Nas férias de verão do ano passado, no caos de sacudir a areia dos pés dos miúdos, o balde com que construíram castelos à beira-mar ficou esquecido na praia. É assim todos os anos, alguma coisa fica sempre para trás. E, por isso, nunca mais se lembrou do balde: este verão provavelmente já teria de comprar outro — afinal, o desenho animado que o ornamentava no ano passado já não os interessa tanto este verão. E eles merecem um novo, são bons miúdos.
Enquanto regressava a casa, virando costas às férias por mais um ano, a maré subiu e levou consigo o balde. Passou semanas assim, a flutuar no oceano, mordido pelo sal da água, exposto aos raios ultravioletas, fustigado pelos pedregulhos e pelas marés vivas, riscado pela areia, atingido pelos ventos fortes, massacrado pelas tempestades em alto-mar e aproveitado pelos animais marinhos para construir um abrigo dos predadores.
O seu filho, de volta à escola primária, está a aprender sobre o destino deste balde: o plástico de que é feito vai demorar entre 100 e 1.000 anos a desfazer-se a ponto de deixar de ser visível. O que pode não saber é que nunca desaparecerá por completo; e que partículas microscópicas de plástico como o que compõe aquele balde podem já estar alojadas nas estruturas mais profundas dos seus pulmões e a circular neste exato momento na corrente sanguínea.
Foi o que descobriu a equipa de John Weinstein quando, em 2014, distribuiu três pedaços de plástico com 15,2 centímetros de comprimento e 2,5 centímetros de largura num sapal como o que existe na Ria Formosa. Um era de polietileno de alta densidade (que compõe os sacos e as garrafas de água), outro era de polipropileno (normalmente usado nos brinquedos, como o balde) e o terceiro era de poliestireno extrudido (utilizado sobretudo na construção civil).
O biólogo da universidade norte-americana Citadel pensava que seriam precisas décadas para se observarem sinais precoces de desintegração do plástico. Cinco, pelo menos. Afinal, começaram a surgir ao fim de apenas oito semanas: os raios ultravioletas quebravam as ligações químicas do plástico, laminando-o, camada a camada, em partículas mais pequenas que uma semente de sésamo. Algumas só se podiam ver com um microscópio eletrónico.
De todos os microplásticos que são detetados nos oceanos, 35% vem dos têxteis sintéticos, 28% dos pneus e 24% das poeiras das cidades. Os restantes 13% são resultado da deterioração da sinalização marítima (bóias luminosas, por exemplo), dos revestimentos marinhos (como os materiais usados nos cascos dos barcos), produtos de higiene pessoal e grânulos de plástico. São estas as contas mais recentes da União Internacional para a Conservação da Natureza, publicadas em 2019.
Parte destas partículas é engolida pelas criaturas marinhas, que as confundem com alimento: já foram encontrados microplásticos em mais de 1.000 espécies de peixes, crustáceos e moluscos. Outra parte cai como neve no leito marinho, chegando a pontos tão profundos como a Fossa das Marianas. E uma porção consegue ser transportada ao sabor do vento até aos Pirinéus Franceses ou aos pontos mais recônditos do Ártico e da Antártida.
Que as sardinhas grelhadas provavelmente têm chegado aos nossos pratos acompanhadas com uma guarnição inusitada (e invisível) já se sabia: calcula-se que uma pessoa que coma frutos do mar nas quantidades médias verificadas na Europa ingira 11 mil microplásticos por ano só a partir dessa fonte. Basta temperar a sopa com algum sal para aumentar ainda mais estes números: 90% das marcas têm microplásticos, sugeriu um estudo sul-coreano.
Mas as preocupações adensaram-se ainda mais nas últimas semanas, quando a comunidade científica revelou que tinha descoberto micropartículas até nas estruturas mais delicadas do corpo humano. Um estudo da Universidade de Hull, em Inglaterra, reportou em abril deste ano a descoberta de 39 microplásticos em 11 dos 13 tecidos pulmonares recolhidos. E a maior parte estava mesmo nas estruturas mais estreitas e profundas destes órgãos.
Já tinham sido detetadas fibras sintéticas dentro dos pulmões humanos e também já foram encontrados microplásticos em cadáveres. Esta é a primeira vez que eles são detetados em pessoas vivas. “Não esperávamos encontrar o maior número de partículas nas regiões inferiores dos pulmões”, admitiu Laura Sadofsky, autora principal do estudo, “nem partículas com as dimensões que encontrámos”.
Os microplásticos que se tinham alojado nos pulmões destes indivíduos tinham um comprimento médio de 223 micrómetros. Algumas só tinham três. É uma escala 100 vezes mais pequena que a dos centímetros mas, ainda assim, grande o suficiente para impressionar os cientistas. “É surpreendente porque as vias aéreas são menores nas partes inferiores dos pulmões”, concretizou Laura.
Julgava-se que partículas desses tamanhos fossem filtradas pelo organismo; ou então que acabassem presas antes de chegarem às profundezas nos pulmões, onde ocorrem as trocas gasosas que substituem o dióxido carbono por oxigénio no sangue. Mas estes resultados, enviados ao Observador pela cientista, provam que “a inalação de microplásticos é uma via de exposição” do corpo humano a estas minúsculas partículas.
Na verdade, há anos que as evidências de que os humanos estavam a inalar microplásticos irrompem pelos consultórios médicos. Paula Rosa, coordenadora do Serviço de Pneumologia do Hospital de Vila Franca de Xira, explicou ao Observador que “o impacto dos microplásticos já foi detetado e identificado principalmente em alguns trabalhadores de têxteis“. Chegam aos hospitais com alterações alérgicas por causa da inação das fibras maiores; e também desenvolvem asma por causa da exposição a partículas mais pequenas.
“Temos cada vez mais certezas de que, para além destas doenças, pode haver outras respostas mais graves”, avisa a médica pneumologista. Segundo Paula Rosa, já estão em desenvolvimento investigações cujos resultados preliminares parecem apontar para o surgimento de cancros pulmonares por causa das alterações genéticas que os microplásticos provocam. E os peritos também temem que estas partículas estejam na origem de outras doenças que, embora não sejam fatais, causem uma péssima qualidade de vida e conduzam o paciente mais rapidamente para a morte.
Mas “não existe uma noção da amplitude do problema”, confirma a pneumologista. A esperança é que a descoberta de microplásticos depositados nos pulmões de pessoas vivas abra caminho a investigações que permitam saber que doenças podem nascer dessa exposição e quantas pessoas estão a ser afetadas. “As doenças do pulmão profundo têm estado a aumentar nos últimos tempos e há algumas para as quais não temos resposta sobre a sua origem”, conta a pneumologista: “Poderá ter a ver com os microplásticos ou não. Temos de investigar”.
Humanos respiram microplásticos que conseguem atravessar membranas celulares
Este é apenas o primeiro passo. Porque o sistema respiratório deve mesmo ser a principal porta de entrada dos microplásticos para o organismo: a exposição através da respiração acontece 24 sob 24 horas — nem em casa se está livre deles, mesmo num ambiente livre de embalagens plásticas, porque, dos 20 quilos de pó que uma casa acumula anualmente, seis provêm de microplásticos libertados dos têxteis —, enquanto a exposição através da alimentação só acontece nos períodos das refeições. Usar máscara, embora útil para a pandemia de Covid-19, não será a solução ideal neste caso: elas também são feitas de fibras plásticas. Por isso, também dão origem a microplásticos.
Um estudo da Universidade de Messina, em Itália, publicado em março do ano passado, descreve que as micropartículas mais pequenas, muitas vezes chamadas nanopartículas, chegam aos alvéolos pulmonares — pequenas bolsas de ar em contacto com os capilares sanguíneos, onde ocorrem as trocas gasosas —, ultrapassam a membrana das células e entram na corrente sanguínea. Depois, em flutuação no plasma, circulam por todo o corpo.
Os autores, todos biomédicos, acreditam que as pessoas mais vulneráveis (principalmente os idosos e as crianças) podem estar em especial perigo de desenvolver disfunções pulmonares. Os microplásticos parecem induzir a inflamação do tecido pulmonar, desregular o efeito das hormonas e expor diretamente o organismo aos poluentes que absorvem antes de serem inalados.
Ora, basta que os microplásticos tenham 20 micrómetros para conseguirem atravessar as membranas celulares e acumular-se nos órgãos. Os investigadores já os encontraram no cólon e em fezes humanas — provavelmente provenientes dos animais que os consomem à conta da poluição, da água que bebemos e dos solos contaminados pelos plásticos. De nada valem todos os ácidos envolvidos na digestão: eles só vão partir as partículas em partes cada vez mais pequenas. Mas nunca vão desaparecer.
Os mesmos cientistas que determinaram que a respiração era a principal forma de exposição humana aos microplásticos fizeram uma revisão literária dos estudos in vitro (realizados em ambiente laboratorial) para descobrirem em que é que isso se traduz para a saúde. Perceberam, por exemplo, que quando as células Caco-2 — semelhantes às que revestem a superfície interna do intestino delgado — são expostas a poliestireno por 12 horas, os níveis de compostos químicos em que o oxigénio molecular (O2) tem mais um eletrão aumentam.
Esses compostos químicos chamam-se espécies reativas de oxigénio e fazem parte do metabolismo normal de um humano. Mas quando atingem níveis demasiado elevados, o organismo entra em stress oxidativo, provocando desequilíbrios químicos que podem desaguar em aterosclerose, doença de Parkinson ou de Alzheimer. Não há evidências de que os microplásticos estejam diretamente envolvidos no desenvolvimento destas doenças, mas os biomédicos que analisaram estes resultados avisaram que “é de primordial importância para a saúde pública aumentar o interesse por esses poluentes atmosféricos emergentes”.
Noutras experiências, a viabilidade das linhas celulares A549, recolhidas dos alvéolos pulmonares de pessoas com cancro, ficou comprometida porque o seu desenvolvimento estagnou na fase em que as moléculas de ADN são produzidas no núcleo a partir de uma cópia. A exposição a poliestireno por 24 horas alterou a ação das proteínas que estão envolvidas no ciclo de vida das células dos pulmões e ativou a leitura dos genes que provocam inflamações.
Há também estudos em que as próprias moléculas de ADN foram danificadas à conta da exposição a microplásticos. Foi o que aconteceu quando uma equipa de investigadores utilizou a linha celular Hs-27, que existe na pele do prepúcio, e manteve-se durante um dia inteiro em contacto com pequenas partículas de poliestireno: segundo os autores, não só essa exposição provocou stress oxidativo como induziu danos no material genético das células.
Após reverem 11 estudos independentes sobre o efeito dos microplásticos em diferentes tipos de células, os autores sugeriram algumas das consequências respiratórias possíveis à conta da exposição a estas partículas: asma, pneumonia crónica, bronquite crónica, alveolite e enfisema pulmonar — doenças que podem ser desencadeadas pela exposição prolongada a outras micropartículas, como o grafeno.
Pulmões, fígado e rins serão os primeiros órgãos a sofrer com microplásticos
Ainda antes de serem detetados nos pulmões, os cientistas já tinham encontrado microplásticos na corrente sanguínea: havia uma média de 1,6 microgramas de partículas plásticas por mililitro de sangue. Como um humano adulto tem, em média, cinco litros de sangue, isso traduz-se em 8.000 microgramas de partículas de plástico num humano adulto. No limite, elas podem chegar à linfa.
Por enquanto, estas concentrações ainda não se repercutiram em consequências evidentes para a saúde hematológica, confirmou Álvaro Beleza, diretor do serviço de Imunohemoterapia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, que engloba o Hospital Santa Maria. “Não foi identificada sintomatologia” de doenças provocadas pela acumulação de microplásticos no sangue, apontou o médico, e “quando as coisas são graves percebe-se logo”. Por enquanto, as quantidades de partículas no sangue ainda são demasiado pequenas para provocar doenças com sintomas observáveis. Mas ainda falta apurar o que se passa a nível molecular.
É que, sobre o que acontece ao corpo quando fica exposto a essas micropartículas, “sabemos pouco”, assume Álvaro Beleza. O plástico escancarou as portas para a vida ocidental durante a II Guerra Mundial, quando a indústria aumentou em flecha, e desde os anos 50 que já se produziram 8,3 mil milhões de toneladas métricas deste material — o equivalente ao peso de 80 milhões de baleias azuis e uma quantidade tão grande que podia cobrir a Argentina. Quase metade só foi produzido nos últimos 20 anos. Três quartos são lixo.
De todo o plástico que acaba abandonado no ambiente, só 9% é reciclado, 79% acaba em aterros e 12% é incinerado em partículas com menos de cinco milímetros de diâmetro. Estima-se que existam 125 biliões de microplásticos na Terra. Foram precisos 70 anos de convívio com o plástico para se começar a levar o véu aos impactos mais diretos que tem na vida humana. Faltam estudos, mas “é nocivo, disso não há qualquer dúvida”, assegura o médico.
Há dois órgãos que merecem especial atenção dos especialistas: o fígado e o rim, sobretudo este último, porque são os responsáveis por filtrar todas as impurezas que circulam no nosso organismo. São “as nossas próprias indústrias de tratamento de lixo”, compara Álvaro Beleza: “Somos máquinas de tratamento de resíduos”.
Uma parte desses microplásticos acabam eliminados da mesma forma que as outras impurezas que já circulam normalmente no corpo humano: através da urina, das fezes e da transpiração. Mas outra parte pode acabar acumulada nas estruturas filtradoras dos rins (os néfrons) e na maioria das células do fígado (os hepatócitos).
Se a acumulação de microplásticos chegar a níveis preocupantes, impossíveis de gerir pelo metabolismo, os problemas podem começar aqui, com insuficiências renais e falências hepáticas, antecipa o médico. No limite, em condições extremas, podem surgir problemas de coagulação e trombose. Mas, por enquanto, essa é uma possibilidade remota: “Ainda por cima com as políticas ambientais no ocidente, acho difícil chegarmos a esse ponto”, acredita Álvaro Beleza.
Mas mesmo que os problemas causados pela exposição a microplásticos venham à tona, nem toda a gente vai sofrer da mesma maneira. Metade de todo o plástico é produzido na Ásia (29% na China) e só 19% é produzido pela Europa. Quase todo acaba acumulado no oceano Pacífico, por isso é expectável que os primeiros sinais de um verdadeiro problema de saúde pública surja nos países banhados pelas águas mais poluídas do mundo.
Mas por cá não se pode respirar de alívio porque o impacto para a saúde vai muito mais longe do que a presença de microplásticos dentro do corpo humano. Um estudo norte-americano da Universidade da Califórnia concluiu que estas partículas de plástico, uma vez nos oceanos, podem transportar agentes infecciosos terrestres que provocam doenças tanto em seres marinhos como nos humanos.
Microplásticos podem transportar para os oceanos germes que causam doenças
Há três exemplos no relatório publicado no fim do mês passado: o Toxoplasma gondii, o parasita da toxoplasmose, que pode provocar febre, dor nos olhos, inchaço nas glândulas linfáticas e infetar o cérebro em fetos e em pessoas imunodeprimidas; o parasita Cryptosporidium, causador de criptosporidíase, uma doença que provoca diarreias intensas; e a giárdia, novamente um parasita que também causa diarreia ao infetar o intestino delgado. Comer marisco que tenha microplásticos portadores destes parasitas pode potencialmente levar a uma infeção. Os dois últimos podem ser fatais para crianças e pessoas com um sistema imunitário enfraquecido.