivan, um comerciante de chá e café de Nova Iorque.

Em 1929, a cadeia de mercearias Lipton fundiu-se com a Home & Colonial Stores, a Maypole Dairy Company, a Vyes & Boroughts, a Templetons e a Galbraith & Pearks para criar uma cadeia com mais de 3000 lojas, a Allied Suppliers (entretanto rebaptizada Presto). Quanto ao negócio do chá da Lipton, foi sendo lentamente absorvido pela Unilever, num processo que começou em 1938 e terminou em 1972. As complexas mudanças de propriedade das mercearias e do negócio do chá que tinham sido da Lipton levaram a que, paradoxalmente, a marca de chá Lipton tenha escassa implantação e prestígio no seu país de origem, uma vez que a Unilever preferiu vender chá na Grã-Bretanha através de outras marcas.

Anúncio ao chá Lipton, c.1900

Brooke Bond

A tasseomancia (do francês “tasse”, a partir do árabe “tassa” = chávena, taça) é uma técnica que permite (supostamente) prever o futuro nos padrões das folhas que ficam no fundo da chávena depois de bebido o chá, mas não seria preciso recorrer a ela para prever o futuro de Arthur Brooke (1845-1918), já que o seu pai era negociante de chá. Após ter trabalhado para outras casas do ramo, aos 24 anos Arthur Brooke estabeleceu-se por conta própria, na sua Manchester natal, com a Brooke Bond & Company, em que “Bond” (que significa “vínculo”) denotaria, segundo algumas fontes, o compromisso em fornecer aos seus clientes apenas chás de alta qualidade. Na verdade, Brooke acrescentou “Bond” arbitrariamente, apenas porque gostava da sonoridade de “Brooke Bond”. Foi também ele quem cunhou um dos primeiros slogans para a marca: “O bom chá reúne as boas companhias, anima os espíritos, abre os corações, afasta inibições à conversação e promove os mais ditosos propósitos das interacções sociais” – tudo isto deve ser lido, evidentemente, na óptica da fleuma e reserva britânicas, não vá pensar-se que Brooke estava a apelar ao consumo de folhas de Cannabis sativa, em vez de Camellia sinensis.

Brooke Bond Tea

Nem todos podem ser donos de uma plantação e de uma fábrica de chá em Ceilão, como esta British lady, mas (quase) todos podem comprar chá Brooke Bond: Anúncio de 1953

A Brooke Bond entrou no mercado indiano em 1903, lançou a marca PG Tips (uma das mais prestigiadas no mundo do chá) em 1930 e em meados do século XX era a maior empresa do ramo do chá no mundo, detendo 1/3 dos mercados britânico e indiano. Na década de 1950, a Brooke Bond lançou uma campanha publicitária que se gabava de o seu chá ser bebido diariamente por 100 milhões de pessoas e que revelava uma mundividência caduca. Por esta altura, o Império Britânico estava a desagregar-se rapidamente, mas a presunção britânica continuava bem viva, como pode atestar-se pelo tom paternalista do anúncio reproduzido abaixo, que afirma: “O continente indiano deve sentir gratidão para com Lord William Bentinck, nomeado Governador-Geral em 1827, por tanto ter feito pela introdução do cultivo de chá nesse território […] Nem todo o chá aí cultivado é exportado. Os povos desses países apreciam tanto uma chávena de chá como você [o consumidor britânico, claro]. Embora estivesse originalmente restrito às classes abastadas devido ao seu preço elevado, o chá é hoje desfrutado por quase todos, mesmo pelos aldeões mais humildes”.

Em 1968, a Brooke Bond fundiu-se com a Liebig (uma empresa fundada em Londres em 1865 e famosa pelo seu extracto de carne), dando origem à Brooke Bond Liebig, que foi comprada pela Unilever em 1984. As políticas comerciais da Unilever levaram a que a marca Brooke Bond passasse 20 anos ausente do mercado britânico, mas regressou em 2019.

PG Tips

A PG Tips nasceu em 1930 como sub-marca da Brooke Bond, mas obteve sucesso suficiente para se autonomizar. Na verdade, o seu primeiro nome foi Pre-Gestee, sugerindo que podia ser bebido antes das refeições para facilitar a digestão destas (não é de estranhar que o noem escolhido tenha ressonâncias farmacêuticas). O apertar da regulamentação publicitária, forçou a Brooke Bond a deixar cair a alegação de que o Pre-Gestee era um chá digestivo, pelo que a marca passou a ser conhecida como PG, a que foi adicionado o sufixo “Tips”, pretendendo denotar que apenas as extremidades (“tips”, em inglês) da Camellia sinensis – duas folhas e o botão – eram usadas na sua confecção.

Para a popularidade do PG Tips muito contribuiu, a partir de 1956, uma série de anúncios televisivos de cariz irónico, envolvendo chimpanzés, que se manteve até 2002, o que faz dela a mais duradoura campanha publicitária da TV britânica.

[O primeiro anúncio televisivo ao chá PG Tips, em 1956:]

Twinings

É a mais antiga marca de chá do mundo e o seu primeiro estabelecimento, aberto em 1707, no Strand, em Londres, por Thomas Twining (1675-1741), foi o primeiro nas Ilhas Britânicas a servir e vender chá ao público. Twining, que começara por trabalhar para o comerciante Thomas D’Aeth, comprou e remodelou o café que este possuía no Strand, a Tom’s Coffee House, acrescentando o chá aos produtos que vendia.

Thomas Twining, por William Hogarth

Na altura, o café era a bebida da moda em Inglaterra, com novos estabelecimentos a brotar por todo o lado, pelo que a aposta no chá ia contra a corrente; para mais, há que considerar que, por esta época, o chá não era uma bebida de massas: em 1707, o estabelecimento de Twining vendia 100 gramas de chá verde pelo equivalente a 160 libras a preços actuais. De qualquer modo, o negócio prosperou, de forma que em 1717 Twinings expandiu o seu estabelecimento para os edifícios contíguos – ao mesmo tempo, a proporção de chá nas suas vendas foi aumentando, tornando-se completamente dominante a partir de 1734. A Twinings continua hoje a explorar este estabelecimento, no n.º 216 do Strand, o que faz dele um recordista de funcionamento ininterrupto no mesmo ramo de negócio na cidade de Londres. O logótipo que encima a entrada desta loja histórica, que foi colocado em 1787, é o símbolo comercial mais antigo da Grã-Bretanha em uso ininterrupto.

Loja histórica da Twinings em Londres, aberta ao público desde 1707

O prestígio da Twinings foi reforçado em 1837, quando a rainha Victoria a designou como fornecedora oficial de chá da casa real. O negócio, que foi dirigido por descendentes do fundador durante várias gerações, foi adquirida em 1964 pela Associated British Foods, que detém numerosa marcas de mercearia e panificação.

Typhoo

A Typhoo tem origem remota numa mercearia/farmácia aberta em Birmingham em 1870 por William Sumner e pelo seu filho John, mas só se tornou numa marca de chá em 1903, quando John Jr., filho do segundo, começou a empacotar e vender ao público um chá com (alegadas) propriedades medicinais, que estão reflectidas no nome escolhido para a marca, que é similar à palavra chinesa para médico: “daifū”. O slogan da Typhoo era “O chá que os médicos recomendam”.

Tal como Thomas Lipton, em 1909 John Sumner Jr. também viajou até Ceilão, de forma a comprar chá directamente na fonte e poder praticar preços mais baixos do que a concorrência. A Typhoo passou em 1968 para a posse da Schweppes, que, em 1986, a autonomizou e a fundiu com três outras marcas de chá, dando origem à Premier Brands, Em 1990, a Premier Brands passou a fazer parte do mega-grupo Premier Foods, que, em 2005, autonomizou a marca Typhoo e a vendeu ao grupo indiano Apeejay Surrendra por 140 milhões de dólares. Em 2016, uma maioria de eleitores britânicos votou no Brexit, seduzida pelo slogan “taking back control”, mas a economia mundial é surda a slogans ocos e as empresas históricas britânicas têm vindo a extinguir-se ou a ser engolidas por empresas estrangeiras, pelo que já resta pouco sobre o que exercer o desejado controlo.

Anúncio ao chá Typhoo

Gorreana

Os portugueses não só foram pioneiros ao trazer o chá para os mercados europeus, como, através de Catarina de Bragança, esposa de Carlos II de Inglaterra, levaram as classes altas das Ilhas Britânicas a integrar esta bebida nos seus hábitos. A paixão britânica pelo chá, aliada ao seu talento comercial, contribuiu para que as maiores marcas de chá sejam britânicas, como se viu acima – porém, os portugueses têm pelo menos uma marca que conseguiu afirmar-se neste mercado super-competitivo e que tem a particularidade de o seu chá ser cultivado na Europa – se entendermos esta numa acepção geográfica elástica que abranja os Açores.

Os portugueses deram-se conta de que os Açores, ao combinarem um clima húmido e com variações de temperatura moderadas a solos vulcânicos, eram propícios à Camellia sinensis e introduziram a planta na ilha de S. Miguel por volta de 1820, embora o seu cultivo só tenha ganho extensão meio século depois, após uma doença ter destruído as plantações de laranjeiras. Hoje, os Açores continuam a ser o único território “europeu” com produção significativa de chá.

A Fábrica de Chá Gorreana foi estabelecida em 1883, o que faz dela a mais antiga da Europa; na altura muitas plantações e fábricas brotaram pela ilha, mas acabaram por extinguir-se e apenas a Gorreana sobreviveu.

Rótulo de chá Gorreana, década de 1950

Alguns dos chás Gorreana são tidos em grande apreço no mercado gourmet, com o Broken Leaf Black Tea a atingir preços de 400 euros/Kg, o que é um feito ainda mais notável se se atender a que a Gorreana tem contra si uma imagem gráfica amadora e nada sedutora. A “história” por trás do nome Gorreana é tão banal e prosaica quanto a imagem gráfica da marca: “Na altura em que tivemos de dar um nome à casa, lembrámo-nos de uma senhora marcante que vendia diversos produtos num cruzamento de caminhos aqui ao pé de nós. Chamava-se Ana e andava sempre de gorro”. Numa era em que os “marqueteiros” realçam a importância de elaborar “narrativas” sedutoras para conquistar clientes e vinculá-los aos produtos, é descoroçoante…

Há quem ache intrigante que os produtos de qualidade fabricados em Portugal raramente conquistem grande projecção internacional e atribua o facto à nossa “pequenez” ou a uma inexplicável má-vontade do mundo contra os portugueses, quando a explicação mais plausível é o escasso empenho, investimento e talento colocados na promoção desses produtos.