A Cimpor mudou de mãos. Outra vez. E passou para um novo continente. A empresa que nasceu das nacionalizações em 1976 já foi considerada estratégica a nível nacional. E foi uma das companhias portuguesas mais internacionalizadas. Cobiçada várias vezes por empresas estrangeiras, só viria a mudar verdadeiramente de nacionalidade quando, em 2012, foi parar a mãos brasileiras. Desde então já passou pelo Brasil, Turquia e, agora, aterra em Taiwan.

A Taiwan Cement Corporation (TCC), que já tinha 40% da Cimpor, adquiriu, agora, o remanescente e fica com 100% da cimenteira portuguesa. Segundo foi noticiado em novembro do ano passado, os 60% da Cimpor foram adquiridos por 480 milhões de euros, o que coloca a totalidade da empresa com um valor de 800 milhões de euros. Longe dos tempos em que a capitalização, em bolsa, da Cimpor andou perto dos 4 mil milhões de euros. Eram tempos de OPA (ofertas públicas de aquisição) e de cobiça internacional, mas também eram tempos em que os acionistas portugueses, a braços com elevados endividamentos, queriam vender.

A Taiwan Cement Corporation já estava no capital da Cimpor desde 2019, ano em que os turcos da Oyak ficaram com a cimenteira, tendo o “preço final da transação sido fechado em 703,7 milhões de euros depois de considerar a dívida líquida à data de fecho da transação, os saldos com partes relacionadas e as mudanças no fundo de maneio desde 30 de junho de 2018”, segundo informações da Intercement Portugal, nome que entretanto assumiu a operação de cimentos da Camargo Corrêa que ficou da Cimpor.

“A decisão da Taiwan Cement Corporation (TCC) de adquirir uma empresa como a Cimpor tem como base o compromisso de continuar a expandir uma estratégia a nível global, com investimentos em vários setores da área da sustentabilidade, tais como energias renováveis e tecnologia. Esta operação traduz-se num dos maiores investimentos estrangeiros numa marca portuguesa”, escrevia a empresa da Formosa, em comunicado quando a operação foi aprovada pela Autoridade da Concorrência. Já esta semana, e com a conclusão do negócio, a Taiwan Cement Corporation acrescenta que “este investimento numa marca portuguesa que opera em Portugal, Cabo Verde, Costa do Marfim, Camarões e Gana permite à TCC continuar a investir em vários setores no campo da sustentabilidade, incluindo energias renováveis e tecnologias, ao mesmo tempo que continua a sua estratégia de expansão global”.

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Em Portugal, a Cimpor tem três unidades de produção de cimento (Alhandra, Loulé e Souselas), dois moinhos de clínquer, quarenta e duas centrais de betão pronto, dez pedreiras, duas fábricas de argamassa secas e uma fábrica de sacos de papel. Internacionalmente está em quatro países. E tem cerca de 1.300 empregos diretos e mais de 800 indiretos (operações em Portugal e África), segundo informação dada ao Observador pela empresa.

A mesma fonte oficial garante que a gestão da cimenteira vai manter-se “pelo que não está prevista nenhuma reestruturação“, garante-se.

Internacionalização começada nos anos 1990 e reduzida já no século seguinte

A internacionalização da cimenteira Cimpor iniciou-se pela gestão de António Sousa Gomes, que assumiu a presidência da empresa em 1992, depois de ter sido ministro do Plano e Coordenação Económica (de 1976 a 1978), ministro da Indústria (1977) e ministro das Obras Públicas e Habitação (1978), de governos do PS. A primeira grande aquisição foi na Galiza, a espanhola Corporación Noroeste, que acabou na brasileira Votorantim que ficou em 2012 com parte dos ativos da Cimpor.

De expansão em expansão, desde 1992, a Cimpor acabou a agrupar 26 fábricas em 12 países na Europa, África, América e Ásia. Em 2012, segundo descrevem Anabela Campos e Isabel Vicente no livro Negócios da China, a Cimpor tinha mais de oito mil trabalhadores, tendo sido considerada em 1998 pela revista Exame como a empresa portuguesa da década. Ainda segundo o mesmo livro, depois da expansão para Espanha em 1992 a Cimpor continuou viagem. Primeiro no Brasil, onde, em 1997, adquiriu a Cisafra e o negócio de cimento do grupo Serrana, que deu origem à Sociedade de Cimentos do Brasil, e em 1999 comprou o Grupo Brennand, incluindo Companhia de Cimentos Goiás, Companhia de Cimento Atol e Companhia de Cimento Portland.

A viagem continou para África e Ásia: Marrocos (1998), Moçambique (1994), Tunísia (1998), Egito (2000), Angola (2004, numa presença curta, já que incompatibilidades com o governo de Luanda determinaram a venda da posição na cimenteira angolana em 2006), Turquia (2007), China (2007), Índia (2008) e África do Sul (2008). Ou seja a estratégia de expansão da Cimpor pública continuou o trilho já sob gestão privada.

O mapa mundo da Cimpor acabaria reduzido já no novo século. E no tal ano de 2012, altura em que Portugal estava intervencionado e sob a supervisão da troika. Foi o ano em que a Cimpor passou para as mãos da Camargo Corrêa que fez um entendimento com a Votorantim para dividirem ativos da cimenteira portuguesa. A Camargo Corrêa, ao ficar com a Cimpor, adquiriu as fábricas de Portugal, Brasil, Moçambique, Cabo Verde, Egito e África do Sul. A outra brasileira, a Votorantim, ficou com as de Espanha, Turquia, China, Índia, Marrocos e Peru. A Votorantim e a Camargo Corrêa eram as duas maiores cimenteiras do Brasil. A Camargo Corrêa acabou apanhada pelo mega esquema de corrupção brasileiro Lava Jato em 2014. E foi o rastilho para que também acabasse por vender a Cimpor em 2018, ou pelo menos as suas operações em Portugal e Cabo Verde, à Oyak.

A Intercement Portugal, da Camargo, tinha no final de 2019 atividades em seis países: África do Sul, Argentina, Brasil, Egito, Moçambique e Paraguai (quatro das quais que foram originárias da Cimpor). Foi vendida a operação do Paraguai em 2022 e no ano seguinte foi vendida a do Egito, que tinha sido um marco de internacionalização da empresa nacional. A Intercement Portugal (nome que a Camargo adotou para a Cimpor) acabou, mesmo, a ser a cabeça do grupo de cimentos brasileiro, mas cada vez menos ligada à Cimpor.

Foi já através da Oyak que a designação Cimpor Portugal voltou. Em 2019, a Oyak Cement Portugal — que tinha sido criada para a compra da empresa — foi transformada em Cimpor Portugal Holdings, detida por uma subsidiária da Oyak com sede na Holanda. E foi pela mão dos turcos que entraram no portefólio da Cimpor Portugal a operação da Costa do Marfim e, mais tarde, dos Camarões e do Gana (que tem um projeto de fábrica para 2025).

A Oyak tinha, desde logo, uma parceria com a TCC para Portugal, tendo a empresa de Taiwan ficado agora com toda a posição em Portugal e com 60% da joint venture na Turquia.

A TCC ficou com a totalidade da Cimpor a 7 de março de 2024.

Como a Cimpor ficou em mãos brasileiras?

A Cimpor foi constituída a 26 de março 1976 em resultado da junção de sete cimenteiras portuguesas que tinham sido nacionalizadas em 1975. Nessa altura ficou com as três fábricas de cimento – Alhandra, Loulé e Souselas, bem como, a Fábrica de Cal Hidráulica do Cabo Mondego e as Unidades de Produção da Maceira-Liz e Pataias. Alhandra tinha sido o primeiro centro de produção de cimentos em Portugal. Remonta a 1890 e recebeu a concessão da patente para fabricar cimento Portland artificial a 24 de abril de 1894. E os Cimentos Maceira e Pataias acabaram por sair da carteira da Cimpor quando em 1990 se reestruturou este setor com vista à sua privatização.

A privatização decorreu entre 1994 e 2001. Entrou em bolsa logo na primeira fase com a venda pelo Estado de 20% da companhia. Na era do designado capitalismo popular ficou com 14 mil acionistas. Na segunda fase, em 1996, foi vendida mais uma tranche de 45% e em 1998 mais 25% foram alienados. A Cimpor privatizada a 90% tinha cerca de meio milhão de acionistas. A quarta e última fase da venda pública aconteceu em 2001, e a Teixeira Duarte ficaria com os 10,05% vendidos. No conjunto destas operações, o Estado conseguiu um encaixe total de 1,8 mil milhões de euros. A Cimpor tornava-se uma estrela na bolsa portuguesa.

A última operação, em 2001, já aconteceu depois de uma tentativa de compra por parte do principal concorrente, Pedro Queiroz Pereira, da Semapa, associado à cimenteira suíça Holcim. Como conta Ana Suspiro no livro Portugal à Venda, “a matemática da operação não agrada ao poder político nem aos defensores dos centros de decisão nacional. A Semapa, é dona da Secil, que já é um grande player  no mercado dos cimentos, e terá de ceder ativos em Portugal para viabilizar a operação. Apesar das suspeitas de votos concertados, a Teixeira Duarte e o BCP ganham a guerra pela Cimpor, com a ajuda do Governo de António Guterres, e do então ministro das Finanças, Pina Moura”. Com a venda dos 10% subsequentes à Teixeira Duarte, esta construtora ficou com 30% e assumiu o controlo da Cimpor privada ao lado do BCP.

É entre este núcleo duro que surge um outro novo acionista, a Investifino de Manuel Fino (empresário que morreu em junho de 2023) com dinheiro emprestado pela Caixa Geral de Depósitos e pelo BCP). Manuel Fino acabou a controlar a Soares da Costa, construtora concorrente da Teixeira Duarte, e ainda tomou partido pelos gestores (Paulo Teixeira Pinto) que no golpe de Estado do BCP afastaram Jardim Gonçalves. Do BCP a guerra chega, dois anos depois, à cimenteira em 2009. É nesse ano que Manuel Fino, a braços com uma dívida grande e obrigado a prestar mais garantias aos bancos, entrega metade (10%) da sua posição na Cimpor à Caixa Geral de Depósitos. E o Estado volta a colocar novamente o pé na cimenteira.

Manuel Fino ainda consegue destituir o presidente da Cimpor, que era Pedro Teixeira Duarte (da construtora). No meio do turbilhão a primeira OPA atinge a Cimpor. Chega do Brasil, pela mão da CSN – Companhia Siderúrgica Nacional que estava de olho, em particular, nos ativos do Brasil. Oferta rejeitada, tal como as outras fruto da insistência da CSN. A investida não ficou pela CSN. A Camargo Corrêa faz uma proposta de fusão amigável, que não avançou. A Votorantim começa a comprar posição de outros acionistas, como a Lafarge e a Cinveste, aliando-se à Caixa nos votos na cimenteira.

Os acionistas portugueses estavam fragilizados e com problemas maiores. E a Camargo Corrêa consegue adquirir a posição da Teixeira Duarte, continuando depois a reforçar posição e, como conta Ana Suspiro, em Portugal à Venda, ultrapassa o bloco constituído pela Caixa e Votorantim. A Teixeira Duarte sai da Cimpor com mil milhões de euros, uma almofada relevante para um setor em construção que definhou com a crise financeira e, mais ainda, nos anos seguintes, com o programa de austeridade.

Foi já com a troika em Portugal que se deu o desfecho final desta luta entre gigantes brasileiros. Em março de 2012 a Camargo Corrêa lança OPA sobre a Cimpor, a um preço inferior ao que a CSN tinha lançado dois anos antes. A administração da Cimpor manifestou-se contra a venda, mas nada podia fazer face à posição da Caixa que, em menos de meia hora, decidiu aceitar vender a sua posição na Cimpor, justificando-o com a imposição da troika de vender os ativos não estratégicos.

Faria de Oliveira era presidente da Caixa quando o banco público decidiu vender a Cimpor

Por esta altura, a Camargo Corrêa já tinha contratado como advogado para assessorar na OPA o poderoso Daniel Proença de Carvalho e os negócios de África já tinham sido entregues a Armando Vara, que tinha saído do BCP arguido do Face Oculta (acabou afastado, em 2014, do grupo brasileiro quando chegou a condenação nesse caso). Pedro Queiroz Pereira ainda faz uma derradeira tentativa para ficar com a Cimpor, mas a operação complexa não chegou a bom porto. Pedro Queiroz Pereira acabou por não voltar a tentar ficar com a Cimpor e virou-se para a pasta e papel, ficando com a Portucel (hoje Navigator).

A Cimpor, essa, tornou-se, então, e com a venda da Caixa, propriedade da Camargo Corrêa, que dividiu os ativos com a Votorantim. Segundo se diz no livro Negócios da China, “foi tudo feito com a conivência e o apoio do poder político. Primeiro com a do governo de José Sócrates, depois com a do executivo de Pedro Passos Coelho”.

Em mãos brasileiras, os prejuízos foram-se acumulando. As perdas em 2016 atingem os 788 milhões e os capitais próprios negativos os 408,9 milhões. É também nesse ano que chega ao fim a aventura na bolsa. A saída para esta crise aconteceria só com a compra por parte dos turcos da Oyak das operações de Portugal e Cabo Verde. Essas que agora voltam a mudar de mãos e de continente.