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ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

De braços no ar “à procura de um milagre”. A noite em que 44 mil adeptos de Cristo cantaram para Deus no Estádio da Luz

Organizado pelos "carismáticos" mas aberto a todos os cristãos, o evento "The Change", incluído no programa da JMJ, quase encheu o Estádio da Luz de crentes. Incluindo um ex-selecionador nacional.

“Ganharam?”. A dúvida, colocada por um motorista de TVDE na rotunda Cosme Damião, é legítima. Passa da meia-noite de sexta-feira e uma multidão considerável, mas em euforia contida, atravessa os portões que dão acesso ao Estádio da Luz. Trazem apitos, bandeiras, ostentam o mesmo símbolo e vestem a camisola. Não vieram torcer por um clube, mas no final alguns poderiam dizer que ganharam. “Vim à procura de um milagre”, atira Lucas Rodrigues, líder de uma claque com 60 pessoas vindas do Centro Cristão Vida Abundante (CCVA) de Moscavide. São evangélicos e “desde o primeiro minuto” quiseram fazer parte do The Change, um festival para cristãos que não querem ser rivais.

Faz parte do programa do Festival da Juventude da JMJ, mas está longe de atrair apenas jovens peregrinos católicos. “O objetivo do The Change é unir as várias denominações cristãs, para serem um exemplo para as pessoas que não conhecem Jesus”, explica ao Observador o dinamizador do evento, António Rodrigues Pereira, fundador de uma associação à qual deu o próprio nome e que, juntamente com a Charis – Catholic Charismatic International Service, ou Renovação Carismática Católica, organizou o festival. Sem apoios, apenas com doações, garante o responsável cujo currículo conta com uma licenciatura em Teologia, um mestrado em Gestão do Desporto e estágios no Benfica e na Lazio de Roma. Entre outros cargos, é diretor da European Supernatural School (ESSM).

“Há um ano, Deus disse-me para alugar o Estádio. Na altura não tinha recursos, a única coisa que Deus me dizia é que queria fazer um evento cristão onde pudéssemos juntar toda a gente para adorá-lo, quebrar barreiras e ser um exemplo. O nosso objetivo é servir as pessoas. Muita gente fez doações, não temos qualquer apoio”, assegura. Os donativos serviram para alugar o Estádio do Sport Lisboa e Benfica e trazer a Portugal uma mão cheia de artistas internacionais de música cristã. Segundo a organização, estiveram no recinto 44 mil pessoas. Os bilhetes eram gratuitos.

Rodrigues Pereira organizou o The Change no Estádio da Luz.

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“Ver um concerto de Matt Maher é um sonho tornado realidade”. O entusiasmo vem da Alemanha, por parte de Anna Paul e Gittu Thomas. À mesma hora em que na Colina do Encontro, ou Parque Eduardo VII, o Papa Francisco presidia à Via-Sacra, os dois peregrinos, católicos, partiam em romaria ao Estádio da Luz. Quase duas horas antes da abertura de portas, a enchente para aceder a lugares marcados quase fazia desvanecer na multidão a estátua de Eusébio. “Somos grandes fãs de Matt Maher. É a primeira vez que o vamos ver, nunca pensámos que poderia acontecer. Vai ser uma boa oportunidade para rezarmos todos juntos”. O Papa fica para o dia seguinte. “Ele adoraria estar aqui connosco”, acredita a espanhola Sonia Cors, que representa a comunidade ecuménica Fé e Vida.

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O nome do artista canadiano Matt Maher, conhecido por canções como “Lord, I Need You”, é dos primeiros a surgir nas conversas com os peregrinos e não peregrinos da JMJ que acorreram ao evento, e que não conta com voluntários da Jornada. “Já o vi várias vezes ao vivo e ele não canta, ele lidera-nos no louvor e na adoração, é incrível”, descreve Sylvia Vanderburgh, de 19 anos, natural de Ohio, nos EUA.

Louvor e adoração são as formas de “chegar a Deus” neste tipo de celebrações, em que o efeito da música provoca uma espécie de transe, explica quem é frequentador assíduo. “É a minha forma preferida de rezar. Quando rezas a cantar é como se rezasses 100 vezes mais”, diz Gracie Halfmann, americana de 20 anos do estado de Missouri. O que a traz a Lisboa é a JMJ. Ao Alto dos Moinhos, atraiu-a o princípio ecuménico do The Change. “Adorarmos o mesmo Deus em conjunto é único. Adoro cantar e quando percebi que podia cantar e rezar ao mesmo tempo, quis usar o dom que Deus me deu e oferecê-lo como uma dádiva”. Em Indianápolis, onde estuda ação social, lidera um grupo de jovens que se juntam para “celebrar Deus a cantar”.

Uma oração e uma nega para Francisco

Braços no ar, olhos fechados e com lágrimas são os traços comuns que pintam a moldura humana de um estádio despojado de balizas, substituídas na bancada norte por um palco iluminado com o sinal da cruz. A ola mexicana até podia indicar um ambiente de derby, mas o trailer de “Sound of Freedom”, o controverso filme sobre tráfico e exploração de crianças, que recebeu a bênção de Donald Trump, a passar nos ecrãs da Luz anuncia outro tipo de arrebatamento. Ao fim de meia hora de concertos e celebração, seria preciso chamar o socorro dos bombeiros.

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Além da música, a natureza ecuménica do The Change, ou seja, o objetivo de chegar a todas as denominações cristãs, é o motivo mais referido por quem preferiu encontrar o Espírito Santo na Luz do que o Papa na Via Sacra. De França com um grupo de jovens de 16 e 18 anos veio o Padre Pradhappe Aroul. Fazem parte da comunidade Chemin Neuf, ou Caminho Novo, católicos com vocação ecuménica, são cerca de quatro mil e estão presentes em 40 países. “Nós rezamos todos os dias pela unidade dos cristãos de todas as denominações”, explica. “A freira responsável pela minha comunidade é protestante. A nossa experiência é a união cristã. Queremos que todos os cristãos se unam. É a nossa maior esperança e o evento de hoje é um sinal”, considera o sacerdote que “adora” o Papa Francisco.

O evento é organizado pela Renovação Carismática Católica, um movimento cujas celebrações incluem, por vezes, orações em línguas e práticas sobrenaturais como as chamadas curas espirituais. A forte presença de cristãos evangélicos também se fez notar no evento, apesar de a Aliança Evangélica Portuguesa ter garantido ao Observador não ter tido qualquer envolvimento na organização do encontro. E apesar do pendor ecuménico do The Change, houve mesmo separação das águas.

Ao que o Observador apurou junto de fonte ligada à produção do evento, uma das artistas que constavam no alinhamento do The Change, a brasileira Ana Paula Valadão, recusou subir ao palco. Isto porque o programa do evento incluía a passagem de um vídeo no qual surgia o Papa Francisco. O vídeo foi mostrado e a imagem do Papa surgiu no Estádio da Luz por não mais de 10 segundos, sem grandes manifestações por parte do público. O centro da crise diplomática? Nem todas as igrejas evangélicas reconhecem a figura do Papa.

A presença de Francisco seria mais notória, e mais aplaudida, quando o ator Jonathan Roumie, que interpretou Jesus Cristo na série “The Chosen”, proferiu no palco uma oração pelo Papa: “Abençoe o Seu filho e nosso irmão Papa Francisco com uma vida longa”. A “catedral” acedeu.

“Jesus, meu puto, és bem bacano”

Lucas Rodrigues não soube do cisma que teve o Papa no centro, mas teria resposta pronta. “A religiosidade só traz complicações”, diz ao Observador o pastor de jovens da CCVA Moscavide. “Jesus é simples. Eu saio da Igreja e digo: ‘Jesus, meu puto, és bem bacano, és bué fixe. Não é simples? Não preciso de estar de joelhos a dizer “paizinho, eu peço-te isto’. Isso também é válido, claro, mas Jesus é mais simples que isso”.

Tem 21 anos e é o “faz tudo” da comunidade evangélica onde se insere. “Lá há resposta para tudo. Acompanho as pessoas a nível psicológico, espiritual, organizo eventos. Também sou fotógrafo e videógrafo. Explicamos o evangelho, quem é Jesus, não dizemos que as pessoas estão erradas”. As cerca de 60 pessoas que trouxe de Moscavide gravitam à volta da figura robusta, que garante que o mote “Jesus loves everybody” que traz gravado na t-shirt não é uma frase feita. Ao Estádio da Luz diz ter vindo “procurar um milagre”. Ele próprio é um milagre em construção. “Eu era religioso, ia para a Igreja e fazia tudo para as velhinhas me darem cinco euros, e cá fora era a pior pessoa possível. Era viciado em pornografia desde os seis anos por causa do ‘Rancho das Coelhinhas, tratava mal os meus professores”. O que mudou? “Percebi que não precisava de uma religião para seguir Jesus”. Hoje, o único vício que tem é roer as unhas. O maior sonho é “salvar pessoas”.

Lucas Rodrigues, pastor de jovens da CCVA Moscavide.

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São vários os “Lucas” espalhados pelo Estádio da Luz, aponta Lídia Fidalgo Ferreira, pastora da CCVA Moscavide. “Miúdos” que “nem vêm de famílias cristãs”, que estavam entregues “às drogas, aos roubos e aos gangues” e que hoje “podem testemunhar que a diferença na vida deles foi Jesus que fez”. O evento ecuménico no Estádio da Luz é, de certa forma, um presente para eles. “Há muito tempo que ansiamos por um evento destes no Estádio da Luz, faz toda a diferença ser aqui. E ver esta gente toda é impactante. Tanta gente reunida com o objetivo de adorar Jesus. O importante não são as bandeiras que nos dividem, mas a bandeira que nos une, que é Jesus”, conclui.

A bandeira do The Change era um programa de três horas de “música e evangelização”. O cartaz de artistas cristãos incluía nomes como Taya ou Israel Houghton. A fadista Mariza subiu ao palco para dar “O Melhor de Mim”.

Para “promover a fé”, o festival contou com dois homens que na Luz se sentiram em casa. Geovanni ajudou o Benfica a ser campeão em 2005, mas aos 33 anos, contou, abriu mão “de algo que amava para cumprir a chamada de Deus e ser pastor”.

O maior aplauso da noite no Estádio da Luz estava reservado para outra figura do futebol, apresentado aos altifalantes como um “conquistador que sempre teve fé em Deus”. Fernando Santos, ex-selecionador nacional de futebol que levou Portugal à conquista do Europeu de Futebol de 2016 falou do período em que esteve “mais afastado de Deus” e como reencontrou a fé na Luz. “O que une quem tem fé é muito maior que o que nos diferencia”, disse ao Observador, em exclusivo, o atual selecionador da Polónia.

Fernando Santos, Geovanni e Mariza participaram no evento.

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“Acho que é um evento muito ecuménico para os cristãos, nas suas diferentes convicções. Há igrejas diferentes mas a raiz é a mesma, é Cristo. Achei que era importante poder ajudar à comunhão, para que o ecumenismo seja uma comunhão. Acho que a principal questão importante hoje em dia no mundo é o respeito pela diferença e pelas convicções de cada um. Não acreditar também é uma convicção. Sendo diferentes nas igrejas em que participamos, não somos diferentes na fé, nem dos outros que não têm fé”, resumiu o ex-selecionador nacional, católico, admirador do Papa Francisco e da mensagem de que a Igreja “é para todos, todos, todos”. Fará, por isso, questão de marcar presença na Vigília que acontece este sábado e na Missa de Envio que marcará a despedida do Papa Francisco do Parque Tejo. “Porque nós somos Cristo”, foi a tática que deixou aos crentes do Estádio da Luz. “I’m feeling alive again”, ouvia-se no fim no meio das bancadas. Terão saído a ganhar.

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