A notícia caiu na véspera de Natal e até o sempre reativo Presidente da República pediu um tempo antes de comentar o caso da secretária de Estado (do Tesouro) vinda de uma empresa pública (a NAV) depois de ter saído de uma outra (a TAP) com 500 mil euros de indemnização. No dia seguinte, a conversa de Marcelo já foi outra (e depois ainda outra) e a partir daí começou a desenhar-se a saída de Alexandra Reis — que esteve sempre em cima da mesa. No Governo, a leitura que predominou foi a de que, mais do que uma questão de legalidade, o assunto era político. E as consequências passavam por uma fragilização com potencial devastador numa pasta de enorme sensibilidade no meio de uma crise, a das Finanças.
O acordo de saída de Alexandra Reis da TAP, que levou a uma indemnização de 500 mil euros, foi fechado no início do ano. A empresa tem tutela partilhada e o ministro das Finanças era outro, João Leão — já o ministro das Infraestruturas era o mesmo. E Pedro Nuno Santos tinha conhecimento de que Alexandra Reis tinha saído da TAP com um acordo, embora não estivesse por dentro dos detalhes da negociação, segundo apurou o Observador. O Governo pediu-os agora à TAP e não ficou seguro sobre a sustentação jurídica apresentada pela companhia.
Quanto à decisão política sobre a governante no olho de (mais um) furacão caberia sempre ao ministro das Finanças, Fernando Medina, já que agora Alexandra Reis era a sua secretária de Estado. Pelo meio, o primeiro-ministro tornou claro o seu desconforto com o caso, que fez questão de dizer em público que desconhecia — em oito meses, já saíram oito governantes e qualquer gota de água que caia nesta altura faz transbordar o copo. A maioria verteu água, mais uma vez.
Dia 1. Até Marcelo em silêncio
Quando a notícia sai no Correio da Manhã, o Governo mantém-se em silêncio. O facto de ser véspera de Natal ajudou a que o assunto não tivesse o impacto que teria noutro dia qualquer e nem mesmo o Presidente da República quis comentá-lo — quando é conhecida a sua disponibilidade permanente para falar da atualidade política.
Na tradicional visita ao Barreiro, que sempre faz na véspera de Natal, Marcelo foi confrontado com a notícia e limitou-se a um simples “verei se faz sentido ou não comentar o caso em abstrato”. Havia de sentir essa necessidade por várias vezes nos dias seguintes, como se verá.
Nesse sábado, o PSD foi confrontado com o caso pela Lusa e, através do seu vice Paulo Rios, atirou-se sobretudo ao ministro das Infraestruturas. “Este meio milhão de euros não é do ministro”, “é dos portugueses”. Já a TAP “é sempre fruto de más notícias e é assustadora a forma repetida como se precipita decisões”, disse.
Dia 2. Mete-se o Natal… mas agora também Marcelo
Do Governo nada se ouviu também neste dia. Mas o Presidente da República já não manteve o silêncio da véspera e nesta primeira abordagem ao caso usou os portugueses para expor o seu próprio raciocínio. “É como pensam muitos portugueses, dizem: a senhora saiu daquele lugar, tinha direito por lei a ter aquilo, mas na medida em que está a exercer uma função pública há quem pense que era bonito prescindir disso, atendendo a que está noutra função. Mas, do ponto de vista jurídico, a lei permite isto.” Em todas as entrelinhas ficou a sensação de um primeiro recado: a secretária de Estado tinha de fazer alguma coisa.
No entanto, a posição de Marcelo foi lida com estranheza em alguns gabinetes governamentais, onde se questionava: se é legal, por que motivo teria de ser devolvida a compensação paga a Alexandra Reis? Mas nem por isso havia tranquilidade sobre o assunto, ganhando corpo a necessidade de explicações claras sobre a fundamentação jurídica que tinha levado ao elevado valor acordado para a saída da administradora da TAP em fevereiro deste ano.
Marcelo: “há quem pense” que era “bonito” secretária de Estado abdicar de indemnização da TAP
No conjunto de visitas que fez para se inteirar dos danos dos incêndios de julho, o Presidente da República continuava a sua avaliação do caso. E mostrava também já ter acesso a dados — que esta terça-feira a TAP revelou terem ficado ao abrigo de um acordo de confidencialidade — ao dizer que se tratava “de uma situação de rescisão por parte da empresa onde exercia funções de administração a meio do mandato, o que daria lugar a uma indemnização completa”. “Foi negociado um terço dessa indemnização. A indemnização completa seria três vezes superior. Saiu com essa indemnização por decisão da própria empresa e não por iniciativa própria.”
Mas acima de tudo, Marcelo sacudia problemas com uma decisão que, em todo o processo que envolvia Alexandra Reis, tinha sido sua: aceitar a sua nomeação como secretária de Estado, no início do mês. “À primeira vista, juridicamente, do ponto de vista de Direito, a ida para o Governo parece-me não ter problemas de incompatibilidade”, disse então.
Neste dia aparece também a primeira exigência política, do PAN. “É incompreensível que alguém queira sair de uma empresa intervencionada pelo Estado e que leve consigo meio milhão de euros. Aguardamos todos que o Governo quebre o silêncio e explique ao país como é que se permitiu isto na TAP”, afirmou a porta-voz do partido, Inês Sousa Real.
Dia 3. Governo pede esclarecimentos, Marcelo ganha dúvidas. Demissão na calha
Passado o Natal, não havia como continuar a empurrar o problema com a barriga e no Governo houve três frentes envolvidas neste processo: os ministérios que partilham a tutela, Infraestruturas e Finanças, em coordenação com o primeiro-ministro. Os contactos entre os três foram constantes e António Costa quis explicações sobre o processo que os ministros foram pedir à TAP.
O Governo já conhecia o entendimento da TAP sobre a não aplicação do estatuto do gestor público, mas antes do Código das Sociedades Comerciais, já que o primeiro não contemplava o acordo como uma possibilidade para cessar funções de administração de uma empresa detida pelo Estado. No entanto, quis que esse mesmo esclarecimento fosse prestado de forma pública.
O caso teve a ironia de pôr em colaboração dois ministros com uma rivalidade política reconhecida. A tutela partilhada fez com que Fernando Medina e Pedro Nuno Santos tivessem de alinhar estratégia, ainda que a necessidade de um esclarecimento tivesse uma urgência maior para o ministro que tinha no seu gabinete um elemento fragilizador, a secretária de Estado no centro da polémica estava nas Finanças.
Ainda para mais, entrava-se também na semana final do ano, aquela em que o Governo tinha já prevista a aprovação da injeção de capital na TAP, na ordem dos 980 milhões de euros. Como secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis tinha a gestão da empresa nas suas mãos, mas o dossier das privatizações foi colocado nas mãos do secretário de Estado das Finanças já para evitar que fosse a ex-administradora da empresa a decidir sobre uma questão na qual tinha estado diretamente envolvida (dialogou com o Estado em nome da TAP).
Manteve, no entanto, a tutela da gestão corrente da empresa e terá sido já com a polémica a correr que pediu a Fernando Medina escusa para qualquer envolvimento no processo de preparação da injeção de capital — que foi validada esta terça-feira. Na decisão em si não teria intervenção, já que o montante era elevado o suficiente para ter de ser o ministro a autorizá-lo. Ficou, no entanto, claro que nas Finanças não havia qualquer vontade de ter, nesta fase, o nome de Alexandra Reis associado a qualquer procedimento relativo à TAP.
O peso político do caso era, assim, já incontornável e a saída da secretária de Estado foi sempre uma possibilidade presente. Ainda assim, o primeiro movimento público do Governo chegou apenas a meio do dia, quando Finanças e Infraestruturas emitiram um despacho a pedir à TAP esclarecimentos “sobre o enquadramento jurídico do acordo celebrado no âmbito da cessação de funções como vogal da respetiva Comissão Executiva, de Alexandra Margarida Vieira Reis, incluindo sobre o montante indemnizatório atribuído.”
Nesta altura, já a acalmia do Natal tinha passado e os partidos pediam esclarecimentos ao Governo, nomeadamente o Bloco de Esquerda, Iniciativa Liberal, PSD e o Chega com a promessa de iniciativas parlamentares para ouvir os responsáveis políticos envolvidos no caso.
Já o Presidente da República adensa as suas declarações sobre o caso que no início não quis comentar e que num segundo momento não lhe oferecia dúvidas de legalidade. Agora, ao terceiro dia, Marcelo Rebelo de Sousa já dizia serem “importantes para todos” os esclarecimentos pedidos pelos ministros: “Para quem nomeia, para quem é nomeado, para os portugueses, esclarecer efetivamente o que se passou nessa pré-história, isto é, na carreira profissional da pessoa”.
E dava até um guião: “Vale a pena verificar duas coisas. Primeiro, porque é que terminou efetivamente aquela ligação. Correu mal? Incompatibilidades? Deve haver ‘n’ razões funcionais. Em segundo lugar, qual foi o critério seguido para dar aquela indemnização? Porquê o pagamento daquela quantia, naquelas circunstâncias, naquele acordo?”
O passo dado pelo Governo era visto dentro do próprio Executivo como “o mínimo” naquela fase. Outros viriam em pouco mais de 24 horas. Neste dia, a própria secretário de Estado falou em sua defesa, numa declaração escrita à Lusa, defendendo a legalidade do acordo feito para sair da TAP. “Nunca aceitei — e devolveria de imediato caso já me tivesse sido paga — qualquer quantia em relação à qual não estivesse convicta de estar ancorada no estrito cumprimento da lei”, sublinhou, garantindo que “esse princípio se aplica também aos termos” da sua “cessação de funções na TAP”.
Dia 4. O insustentável peso de mais um caso
O primeiro-ministro fez declarações à Lusa, também por escrito, para dizer que não conhecia o caso — “desconhecia em absoluto” — e que já tinha pedido esclarecimentos aos seus ministros. Elogiava a secretária de Estado “que se prontificou a devolver qualquer quantia que não lhe fosse devida e que recebeu nos termos acordados entre os advogados”. Mas quanto à manutenção de confiança política na mesma, foi sempre muito recuado: “Quanto ao mais aguardo o esclarecimento cabal dos factos e da sua qualificação jurídica.”
Acabou por não querer esperar mais. E quando a TAP remeteu as explicações ao Governo, confirmando a legalidade do acordo alcançado, revelando também que a agora governante tinha pedido inicialmente uma compensação de 1,5 milhões de euros, isso já não chegou para tranquilizar. À chegada ao Teatro Camões, onde se realizava o velório de António Mega Ferreira, António Costa fez logo saber que ia ver com os seus ministros quais os “passos seguintes” a dar.
As explicações da TAP que fizeram cair a secretária de Estado do Tesouro
Os dois ministros já tinham nessa altura mandado as explicações da TAP para serem avaliadas pela CMVM e também pela Inspeção-Geral de Finanças, para terem uma garantia independente de que tudo foi conforme à lei.
A avaliação política que foi agora feita e que levou ao desfecho conhecido, segundo apurou o Observador, foi sobre as consequências políticas de um caso que se ia estender no tempo. E isto porque, enquanto a avaliação não chegasse, o debate público e a expectável divisão sobre a interpretação da aplicação das leis ao caso, nomeadamente sobre se a indemnização era limitada pelo Estatuto do Gestor Público ou não, iam tomando lugar. E mais ainda: à boleia das dúvidas legais sobre o acordo de saída da TAP, havia ainda a contratação posterior para a NAV, outra entidade pública.
E isto porque o mesmo Estatuto estipula a devolução de parte da indemnização se o gestor que a recebeu for para outra função pública, que era o que estava em causa. As dúvidas sobre a TAP estendiam-se para o cargo seguinte que assumiu e, em qualquer caso, atingiam em cheio aquele em que estava atualmente. Além de estar a queimar um governante em lume brando, a autoridade política das Finanças era vista no Governo como fortemente ameaçada.
Foi por isso que em vez de se acordar um pedido de demissão — tantas vezes usado para suavizar as saídas políticas — a decisão foi avançar com um comunicado forte a travar leituras. A intenção no Executivo foi não expor uma área de especial sensibilidade a um tema que não só toca em condições salariais como em benefícios com valores incompreensíveis para a maior parte dos portugueses e numa altura de especial dificuldade.
Num comunicado enviado à comunicação social, o ministro das Finanças usou precisamente este argumento ao dizer que a demissão tinha sido pedida por si, aceite pela secretária de Estado e que tudo foi feito “no sentido de preservar a autoridade política do Ministério das Finanças num momento particularmente sensível na vida de milhões de portugueses.”