As fotografias de David e Louise Turpin no momento em que foram detidos abriram noticiários por todo o mundo. Eram eles os pais que tinham mantido acorrentados às camas, torturado e deixado passar fome os 13 filhos — de quem as imagens, com as caras desfocadas, também apareciam nas notícias. Muito antes de aparecerem nos jornais e televisões, essas mesmas imagens, completamente nítidas, tinham sido publicadas numa página do Facebook que o casal tinha em conjunto e onde partilhavam frequentemente várias fotos todos juntos em locais como a Disneyland ou Las Vegas. As 13 crianças apareciam pálidas mas a sorrir. Na maioria das vezes, vestidos com roupas iguais. Aparentemente felizes. Como uma família perfeita.
Mas o que se passava no n.º 106 da rua Muir Woods, que ficou conhecida como a “casa dos horrores”, estava longe de se aproximar da realidade que os pais faziam por mostrar nas redes sociais. O cenário com que as autoridades se depararam no dia 14 de janeiro deste ano era sinistro: “Várias crianças acorrentadas às suas camas com correntes e cadeados, na escuridão e num ambiente com cheiros nauseabundos“. Os Turpin estão indiciados por 88 crimes, lhes podem valer uma pena de prisão até 94 anos. Esta sexta-feira, meio ano depois de o caso que chocou o mundo ter sido descoberto, o casal voltou a sentar-se no banco do réu para ser formalmente acusado. Tal não chegou a acontecer: a decisão de acusar o casal foi adiada para 31 de agosto a pedido da defesa.
Dentro da casa dos horrores. As explicações psicológicas para o caso dos 13 filhos acorrentados
A fuga
Estava planeada há dois anos, mas só se concretizou na madrugada de 14 de janeiro, quando dois dos filhos de Louise e David Turpin conseguiram fugir. O rapaz voltou para trás com medo. A filha, de 17 anos, Jordan Turpin, seguiu o plano que acabaria por salvar os outros 12 irmãos que tinham ficado na casa. Saltou pela janela do quarto e levou consigo o telemóvel que o irmão mais velho tinha posto no lixo. Disse-lhe que só servia para ligar para o 911 (o equivalente ao 112, em Portugal). Mas era mesmo esse o número para o qual ela queria ligar. O telemóvel, apesar de desativado, permitiu-lhe fazer a chamada de emergência e contar a história perturbadora da sua família às autoridades.
A chamada
“Não sei. Nunca saí de casa. Não sei os nomes das ruas”. Esta foi a resposta de Jordan Turpin quando lhe pediram a morada do local onde vivia. “Fugi de casa. Somos maltratados. Os meus irmãos estão acorrentados”, disse ao operador. Foi com esta chamada, feita logo que Jordan conseguiu fugir de casa, que levou à libertação dos irmãos. Tal só foi possível porque a jovem de 17 anos conseguiu fornecer o código postal, ainda não se sabe bem como. A polícia combinou com ela um ponto de referência e dois agentes da polícia ao seu encontro. Enquanto as autoridades iam a caminho, Jordan relatou ao operador o que viria, dias mais tarde, a aparecer em vários os jornais do mundo. Por exemplo: “A casa estava tão suja que, às vezes, não conseguia respirar”.
A detenção dos pais
No momento da detenção, os pais foram “incapazes de fornecer imediatamente uma razão lógica que justificasse o facto de os seus filhos estarem reprimidos desta maneira”. As hipóteses são muitas mas, meio ano depois de o caso ter sido descoberto, ainda não se conhecem os motivos para manterem acorrentado os 13 filhos e os maltratarem, tirando-lhes comida e brinquedos. Louise e David ficaram em prisão preventiva, sujeitos a uma fiança de nove milhões de dólares (cerca de 7,3 milhões de euros).
O internamento dos filhos
Quando as autoridades chegaram à casa para resgatar os 13 filhos, muitos deles não sabiam o que era um polícia. Dada a “aparência frágil” e os sinais de subnutrição, as autoridades assumiram que todos eram menores de idade, por serem todos muito magros e pequenos. Mas, na realidade, descobriram imediatamente que dois já não o eram: uma tinha 29 anos — a mais velha – e outro 18. A filha mais pequena tinha apenas dois anos — a única com o peso certo para a idade.
Os filhos foram internados em dois hospitais locais e aí descobriu-se que as idades eram bem diferentes. No hospital, verificou-se que havia mais cinco filhos maiores de idade. Os seis menores foram levados para um centro médico do Riverside University Hospital System, em Moreno Valley, e os sete filhos com mais do que 18 anos para o centro médico regional de Corona, ambos na Califórnia.
O caso é divulgado e notícia em todo o mundo
No dia a seguir à fuga e à detenção dos pais, as autoridades do condado de Riverside divulgaram um comunicado a revelar o caso e a descrever o cenário com que se depararam, quando entraram na casa: “Várias crianças acorrentadas às suas camas com correntes e cadeados, na escuridão e num ambiente com cheiros nauseabundos“, lia-se no comunicado.
A primeira ida a tribunal e os 75 crimes indiciados
O casal foi ouvido pela primeira vez no tribunal do condado de Riverside, na Califórnia. Foram indiciados por 75 crimes no total: 12 de tortura, sete de abuso contra um adulto dependente, seis de abuso de menores e 12 de sequestro. David foi ainda indiciado de um crime de “ato obsceno a uma das crianças”. Os indícios não estavam relacionados com a filha de dois anos uma vez que não apresentava sinais de agressão ou subnutrição.
O casal ficou ainda a saber que podia ser condenado a uma pena até 94 anos de prisão se viesse a ser condenado. Os Turpin declararam-se inocentes mas continuaram em prisão preventiva. O juiz aumentou o valor da fiança — 13 milhões de dólares (cerca de 10,3 milhões de euros) a cada um deles — e agendou uma nova sessão para dia 23 de fevereiro.
Revelações sinistras feitas pelo procurador
Depois da audição, em conferência de imprensa, foram feitas novas revelações pelo procurador responsável pelo caso, Mike Hestrin.
Tudo “começou com casos de negligência” como forma de castigo, ainda no Texas, onde a família viveu até se mudar para a Califórnia, em 2010 — embora o casal só esteja a ser acusado por atos que aconteceram desde aí. As crianças eram amarradas com cordas e, só mais tarde, passaram a ser presos com correntes e cadeados, torturados, agredidos e às vezes até quase estrangulados, durante “semanas ou meses”. Bastava que uma criança estivesse a lavar as mãos e deixasse a água passar dos pulsos, que era acusada de estar a brincar com a água e, por isso, castigada.
O estado “inabitável” em que a casa onde a família tinha vivido, no Texas, foi encontrada refletia o que lá dentro se passava. “Tinha fezes esmagadas nas paredes. Na sala de estar e em todos os quartos havia um odor terrível”, descreveu Nellie Baldwin, a mulher que a comprara em abril de 2011 — um ano depois de os Turpin se terem mudado. Havia “lixo por todo o lado” e buracos nas paredes. A casa estava de tal forma em mau estado que o banco não a deixou a potencial compradora visitar a moradia sem que assinasse um termo de responsabilidade: não queria responsabilizar-se se ela ou algum familiar se sentisse mal lá dentro.
Não eram libertados para ir à casa de banho e cada um tinha o direito de tomar banho uma apenas uma vez por ano. Iam para a cama só por volta das 4h00 e 5h00 da manhã. Os pais compravam comida deixavam nas bancadas para as crianças verem, mas não permitiam que comessem. Daí que as crianças estivessem subnutridas. A vítima de 29 anos pesava 37 quilos. A de 12 anos tinha o peso de uma de 7. Compravam-lhes brinquedos, que eram mantidos dentro das embalagens e as crianças não estavam autorizadas a brincar.
Estavam isolados do mundo: não saiam de casa, não brincavam com outras crianças e muitos deles nem sequer iam à escola. Já não iam ao médico há mais de quatro anos e nunca tinham ido a um dentista. A jovem de 17 anos que conseguiu fugir revelou que não sabia o que eram comprimidos.
No final de janeiro, a ABC News teve acesso aos registos de avaliação do filho de 26 anos do casal numa universidade comunitária — uma instituição de ensino superior de dois anos de curso que dá equivalência ao grau de bacharel. Os registos revelavam nota máxima a todas as disciplinas. O estudante frequentou a universidade durante três semestres: primavera de 2014, outono de 2015 e primavera 2016. O jovem conseguiu sempre mais do que 15 créditos em cada um dos semestres, sendo que nos dois últimos esteve no quadro de honra. O rapaz de 26 anos foi um dos dois filhos que frequentou uma escola. A filha de 29 anos — a mais velha dos 13 — andou na escola, desde Jardim de Infância ao terceiro ano do ensino primário, no Texas, onde a família viveu. Não se sabe se algum dos outros frequentou a escola.
A separação dos filhos
Uma fonte relacionada com a investigação revelou que os filhos do casal Turpin iriam ser separados em três grupos, apesar do pedido aos assistentes sociais para ficarem juntos. Os sete filhos adultos iriam, ainda naquela semana, para um centro de assistência estatal e os seis menores de idade seriam divididos por duas casas de acolhimento.
A proibição de contactar os filhos e o sorriso da mãe
A pedido do procurador responsável pelo caso, Mike Hestrin, o juiz assinou uma providência cautelar para proibir os Turpin de contactar com os filhos. “Devem permanecer a, pelo menos, 90 metros de distância, de todos eles, em qualquer momento, exceto quando presentes a tribunal. Ok? Muito bem. Está a acenar com a cabeça”, disse o procurador no tribunal. No momento em que os pais foram informados da decisão, a mãe olhou para o pai e sorriu. A imagem ficou como uma das mais marcantes do caso.
Mas o advogado de David mostrou-se até satisfeito: “[A providência cautelar] protege toda a gente, incluindo o meu cliente. Não o quero exposto a acusações de ter tentado perseguir ou ameaçar a testemunha“. Já o advogado de Louise não comentou a ordem do juiz.
Os progressos dos filhos
Passado um mês desde que foram libertados, os filhos dos Turpin, ainda internados, já mostravam sinais de melhoras. “Estão a ir bem. Acho que estão a fazer progressos”, disse Mark Uffer, diretor executivo do centro médico regional de Corona — onde os sete filhos mais velhos estavam internados — que quis integrar a música no tratamento dos sete filhos, depois deles terem manifestado interesse.
Mais quatro indícios de crime
Mais de um mês depois de o caso ter sido descoberto, o casal regressou a tribunal pela terceira vez para uma nova audiência. Foram acusados de mais três crimes de abuso de menores. A mãe foi ainda acusada de um crime adicional de agressão — igualando assim o número de indícios que cada um enfrentava. Por esta altura, havia indícios de 82 crimes: 41 para cada um dos arguidos. Na sessão foi ainda agendada uma data para uma audiência preliminar para determinar se havia provas suficientes para justificar um julgamento.
O canal no YouTube da filha
A ABC7 revelou que afinal a jovem tinha um canal no YouTube onde publicava vídeos a cantar, sob um nome falso. Nos vídeos, a jovem denunciava as situações vividas através das letras das músicas. Por exemplo: “Culpam-me por tudo, culpam-me de todas as formas, culpam-me pelo que eles dizem, o que eles dizem”. Outros mostravam imagens do interior da casa, onde se vêem as paredes sujas e montes de roupa espalhados. Há ainda vídeos da jovem a brincar com os cães — os únicos que não mostravam sinais de tortura, além da irmã de dois anos. O último vídeo foi publicado sete dias antes de ter fugido e chamado a polícia, a 14 de janeiro. Não se sabe como tinha acesso ao computador.
A nova vida dos filhos
Os 13 filhos do casal Turpin deixaram os hospitais onde estavam internados desde o dia 14 de janeiro e foram colocados em três casas de acolhimento diferentes em Riverside — a mesma localidade onde viviam com os pais –, revelou Mark Uffer, diretor executivo do centro médico regional de Corona. Nenhuma casa tinha capacidade para albergar todos os irmãos juntos, mas estabeleceram contacto via Skype.
Mais indícios de crime para David
O pai das 13 crianças foi indiciado de mais oito crimes de perjúrio relacionados com a suposta escola privada que tinha em casa e onde alegadamente os filhos eram educados. A casa onde a família vivia, e que era propriedade do casal, aparecia listada no diretório do Departamento de Educação como Sandcastle Day School, como uma escola privada. No último ano letivo, a casa apareceu nos registos estatais como uma instituição não religiosa inaugurada em 2011. Havia seis estudantes matriculados: no quinto, sexto, oitavo, nono, décimo e décimo segundo ano. David aparecia referenciado como sendo o diretor.
Provas apresentadas ao juiz
Foi a primeira vez que foram apresentadas provas para sustentar a acusação. O objetivo da audiência preliminar era convencer o juiz Bernard J. Schwartz de que havia material para sustentar as acusações e enviar os autos para julgamento.
Além da chamada que Jordan fez à polícia no dia 14 de janeiro, foram projetadas imagens no tribunal, que a jovem de 17 anos conseguiu tirar com o seu telemóvel, para mostrar quando conseguisse fugir, como prova daquilo que estava a acontecer na casa dos horrores. Nas imagens vêem-se os pés descalços de Joanna Turpin, de 14 anos, quase pretos. Está acorrentada a um beliche de madeira. Tal como Julissa Turpin, de 11 anos. De cabelo comprido, calças de ganga e uma camisola cor de rosa com uma imagem da Minnie Mouse, olha para o chão com uma expressão triste. Está muito pálida e magra — o diâmetro do seu pulso era do tamanho de um bebé de quatro meses.
Os inspetores mostraram ainda fotografias tiradas já depois dos 13 filhos terem sido hospitalizados. Além dos braços magros, as imagens mostram também a sujidade que apresentavam depois de serem resgatados. De tal forma que era possível ver as marcas das correntes: nessas zonas, a pele estava branca. Outras fotografias mostravas as roupas que as crianças estavam a usar no momento em que foram resgatadas. Os inspetores explicaram que as peças de roupa estavam tão sujas que tinham bastante peso.
Por fim, foi também divulgado o que os 13 filhos disseram às autoridades: eram agredidos e viviam na escuridão. Acordavam às 23h00 da noite e iam dormir às três da madrugada: em média, dormiam cerca de 15 horas por dia. A mãe chamava os filhos, um a um, para comer. Eles iam até à cozinha, comiam em pé — só havia sandes de manteiga de amendoim e burritos congelados — e depois voltavam para o quarto.
As provas apresentadas vieram confirmar o que Mike, um antigo vizinho da família, via acontecer entre a meia-noite e as três da manhã e o que o levou a pensar que os Turpin funcionavam “como um culto”. “Eles marchavam para a frente e para trás durante a noite. A luz estava sempre ligada durante todo o tempo e eles [os pais] faziam as crianças marchar em círculos”, contou Mike.
As provas são suficientes
O juiz considerou as provas suficientes para acusar formalmente o casal. Bernard J. Schwartz ficou convencido e agendou uma nova sessão no tribunal para esta sexta-feira. Ainda assim, deixou cair dois indícios de crime de abuso de menores por considerar que a filha de dois anos, a mais nova, não apresentava sinais de agressão ou subnutrição.
Esta sexta-feira, o casal Turpin enfrenta, em conjunto, a possibilidade de ser acusado por 88 crimes. Cada um está indiciado por 12 crimes de tortura, sete de abuso contra um adulto dependente, oito de abuso de menores e 12 de sequestro. David está ainda indiciado de um crime de um “ato obsceno a uma das crianças” e oito de perjúrio. Louise está indiciada por mais um de agressão.
[Artigo atualizado às 17h20 com a informação de que a sessão foi adiada para 31 de agosto]