Índice
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Após uma série sobre a história dos frutos e seus nomes:
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 1: Dos limões-pomposos às pêras-jacaré
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 2: Melões valencianos e pepinos-serpente
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 3: Maçãs de algodão e sicofantas
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 4: Ratos vegetais e bagas peludas
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 5: Cerejas-dos-lobos e maçãs-das-bruxas
E de uma série similar sobre a história dos legumes:
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 6: Abóboras-do-cambodja e narco-alfaces
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 7: Pêssegos-dos-lobos e maçãs-insanas
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 8: Nabos-suecos e erva-dos-pardais
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 9: Maçãs-do-diabo e pêras-da-terra
De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 10: Feijões-de-porco e ervilhas-quadradas
Esta é a primeiro de sete partes sobre a história das especiarias e ervas aromáticas e da sua nomenclatura.
Pimenta-preta
A pimenta-preta são as bagas da pimenteira (Piper nigrum), uma trepadeira nativa da região de Kerala, na Índia. Esta planta faz parte da família das piperáceas, que inclui os géneros Piper, com 2000 espécies, e Peperomia, com 1600 espécies, muitas das quais são empregues no tempero de pratos e para fins medicinais, mas a Piper nigrum. O seu registo mais antigo, datado de 2000 a.C., está associado à culinária da Índia, mas cedo se difundiu pelo mundo, sendo tão apreciada no império chinês como no império romano.
Tendo a Índia sido, durante tantos séculos, a principal fonte de pimenta da Europa, é natural que em muitas línguas europeias a designação do produto tenha origem indiana, mais precisamente no sânscrito “pippali” (que designava as bagas, não da Piper nigrum, mas da sua parente Piper longum), através do latim “piper”. Assim surgiram “pepe” (italiano), “poivre” (francês), “pepper” (inglês), “peper” (holandês), “pfeffer” (alemão), “peber” (dinamarquês), “pippuri” (finlandês), “piper” (romeno), “biber” (sérvio) ou “poper” (esloveno). O português e o espanhol (“pimienta”) destoam desta tendência, derivando do latim “pigmentum” (pigmento).
A distinção entre pimenta-preta, pimenta-branca, pimenta-verde e pimenta-rosa suscita por vezes alguns equívocos. Na verdade, as três primeiras são bagas de Piper nigrum que foram sujeitas a diferentes processamentos, enquanto a pimenta-rosa, cujo sabor e aroma é diverso, provém de espécies diferentes, a Schinus terebinthifolia ou a Schinus molle.
No Brasil a pimenta-preta é também conhecida por pimenta-do-reino – isto é, proveniente de Portugal (já que era desembarcada em Lisboa) – para a distinguir das pimentas locais, nomeadamente da pimenta-rosa.
Como seria de esperar, os três maiores produtores de pimenta-negra estão no Sudeste Asiático: o Vietnam lidera, com 40% da produção mundial, seguido pela Indonésia e Índia. O Brasil e a China ocupam o 4.º e 5.º lugares.
Pimenta-longa
A pimenta-longa, que provém da Piper longum, tem a particularidade de os seus grãos estarem embutidos numa espiga, que, à distância, pode ser confundida com uma malagueta. Não tem qualquer parentesco com esta (que pertence ao género Capsicum) e é afim da pimenteira-negra e tem sabor similar (ainda que mais picante). Para se ser mais rigoroso, há duas pimentas-longas com significado comercial, pelo que convém distinguir entre a indiana (Piper longum), a mais comum, e a javanesa ou balinesa (Piper retrofactum). Também neste caso as várias línguas adoptam designações análogas: “pimienta larga” (espanhol), “poivre long” (francês), “long pepper” (inglês) e “langer pfeffer” (alemão).
A pimenta-longa, que na Antiguidade e Idade Média, representou uma fracção apreciável do comércio de especiarias, foi perdendo o favor dos consumidores europeus e acabou por ser posta de parte quando, no início do século XVI, os portugueses inundaram o mercado com pimenta-preta a preço mais baixo que o usual.
Pimenta-de-java
A pimenta-de-java (Piper cubeba) nunca desfrutou do prestígio da pimenta-preta, mas no final do primeiro milénio d.C. já se tinha difundida pela China, Índia e Europa mediterrânica. Na sua origem, em Java, como indica o nome, os produtores, querendo preservar o seu monopólio, tratavam de escaldar as bagas, de forma a torná-las incapazes de germinar. Não deverá ser confundida com outra pimenta originária de Java, a Piper retrofactum, que é uma pimenta-longa.
No Sudeste Asiático e no mundo árabe parece ter tido sobretudo aplicação medicinal e afrodisíaca, sendo mencionada em antigos tratados indianos e chineses, mas na Europa medieval teve algum curso na culinária, antes de ser suplantada pela pimenta-preta quando o comércio desta passou para mãos portuguesas e holandesas. O seu uso ressurgiu no Ocidente no século XIX, agora na vertente medicinal, sobretudo no tratamento das vias respiratórias, quer sob a forma de extractos quer de cigarros que prometiam curar catarro, asma e febre dos fenos. Na actualidade continua a ter fama de afrodisíaco (sendo publicitada como “viagra verde”), mas os seus usos alimentares no Ocidente são restritos (é usada na preparação de gin).
Um pouco por toda a Europa é conhecida também por “cubeba” ou “cubeb” (ou algo similar), que provém do árabe “kabāba”, o nome que lhes era dado pelos mercadores que dela abasteciam a Europa antes de os portugueses terem arruinado o seu negócio e que, por sua vez, provém do hindu “kabab”.
Pimenta-rosa
A pimenta-rosa provém de árvores sul-americanas da família do cajueiro, portanto, sem qualquer relação com a Piper nigrum. São elas a Schinus terebinthifolia, originária do Brasil, norte da Argentina e Paraguai e conhecida como aroeira-vermelha ou aroeira-pimenteira, e a Schinus molle, mais frequente na zona dos Andes peruanos e conhecida como pimenteira-bastarda.
A língua inglesa distingue as duas pimentas-rosas pela sua zona natural de ocorrência, designando a primeira por “Brazilian pepper tree” e a segunda por “Peruvian pepper tree”. O francês dá ênfase à “ilegitimidade” ou “falsidade” de ambas estas “pimenteiras”, designando-as por “faux poivriers”. A Schinus terebinthifolia é também conhecida nos EUA como “Florida holly” (azevinho da Florida), pela semelhança com as bagas de azevinho e por, no final do século XIX, ter sido introduzida na Florida, onde se difundiu rapidamente, tornando-se numa infestante (como, aliás, noutras regiões semi-tropicais). Na língua espanhola, a Schinus molle é designada por “molle del Peru”, provindo “molle” da palavra quechua para a árvore, “mulli”.
Pimenta-da-jamaica
A pimenta-da-jamaica é mais uma “falsa pimenta” americana, sem relação com as pimentas asiáticas do género Piper. Provém da árvore Pimenta dioica, originária do sul do México e Antilhas.
O primeiro europeu a deparar-se com ela foi Cristóvão Colombo que, estando convencido de que chegara à Ásia (ou aos seus arrabaldes) e tendo a baga um sabor picante, como a pimenta, a designou como “pimienta”. A pimenta-da-Jamaica foi introduzida na Europa e, depois, no Médio Oriente e na Índia, onde se tornou ingrediente indispensável da culinária local (a vasta oferta de pimentas do Sudeste Asiático não parece ser capaz de saciar o apetite dos indianos por temperos picantes). As primeiras tentativas para fazer germinar sementes de Pimenta dioica fora da sua área de origem foram infrutíferas, até que se percebeu que, no seu habitat natural, a árvore é disseminada pelas aves e que a passagem da semente pelo tubo digestivo daquelas é indispensável à germinação.
Entretanto, no século XVII, o botânico inglês John Ray baptizou a pimenta-da-jamaica como “allspice”, por entender que o seu gosto combinava o da canela, noz-moscada e cravinho (um três-em-um), e a designação vingou na língua inglesa. Nas restantes domina o vínculo ao local de origem: “pimienta de Jamaica” (espanhol; também “pimienta inglesa”), “pepe della Giamaica” (italiano), “poivre de la Jamaïque” (francês). O alemão, além de “Jamaicapfeffer” também usa “Neugewürz” (novo tempero), realçando que se trata de um condimento “novo”, por oposição às “velhas” pimentas asiáticas.
Pimenta-da-guiné
Mais uma “falsa pimenta”, desta feita africana: a Aframomum melegueta, uma planta herbácea, da família do gengibre (Zingiberaceae), natural de zonas costeiras pantanosas na África Ocidental, sem relação botânica com as pimentas asiáticas ou americanas. A planta produz frutos avermelhados contendo, cada um, uma dúzia de sementes, que são usadas como condimento e têm um gosto similar ao da pimenta-negra.
A pimenta-da-guiné era já conhecida no tempo dos romanos como sucedâneo da dispendiosa pimenta-negra e era transportada pelas caravanas que atravessavam o Sahara em direcção à costa mediterrânea. Após ter caído em desuso na Europa (mas não no Norte de África) após o fim do Império Romano, voltou a ter o papel de sucedâneo das pimentas asiáticas, por vezes com o nome de “grão do paraíso” (“grain of paradise”, “graine de paradis”, “grano del paraíso”, etc.), sobretudo a partir do momento em que os portugueses começaram a descer a costa africana e começaram a trazer directamente do Golfo da Guiné esta especiaria que designavam por “malagueta”.
Há quem sugira que “malagueta” provirá da cidade espanhola de Málaga (sem providenciar fundamento para tal) ou do hipotético topónimo de um local de produção ou embarque da especiaria na costa africana. A região que hoje corresponde à Serra Leoa e Libéria chegou a ser conhecida, pela abundância da especiaria, como “Costa da Pimenta” ou “Costa da Malagueta” (“Pepper Coast” em inglês, “Côte du Poivre” ou “Côte des Graines” em francês), mas neste caso o topónimo é que parece ter origem no nome da especiaria.
Na verdade, é provável que “malagueta” provenha do italiano “meleghetta”, o diminutivo de “melega”, uma antiga designação do sorgo (Sorghum vulgare), pela semelhança de aparência (não de gosto!) entre as duas plantas. A designação francesa das sementes da Aframomum melegueta, “maniguette” (que coexiste com “poivre de guinée”), provirá também do italiano. Os nomes noutras línguas são variados: em espanhol usa-se “amomo”, “pimienta de Guinea”, “malagueta de África”, ou “cardamomo de Madagascar”; em polaco é conhecido por “aframon madagarski” (Madagáscar parece ser um local popular para situar a origem de produtos exóticos), em alemão por “paradieskörner” (grão do paraíso).
Também em português a denominação é pouco clara, pois “malagueta” estender-se-ia depois a outras especiarias picantes, gerando intermináveis confusões.
Pimenta-de-são-tomé
É difícil explicar a ocorrência de um representante isolado do género asiático Piper no Golfo da Guiné, mas é daí que é originária a pimenta-de-são-tomé (ou pimenta-negra-da-áfrica-ocidental), que, apesar de ter o nome científico Piper guineense, não tem relação com a pimenta-da-guiné (Aframomum melegueta): os seus parentes mais próximos são a pimenta-de-java e a pimenta-preta.
Tal como a pimenta-da-guiné, era transportada pelas caravanas que atravessavam o Sahara e vendida na Europa medieval, onde competia com a pimenta-de-java, com a qual partilha o aspecto (embora tenha grãos mais pequenos) e o sabor, mas a sua popularidade foi declinando e hoje o seu uso está restrito sobretudo à sua região de origem – Gana e países vizinhos.
O nome português desta pimenta vem da única possessão portuguesa no Golfo da Guiné, o arquipélago de São Tomé e Príncipe, mas como este topónimo tem escasso significado para os não-portugueses, o nome desta especiaria noutras línguas recorre a outras referências: em inglês é conhecida como “Ashanti pepper” (numa referência ao império Ashanti que floresceu entre os séculos XVII e XIX onde hoje é o Gana, e à etnia com o mesmo nome), “Benin pepper” (numa referência ao antigo reino do Benim, um dos mais antigos do Golfo da Guiné), “Guinea cubeb” ou “false cubeb” (pela semelhança com a “cubeb” = pimenta-de-java); em espanhol é conhecida por “pimienta Ashanti” e em francês por “poivre des Ashantis” ou “poivre des Kissis” (sendo os Kissi outra etnia do Golfo da Guiné).
Pimenta-de-sichuan
A pimenta-de-sichuan, também conhecida como pimenta-chinesa, não tem afinidade com a pimenta-negra ou com qualquer das pimentas acima mencionadas: consiste nas sementes de duas espécies arbóreas do género Zanthoxylum, a Z. simulans e a Z. bungeanum, originárias da região de Sichuan, na China (embora, por vezes, o termo seja usado também para outras espécies deste género, como a Z. piperitum). A designação atribuída ao género pretende fazer a associação com um corante amarelo extraído das raízes de algumas das suas espécies – de “xanthos” (amarelo) + “xylos” (madeira) – mas um erro ortográfico fez surgir um “z” no lugar do “x” e assim ficou.
Este pimenta está muito presente na culinária de Sichuan, é usada sobretudo sob a forma de pó e a sensação que produz na boca tem sido comparada a tocar os terminais de uma pilha de 9 volts com a língua.
Todas as línguas a designam como pimenta-de-sichuan (ou algo análogo), excepto, claro, o mandarim, em que tem o nome de “huājiāo”. O nome da província de Sichuan provém de “si” (quatro) + “chuān” (rio), uma alusão aos quatro afluentes do Yangtze que a atravessam.
Em inglês, a pimenta-de-sichuan é, por vezes, designada por “fagara pepper”, por “fagara” ter sido o nome que lhe foi dado pelos árabes, que distinguiam mais dois tipos de pimenta, a “felfel” ou pimenta-preta (a partir do sânscrito “pippali”) e a “kabāba” ou pimenta-de-java (do hindu “kabab”). “Fagara” provém possivelmente da designação chinesa das árvores produtoras da pimenta-de-sichuan, “fajiu”, e acabou por ser usada como nome científico de um género (efémero) que agrupava algumas espécies que hoje estão incorporado no género Zanthoxylum.
Malagueta
Cristóvão Colombo, que aldrabara, de acordo com as suas crenças e conveniências, os cálculos, já de si erróneos, de Ptolomeu quanto às dimensões da Terra e à extensão do continente asiático, de forma a colocar Cipango (o Japão) a umas irrisórias duas mil milhas a oeste das Ilhas Canárias, estava convencido – contra todas as evidências – de que as terras a que aportara em 1492 eram asiáticas. Essa obstinada convicção deu origem a vários equívocos linguísticos, alguns dos quais nunca de dissipariam – é assim que, cinco séculos depois, continuamos a chamar “índios” aos nativos do continente americano.
Uma vez que se imaginava na Ásia, as bagas, sementes e frutos de sabor picante com que Colombo se deparou foram automaticamente denominados de “pimienta”: assim fez com as bagas da pimenteira-da-jamaica (Pimenta dioica) e com os frutos das plantas do género Capsicum, designadas genericamente em português de Portugal por malaguetas, embora o género Capsicum pertença à família das solanáceas (que abrange batatas e tomates). Enquanto na pimentas asiáticas o gosto pungente resulta da presença do alcalóide piperina, nos frutos e sementes das malaguetas o “picante” resulta da capsaicina, presente nas espécies C. frutescens, C. baccatum, C. chinense e C. pubescens e nalgumas variedades do C. annuum – mas não nas variedades conhecidas genericamente em Portugal como pimento doce (ver De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 7: Pêssegos-dos-lobos e maçãs-insanas).
No “contrato” entre plantas e animais para disseminação das sementes das primeiras a troco de nutrição para os segundos, pode parecer contraproducente que as plantas atestem os seus suculentos e vistosos frutos com uma substância tão “incendiária” para o tracto digestivo como a capsaicina. Acontece que os mamíferos tendem a triturar as sementes com os dentes, deixando-as incapazes de germinar, pelo que a capsaicina serve para manter estes consumidores indesejáveis à distância. Já as aves, que são constitucionalmente insensíveis à capsaicina (por falta do receptor para esta substância) e cujos intestinos devolvem à natureza as sementes intactas e aptas a germinar, são os parceiros preferenciais das plantas do género Capsicum. Claro que, depois, entrou nesta equação um bizarro mamífero bípede para quem o ardor suscitado pela capsaicina é, ao mesmo tempo, fonte de dor e prazer e que tratou de cultivar e aprimorar as plantas produtoras de frutos com elevados teores de capsaicina.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/2/2e/Sayaca_Tanager_feeding_on_malagueta_peppers.jpg/800px-Sayaca_Tanager_feeding_on_malagueta_peppers.jpg
[Um sanhaço-cinzento (Thraupis sayaca), ave comum no Brasil, Bolívia e Paraguai, delicia-se com frutos de Capsicum frutescens]
Nas cartas que escreveu aos Reis Católicos, Colombo fez o possível para dar a ilusão, no tom de bazófia e triunfalismo lunático que lhe era inato, de que as ilhas “asiáticas” a que aportara regurgitavam de especiarias, e também Diego Álvarez Chanca, o médico dos Reis Católicos, que fazia parte da expedição de Colombo, descortinava noz-moscada, gengibre e canela um pouco por todo o lado, embora admitisse que a (suposta) canela “não era de tão boa qualidade como a que conhecemos no nosso país”. Colombo, um gabarola compulsivo, afirmava, pelo contrário que “há imenso ají, que é a pimenta destes povos e que é muito mais valioso do que pimenta, não comem estas gentes outra coisa, pois é muito saudável. Com ela podem carregar-se anualmente 50 caravelas”.
O ají era apenas uma variedade entre a enorme diversidade de formas, cores, dimensões, sabores e graus de pungência que, ao longo de milénios de selecção artificial, os índios americanos tinham logrado obter a partir do género Capsicum. Há indícios da presença de Capsicum na dieta dos povos do centro do México desde 7.500 a.C. e do seu cultivo desde 4000 a.C. Quando os europeus chegaram ao Novo Mundo o cultivo de plantas do género Capsicum era florescente na América Central e no norte da América do Sul, em particular no Peru. Se os espanhóis designaram genericamente estes frutos americanos por “pimientos”, por afinidade com a “pimienta” asiática, os portugueses também não contribuíram para a clareza, dando-lhes o mesmo nome que tinham dado à pimenta africana: “malaguetas” (é esse o termo genérico que aqui se usará, para efeitos de facilidade de linguagem).
Colombo levou exemplares de malaguetas para a Europa, onde rapidamente se implantou o seu cultivo, impondo-se como um sucedâneo barato das pimentas asiáticas – claro que esta fácil “transferibilidade” invalidou que pudessem ser um produto comercial “valioso”, como pretendia Colombo, já que isso só se verifica quando o comerciante detém acesso exclusivo a uma origem única, como aconteceu com a noz-moscada das Molucas.
Mas a difusão das malaguetas não se ficou pela Europa, já que os portugueses se encarregaram de as levar para África e para o Sudeste Asiático. A Índia, embora já possuísse uma cornucópia de temperos picantes, acolheu as malaguetas de braços abertos, o que deu origem, entre outros pratos, ao emblemático “vindaloo”, uma variante goesa da portuguesa “carne de vinha d’alhos”, carne marinada em vinho e alho, em que o vinho é substituído por vinagre e o gosto picante é exacerbado pela adição de malaguetas.
Sendo as malaguetas muito variadas, é natural que a sua nomenclatura nas diversas línguas não seja clara e distinta. Em inglês são designadas genericamente por “chili peppers”, que associa a referência à pimenta (“pepper”) a “chilli”, palavra nahuatl para as malaguetas, que também gerou a designação “chile”, corrente na América hispanófona (e que, claro, nada tem a ver com o topónimo Chile). As malaguetas são genericamente denominadas como “piment” em francês, “peperoncino” em italiano (diminutivo de “peperone”, que designa os pimentos doces), “chilipeper” em holandês, “paprika”, “chili”, “pfefferoni” ou “spanischer pepffer” (pimenta espanhola) em alemão, “chili” em dinamarquês, “chilipeppar” em sueco, “papryka chili” em polaco e “csilipaprika” em húngaro.
“Paprika”, termo que nas línguas da Europa Central e de Leste surge frequentemente associado a especiarias picantes, provém do húngaro, que, por sua vez, remonta ao proto-eslavo “papar”, com origem no latim “piper”. O termo estendeu-se depois a quase todo o planeta para designar a especiaria obtida pela secagem e moagem do pimento doce (as numerosas variedades de Capsicum annuum com baixo ou nulo teor de capsaicina). Se isto já é confuso, acresce que em Portugal se usam como sinónimos de “paprika” (por vezes aportuguesada como “páprika”) as designações “pimentão” e “colorau”, e que no Brasil as malaguetas são designadas genericamente por “pimentas” (e “pimentão” designa o que em Portugal é o pimento doce).
A nomenclatura das múltiplas variedades de Capsicum – que excedem hoje os dois milhares – presta-se ainda a mais sobreposições, incongruências e inevitáveis confusões. Apresentam-se, sob forma simplificada, as variedades mais representativas, por ordem crescente de conteúdo de capsaicina e, logo, de pungência, conforme medida pela escala de Scoville (aferida em SHU = Scoville Heat Units).
O jalapeño (pimenta-jalapenho no Brasil) é uma variedade moderadamente picante (3500-10.000 SHU) de Capsicum annuum, que costuma ser colhida e consumida ainda verde. O seu nome provém de Jalapa (Xalapa), capital do estado mexicano de Vera Cruz, topónimo que, por sua vez, provém do nahuatl “xālli” (areia) + “āpan” (água). Os jalapeños são também consumidos sob forma seca e fumada, que recebe o nome de “chilpotle”, que provém do nahutal “chilpoctli”, que significa “malagueta fumada”.
A cayenne (pimenta-caiena no Brasil) também é uma variedade de Capsicum annuum, mais picante (30.000-50.000 SHU) do que o jalapeño e com grandes dimensões – os seus 30 centímetros fazem dela a mais longa das malaguetas. O seu nome provém possivelmente da sua designação em tupi: “quiínia”. A capital da Guiana Francesa tem o mesmo nome e é difícil perceber se a designação da malagueta veio do topónimo (ou foi influenciada por ele), ou o contrário, ou se o nome da cidade de Cayenne tem outra origem – como seja o termo marítimo francês “cayenne”, que designa uma caserna de marinheiros num porto ou um velho navio fundeado que desempenha essa função. Pode também provir do rio com o mesmo nome, que desagua junto à cidade e cuja designação na língua dos índios locais era Kalani ou Caiane, o que poderá também estar na origem do topónimo Guyane (Guiana).
O ají (pimenta-aji ou pimenta-dedo-de-moça no Brasil) é uma variedade de Capsicum baccatum com sabor picante (30.000-50.000 SHU) e que pode assumir variadas cores (embora a mais frequente seja o amarelo vivo) e formas, umas mais alongadas, que justificam a designação pimenta-dedo-de-moça, e outras mais bizarras, que justificam o nome “bishop’s crown” atribuída à variedade pendulum. O seu nome provém da sua designação em taíno, língua dos índios do Caribe.
A variedade tabasco está entre as mais menos picantes (30.000-50.000 SHU) da “incendiária” da espécie Capsicum frutescens, e o seu nome provém do estado mexicano com o mesmo nome. Parte da sua fama deriva do popular molho Tabasco, que tem como ingredientes estas malaguetas, vinagre e sal.
O piri piri (pimenta-malagueta no Brasil) pertence igualmente à espécie Capsicum frutescens, mas corresponde a uma variedade bem mais picante (50.000-175.000 SHU) que foi apurada em Moçambique a partir de variedades originárias das Caraíbas e se espalhou por África e Índia. É por isso que o seu nome, em vez de ter origem sul-americana, provém da designação swahili para “pimenta”: “pilipili”. O termo “piri piri” (por vezes grafado “piri-piri”) também se aplica aos molhos preparados a partir desta variedade e a outras variedades de Capsicum. Em francês, esta variedade é também designada por “langue d’oiseau”, numa referência à sua forma muito alongada.
A Capsicum chinense, a mais pungente das malaguetas, recebeu um nome científico que induz em erro, já que nada tem a ver com a China, provindo, como as restantes Capsicum, da América. As variedades correntes desta espécie são as “incendiárias” Habanero (100.000-350.000 SHU) e Scotch Bonnet (150.000-325.00 SHU) e a mais moderada Bird’s Eye (50.000-100.000 SHU).
O recurso à hibridação tem vindo a gerar variedades absurdamente picantes de Capsicum chinense: entre 1994 e 2006 o recorde esteve com a californiana Red Savina (577.000 SHU), mas foi destronada em 2007 pela Bhut Jolokia, do Nordeste da Índia, que atingiu 1.000.000 SHU (400 vezes mais picante que o molho Tabasco), que foi, por sua vez, superada pela Trinidad Moruga Scorpio, de Trinidad e Tobago, com 1.200.000 SHU.
Também esta acabou por ser ultrapassada, pela Carolina Reaper, que detém o recorde desde 2017, com 1.600.000 SHU, primazia que já foi desafiada (mas ainda aguarda homologação) pela Dragon’s Breath (2.480.000 SHU) e pela Pepper X (3.180.000 SHU). É, obviamente, uma escalada que saiu do domínio da culinária para entrar no das armas de destruição maciça e que só terminará num invólucro vegetal contendo capsaicina pura.
Regressando às malaguetas cujo cultivo e consumo não requer autorização dos bombeiros e da Protecção Civil, vale a pena mencionar a Capsicum pubescens (100.00-200.000 SHU), a única espécie do género que cresce bem em altitude e tolera temperaturas baixas. Era a malagueta mais cultivada no Império Inca e ainda hoje desfruta de grande popularidade no Peru, onde é conhecida como “rocoto” (de “rukutu”, o seu nome em quechua). No México é conhecido como “chile manzano”, pela semelhança, na forma do fruto, com a maçã.
Ao contrário do que seria de esperar, o maior produtor de malaguetas não é o México nem a Índia, mas a China, que representa 50% do total mundial. Seguem-se o México, a Turquia e a Indonésia. O México detém, todavia, um recorde no domínio das malaguetas: o do maior consumo per capita.