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Vésperas de Outubro: as diferentes tácticas de uma estratégia para a tomada do poder
A 10 de Outubro de 1917, e por insistência de Lénine, realizou-se uma sessão secreta do Comité Central do Partido Bolchevique. Embora não exista uma descrição pormenorizada daquilo que se passou no local da reunião, o “apartamento” de Nikolai Sukhánov, militante menchevique e um dos editores do jornal Nóvaia Jizn, conhecem-se os pontos essenciais do discurso feito pelo líder dos bolcheviques. As suas palavras, e resumidamente, analisaram a conjuntura político-militar e, em coerência, defenderam uma tomada imediata do poder pelos bolcheviques.
Ainda que, desde o momento em que regressara à Rússia, Lénine tivesse defendido uma estratégia, tão rápida quanto possível, de conquista do poder, esta sua posição ganhara renovada força desde o fracasso do golpe militar protagonizado pelo general Kornílov e que se desenvolveu entre 26 e 30 de Agosto, mas ainda pelo facto dos bolcheviques se terem tornado na força maioritária nos Sovietes das três maiores cidades da recém-instaurada república russa: Petrogrado (a 31 de Agosto), Moscovo (a 5 de Setembro) e Kiev (a 8 de Setembro). Note-se, aliás, que como consequência destas últimas notícias, Lénine abandonou a ideia de uma colaboração com mencheviques e socialistas revolucionários a nível governamental após a conquista do poder e que acarinhara imediatamente após o fracasso da intentona (ou “inventona”) de Kornílov.
A decisão de avançar com um golpe que levasse os bolcheviques à conquista do poder, do e no estado, uma vez que já o possuíam nos sovietes, tinha como objectivo resolver definitivamente o principal dilema político com que se confrontava o partido de Lénine desde o momento em que regressou à Rússia vindo do exílio, no dia 3 de Abril de 1917. Lénine não se cansou de sublinhar junto dos demais bolcheviques a avaliação que fazia da realidade política russa e que deveria ser a principal preocupação e fonte de orientação teórica e de acção dos bolcheviques: a tomada do poder, independentemente das inúmeras condicionantes, e das opiniões contrárias que gerou, inclusivamente após a consumação da Revolução de Outubro, tanto entre dirigentes bolcheviques, como entre vários dirigentes da área socialista, nomeadamente mencheviques e socialistas revolucionários.
Dos vinte e um membros que, a 10 de Outubro, compunham o Comité Central do Partido Bolchevique, por um conjunto de circunstâncias variadas, apenas doze se apresentaram à chamada. Destacavam-se, além do próprio Lénine, Zinóviev, Kámenev, Trótski, Estaline, Dzerzhinsky, Alexandra Kollontai e Sverdlov, que aliás presidiu ao encontro. A discussão dos termos concretos em que deveria ter lugar o “levantamento” armado que desembocaria na conquista do poder pelos bolcheviques, e que acabou por ficar camuflado na ordem de trabalhos sob a designação de “o momento presente”, é particularmente importante, não apenas pelo seu desfecho imediato e pelos resultados que produziu a curto, médio e longo prazo, mas porque ilustra com clareza a situação complexa, a encruzilhada, em que se encontrava o Partido Bolchevique, os dilemas que enfrentavam os seus dirigentes, a conjuntura política que a Rússia atravessava, mas, sobretudo, o teor das contradições que preenchiam o quotidiano das três principais forças que se reivindicavam do socialismo e do marxismo, tanto nas vésperas do golpe dado pelos bolcheviques mas, sobretudo, depois do triunfo destes.
Recorde-se que no decurso do exílio temporário enfrentado por Lénine após os acontecimentos de Julho, quando os bolcheviques tentaram mas não conseguiram tomar o poder, mas sobretudo depois do fracasso do golpe de Kornílov, vários documentos foram produzidos pelo dirigente máximo dos bolcheviques e enviados ao Comité Central do Partido sublinhando a necessidade e a urgência de, vistas as condições favoráveis, dar início a um processo político que conduzisse a uma tomada do poder, derrubando o Governo chefiado por Kerenski.
No relatório produzido e apresentado por Lénine no decurso da reunião 10 de Outubro, afirmava-se uma vez mais claramente, e em estilo que não queria dar azo a discussões, que do ponto de vista político a conjuntura se apresentava num estado de madurez absoluta, garantindo o cumprimento dos objectivos traçados pelo seu mentor. Ora, o que é que fazia com que, sob o ponto de vista de Lénine, a situação se apresentasse madura? Deixando de lado a ideia exaustivamente repetida, desde Abril nas célebres Teses de Abril, de que o poder tinha que ser tomado de assalto pelos bolchevique, no essencial, a argumentação partia do princípio de que seria errada a tomada do poder apenas depois da realização do Congresso dos Sovietes já aprazado, como defendiam alguns dirigentes bolcheviques, nomeadamente Kámenev e Zinóviev.
Logo nos finais de Setembro, numa carta que se tornou célebre, intitulada “A Crise está Madura”, Lénine sublinhou que caso os bolcheviques se deixassem apanhar pelas “ilusões constitucionais”, encurralar pela “«fé» no Congresso dos Sovietes e na convocação da Assembleia Constituinte” e, finalmente, pelo “aguardar” da realização do Congresso dos Sovietes”, não restaria qualquer “dúvida de que esses bolcheviques seriam traidores desprezíveis da causa do proletariado”. Mas para além disso, e de forma ainda mais violenta, Lénine acusava aqueles que no Partido eram hostis “à tomada imediata do Poder” e “à insurreição imediata”, de serem cúmplices de “uma idiotice completa ou de uma traição completa.”
Estas acusações decorriam daquela que era uma avaliação feita de um conjunto variado de factores, e que para Lénine, caso os bolcheviques os soubessem usar em seu favor, garantiriam o êxito em caso de levantamento armado. Podiam, em primeiro lugar, aproveitar a vantagem simples e directa decorrente daquilo que seria o lançamento de um ataque a partir de três pontos (Petrogrado, Moscovo e a Frota do Báltico); em segundo lugar, possuíam “capacidade técnica para tomar o poder em Moscovo”; finalmente, dispunham de milhares de trabalhadores armados e de soldados que podiam imediatamente tomar o Palácio de Inverno, as centrais telefónicas, o Estado Maior e as principais tipografias da capital da Rússia então localizada em Petrogrado. Feito o balanço, atacando rapidamente e de surpresa, era óbvio que a probabilidade de êxito seria de “99 por cento” e as baixas muito inferiores às dos “acontecimentos de 3-5 Julho”, tudo porque desta vez as tropas não se moveriam “contra um governo de paz.”
Encontrando-se, do ponto de vista de Lénine e daqueles que o apoiavam no interior do partido, criadas as condições objectivas para o assalto ao poder, a reunião de 10 de Outubro deveria discutir os preparativos políticos e, sobretudo, militares. No fundo, foi precisamente isso que aconteceu. Mas neste ponto é importante sublinhar o papel determinante desempenhado por Trótski, sendo que se é verdade que a preparação da decisão política estratégica de tomada “imediata” do poder pertenceu a Lénine, a opção táctica adoptada seria a que Trótski apresentou e defendeu.
Portanto, na reunião do Comité Central realizada a 10 de Outubro, Trótski foi o outro protagonista e arquitecto do assalto ao poder. Foi ele quem defendeu que a iniciativa político-militar dos bolcheviques deveria esperar pelo dia 25 de Outubro; quem coordenou todo o planeamento militar e quem viria a comandar as operações militares. A questão do adiamento foi importante uma vez que a sua aceitação, contra o desejo manifestado por Lénine, contribuiu para ultrapassar a forte tensão criada na cúpula do Partido quando parecia evidente e inevitável que se seguiria à letra a solução proposta pelo seu dirigente máximo.
É que Lénine, apesar de sinceramente reverenciado pelos seus camaradas, tinha não poucas vezes, pela natureza das suas propostas e pela forma como eram apresentadas, sido qualificado como uma inteligência brilhante mas, também, afastado da realidade dos factos. Ouvidos e aceites os argumentos de Trótski a favor de um aprazamento de cerca de duas semanas na data do golpe, inclusive pelo próprio Lénine, os membros do Comité Central, com excepção dos “moderados” Zinóviev e Kámenev, serenaram e, por isso, sentiram-se mais confiantes. O mínimo denominador comum entre as várias opiniões existentes, assim como e quando se deveria avançar, foi, portanto, produto da intervenção de Trótski. E, de facto, a sua posição mais fria, porque mais elaborada, decorria de um melhor e maior conhecimento da realidade política.
Ao contrário de Lénine, Trótski não ignorava papel real e a importância política dos Sovietes, nomeadamente, o significado da já aprazada reunião do II Congresso dos Sovietes dos Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia. De facto, apenas o desconhecimento por parte de Lénine da relevância deste II Congresso dos Sovietes lhe permitia considerar que o assalto ao poder deveria ter lugar “antes e independentemente” deste acontecimento. Segundo Lénine, primeiro tomava-se o poder, depois falava-se com os Sovietes. Trótski, por outro lado, não apenas pensava que Lénine dava demasiada importância ao “inimigo” e, por isso, tinha pressa em avançar, mas, e sobretudo, que subvalorizava o papel dos sovietes enquanto “disfarce”.
Na sua opinião “o partido não podia tomar o poder como Lénine pretendia, independentemente dos Sovietes, uma vez que os trabalhadores e soldados recebiam todas as informações, incluindo aquilo que sabiam acerca do Partido Bolchevique, por intermédio dos Sovietes.” Tomar o poder fora da estrutura dos sovietes apenas serviria para lançar a confusão. De qualquer modo, as diferenças entre Lénine e Trótski eram tácticas, independentemente das implicações estratégicas, e centravam-se nas datas e na justificação para o golpe.
Naquela data, e com razão, conforme o desenrolar dos acontecimentos posteriormente demonstrou, Lénine estava consciente de que um golpe protagonizado pelos bolcheviques nunca contaria com o apoio da maioria da população, mas que, por outro lado, a necessidade da sua consumação naquela circunstância precisa era absoluta. Esperar, poderia ser, seria, fatal. Uma hesitação mais e os bolcheviques nunca chegariam ao poder. Nomeadamente, aguardar, como alguns defendiam, pela realização do sufrágio já marcado para a eleição de uma Assembleia Constituinte, demonstraria, a posteriori, tanto a reduzida representatividade eleitoral dos bolcheviques, como o seu absoluto desrespeito pela manifestação da vontade do povo, vontade esta expressa através do sufrágio eleitoral.
Como realisticamente Lénine terá afirmado no decurso da reunião de 10 de Outubro, “esperar pela Assembleia Constituinte, que obviamente não estará do nosso lado, não tem sentido, e apenas significa a complicação da nossa tarefa”. Daí que tenha lançado acusações a todos aqueles que no Comité Central se opunham a um levantamento, ao mesmo tempo que se mostrou indulgente com todos aqueles que se apresentavam pouco à vontade com a natureza conspiratória da sua estratégia. Mas o mais importante das suas palavras, tanto quanto à natureza das ideias expressas, como quanto ao futuro que deveria emergir de uma nova situação política produzida com o triunfo de um levantamento protagonizado pelos bolcheviques, residiu no facto de Lénine ter dito claramente que a Assembleia Constituinte não iria “obviamente estar do nosso lado” e que, portanto, daí se deveriam retirar todas as conclusões, tanto para tomar poder como, depois, para o manter.
Vésperas de Outubro. Sensibilidades e Programas
Independentemente daquelas que seriam as expectativas de Lénine quanto à eventual reacção dos presentes à sua proposta de levantamento armado, verificou-se uma concordância geral, com a excepção de dois dos mais notáveis membros do Comité Central ali presentes: Zinóviev e Kámenev que votaram contra. Um e outro avançaram um conjunto de argumentos que resultavam do conhecimento que possuíam de factos inatacáveis como, por exemplo, que os bolcheviques tinham um apoio muito reduzido ou nulo fora das grandes cidades e que o partido teria mais a ganhar politicamente através da Assembleia Constituinte do que de um golpe de Estado.
A forte convicção com que expuseram factos e argumentos, defendendo que a melhor opção para chegar ao poder seria fazendo valer o peso político dos assentos que conseguissem ocupar na futura Assembleia Constituinte após a realização de eleições, significava que apoiavam a via parlamentar e democrática para a conquista do poder em detrimento da via violenta e antidemocrática. À medida que as discussões se aproximaram de uma conclusão, eram visíveis três posições no interior no Comité Central.
A primeira, composta por Lénine, que sozinho favorecia uma tomada imediata do poder, sem ter em conta a reunião próxima do Congresso dos Sovietes e a eleição, com data já estabelecida, da Assembleia Constituinte. A segunda posição, de Zinóviev e Kámenev, apoiada por Nogin, Vladimir Miliutin e Aleksei Rikov, opunha-se a qualquer golpe. Finalmente, a terceira, composta pelos restantes intervenientes, concordou com a solução do golpe, mas apenas no caso deste se realizar nos termos propostos por Trótski. Tinha que ser levada a bom porto em conjugação com o Congresso dos Sovietes e contando com o seu apoio formal. Por isso, não se poderia avançar imediatamente. Havia que esperar duas semanas.
De qualquer forma, uma maioria de dez votos ratificou um levantamento armado, considerando-o “inevitável” e em estado de “completa maturação”. A questão da data foi deixada em aberto, o que implicitamente era uma clara vitória para Trótski e um êxito parcial de Lénine que defendia o avanço imediato. Contra a sua vontade e aquela que era sua natureza, Lénine aquiesceu neste compromisso, ganhando naquele que era o ponto essencial da discussão levada a cabo, depois de reconhecida a bondade do golpe: consumado este, ao Congresso dos Sovietes apenas seria pedido que ratificasse a iniciativa dos bolcheviques. Isto não significa, porém, que não se possa considerar a vitória obtida por Lénine na reunião de 10 Outubro como um “golpe” dado no seio do seu próprio partido. Afinal, dos 21 elementos que compunham o Comité Central, apenas 12 estiveram presentes e só doze votaram favoravelmente a proposta de arranque de um levantamento armado…
Este confronto de estratégias entre Lénine e aquilo que revelou ser o grosso da opinião do comité central que assistiu à reunião de 10 de Outubro, por um lado, e Kámenev e Zinóviev, por outro, não se resumia porém à questão de saber qual dos grupos possuiu num determinado momento uma maior e melhor percepção dos factos políticos ou do ambiente social decorrente daqueles. Numa palavra, não importa apenas saber quem teve o génio político que se consumaria quer na conquista do poder pelos bolcheviques na noite de 24 para 25 de Outubro de 1917, quer na sucessão de batalhas político-militares vitoriosas que conduziriam à vitória numa Guerra Civil sangrenta e demorada, e portanto à conquista do poder absoluto por parte dos bolcheviques, transformando a Rússia no primeiro Estado governado por um partido que se afirmava como genuíno representante de operários e camponeses. Importa sim conhecer quais as variáveis políticas que naquele início de Outubro eram relevantes na discussão que se levou a cabo.
O primeiro e indiscutível facto era que, objectivamente, e uma vez que Lénine se vira obrigado a manter-se afastado de Petrogrado na sequência da tentativa falhada de tomada do poder pelos bolcheviques no transacto mês de Julho, o líder dos beolcheviques não possuía, indiscutivelmente, o melhor conhecimento da complexa situação política vivida, não apenas na capital, mas também noutros pontos chave da Rússia e, finalmente, daquelas que eram as conturbadas relações político-diplomáticas e militares da Rússia com os seus aliados no conflito militar que decorria desde o Verão de 1914. Zinóviev e Kámenev, pelo contrário, e apesar de procurados pelas autoridades, tinham podido manter praticamente toda a sua actividade política, renovada aliás após o fracassado golpe militar chefiado por Kornílov.
Embora procurados pelas autoridades, puderam manter-se, globalmente, mais próximos do desenrolar dos acontecimentos. Objectivamente, também, e embora Lénine continuasse como o dirigente único e incontestável dos bolcheviques, verdade era que tinha fracassado claramente no decurso dos graves incidentes de Julho e nos quais, pela segunda vez desde Abril, os bolcheviques tentaram tomar de assalto o poder. Quer se queira, quer não, como consequência dos fracassos acumulados, em Outubro Lénine era um líder menos credível do que havia sido três meses antes, apesar de se manter sem contestação e sem rival à frente dos bolcheviques. Em Julho, Lénine avaliou de tal forma mal a situação política, que o resultado da sua acção, ou da ausência desta, esteve à beira de conduzir à “destruição do Partido Bolchevique” (posteriormente, os bolcheviques procuraram impor uma interpretação do putsch de Julho como sinómimo de “manifestações espontâneas” por parte das massas e que o partido apenas procurou conduzir para e por vias pacíficas).
Zinóviev, que desfrutara de uma posição privilegiada no desenrolar desta crise, mantendo-se sempre ao lado de Lénine, observou o modo como este se manteve hesitante, incapaz de tomar as decisões finais que se impunham de forma a conseguir a vitória para os militantes bolcheviques que se tinham levantado em Petrogrado. Pôde ainda constatar de que forma Lénine se decidiu sobre aquela que seria melhor forma de não se comprometer e, portanto, de não transmitir as ordens finais aguardadas pelos sublevados. Independentemente das questões políticas mais relevantes existente no seio do Partido, e que permanentemente afastaram Lénine, por um lado, e Zinóviev e Kámenev, por outro, a verdade é que os passos em falso, a excentricidade, o radicalismo e a dificuldade em contemporizar por parte de Lénine, fizeram com que o culto da infalibilidade que sempre cultivou parecessem, particularmente em Outubro, politicamente preocupantes e com o risco de se tornarem fatais para a vida do partido bolchevique.
No entanto, e para além de Lénine ter demonstrado não ser, nem parecer ser, nos acontecimentos do início de Julho, o líder de que o Partido Bolchevique necessitava para aceder ao poder e constituir ou fazer parte de um Governo que pusesse em prática aquele que era não apenas o seu programa – e o seu programa era “apenas” aquilo que desde Fevereiro as massas trabalhadoras, operárias e agrícolas, reivindicavam –, mas também de amplos sectores da esquerda, e a que pertenciam formações políticas tão importantes como os mencheviques e os socialistas revolucionários, a verdade é que se apresentou em Outubro na reunião do Comité Central do seu partido com uma estratégia arriscada e que, implicitamente, obrigava, cedo ou tarde, a um confronto com as restantes formações de esquerda.
Ora este facto era preocupante, uma vez que mencheviques e socialistas revolucionários tinham uma forte representatividade no Congresso Geral dos Sovietes que se reuniria em Petrogrado a 25 de Outubro, e que Lénine queria e acabaria por ignorar e, depois, destruir, mas também seriam, com toda a certeza, claramente maioritárias nas eleições da Constituinte marcadas para se iniciarem a 12 de Novembro.
Se é certo que, entre os acontecimentos revolucionários do início de Julho e o fracasso do golpe dirigido por Kornílov, Lénine se ocupou quase exclusivamente da redacção daquele que pensava vir a ser o seu testamento político – uma obra incompleta que passou à história como O Estado e a Revolução –, em Setembro deu de novo início a todo um trabalho que tinha como objectivo ultimar uma nova tentativa de assalto ao poder por parte dos bolcheviques. Com preocupações idênticas, Kámenev, e em certa medida, também Zinóviev, definiram uma estratégia alternativa que permitisse a chegada dos bolcheviques ao poder, mas com menos custos para todos, sobretudo quando comparada com que aquela defendida por Lénine e apoiada por outros ilustres dirigentes do partido.
Neste contexto, deve notar-se que o drama de Lénine, e a tragédia subsequente ao seu triunfo e ao triunfo dos bolcheviques, residiu antes do mais no facto de se ter convencido que lhe cabia, que lhe fora assignada, a missão de conquistar o poder na Rússia. Em segundo lugar, e na sequência destas certezas, estava não apenas convencido acerca da oportunidade e da obrigação de construir o primeiro Estado de inspiração marxista da história mas, sobretudo, de após ter sido consumado este desiderato, ficarem criadas as condições, em resultado daquela que era uma crise social e política e generalizada na Europa, para que pudesse ter início a revolução proletária mundial.
Esta ocorreria não apenas por ser necessária, mas sobretudo porque fora prevista cientificamente por dois homens geniais como teriam sido Marx e Engels. Este sonho, que na opinião de Lénine estava à beira de se poder concretizar nos meses de Setembro e Outubro de 1917, justificava não apenas a apresentação da solução política por si propagandeada mas, sobretudo, e após a conquista do poder, a tomada das medidas mais antidemocráticas, mas tidas como absolutamente necessárias para a eliminação daqueles que se colocassem no caminho da revolução proletária vitoriosa na Rússia e da revolução proletária também necessariamente vitoriosa que se avizinhava no resto da Europa e do mundo, a começar pela Alemanha.
Do ponto de vista de Lénine, tanto em Setembro como em Outubro, e visto o iminente colapso não apenas de mais um Governo Provisório de coligação, tendo em conta a cada vez maior proximidade dos exércitos alemães de Petrogrado – a praça forte dos bolcheviques na Rússia – mas, sobretudo, existindo a possibilidade efectiva de se criarem condições para a constituição de um Governo de coligação entre mencheviques, socialistas revolucionários e bolcheviques em torno de um programa comum que, naturalmente, integraria as principais propostas feitas por Lénine em Abril – paz, terra para os camponeses pobres e controle operário nas empresas industriais – pressionavam e apressavam Lénine.
Daí que em Setembro, e ainda mais em Outubro, sob o seu ponto de vista, fosse essencial que a questão do poder não caísse num desfecho cujo resultado fosse o estabelecimento de uma coligação democrática, independentemente da dimensão da representação bolchevique no Governo de coligação que daquela resultasse. Parece evidente que apesar de tal Governo se poder comprometer em resolver os três problemas políticos suscitados por Lénine desde muito cedo, nestas circunstâncias o líder dos bolcheviques nunca estaria em condições de cumprir a missão histórica que cabia a um partido marxista numa conjuntura particular e tão favorável como a então existente na Rússia e no resto da Europa, tendo em vista o arranque da revolução mundial, e cuja primeira etapa no exterior da Rússia seria, sem qualquer dúvida, uma revolução social proletária na Alemanha.
Lénine queria o poder a qualquer preço antes que se pudesse formar um governo de coligação que tivesse na sua agenda, apenas, a questão da paz, a distribuição da terra e o controle operário. Mas ao mesmo tempo, e sobretudo porque se tornara evidente que os principais inimigos estavam à sua esquerda, Lénine almejava conquistar o poder ao abrigo de uma cortina de fumo capaz de fazer crer que se estava a subtraí-lo à “burguesia”, à “direita” e à “contra-revolução”. Na realidade, quem estava a ser privado do acesso ao poder, da constituição de uma virtual coligação democrática de socialistas, do exercício desse mesmo poder, como demonstraram os acontecimentos prévios ao deflagrar da Guerra Civil entre “vermelhos” e “brancos”, não eram outros senão amplos sectores da esquerda marxista.
Lénine manteve no seu plano de acção, embora com algumas alterações impostas pela evolução da conjuntura, e as ideias que publicitou no pequeno discurso que dirigira à multidão que o fora receber à Estação da Finlândia em Abril de 1917. Aí também afirmou que a “guerra imperialista de pilhagem” era o começo da Guerra Civil em toda a Europa. Ora para que se alargasse a todo o Velho Continente tinha que iniciar-se em algum sítio. A Lénine só lhe competia fazer com que tal acontecesse na Rússia. Portanto, o combate pelo triunfo do socialismo, em Setembro e Outubro de 1917, como em momentos posteriores, não opunha a “burguesia” ao “proletariado e às massas camponesas”, como o próprio Lénine não poucas vezes afirmou, mas consistia numa guerra total dos bolcheviques – que se encontravam do lado certo da história – contra todos, mas também de um intenso confronto no interior da própria família bolchevique entre aqueles que favoreciam as teses de Lénine de tomada e conservação do poder a todo o custo, e aqueles que se lhes opunham ou, pelo menos, apelavam à adopção de princípios mínimos de moderação e de prática democrática.
Uma vez que, pelo menos a partir de Abril de 1917, Lénine nunca agiu com base numa lógica analítica na qual o essencial fosse a resolução do confronto típico da crítica marxista que opunha “o poder burguês do Governo Provisório” à “(potencial, se não real) ditadura revolucionária dos sovietes”, isto significa que para Lénine o mais importante sempre foi vencer uma luta que na sua fase inicial, mas também decisiva, iria sempre ter lugar no seio dos sovietes. Só essa vitória garantiria o cumprimento dos desígnios históricos previstos e prometidos pelo marxismo. A Lénine não bastava a transferência de todo o poder para os sovietes. Os sovietes tinham que ser bolcheviques. Neste sentido, aliás, a prática de Estaline, e independentemente das suas idiossincrasias e dos condicionalismos impostos por tempos futuros, não foi mais do que a consequência lógica daquilo que se tornara a acção política e a orientação doutrinária do partido bolchevique.
A Revolução Bolchevique como Guerra Civil feita à imagem de Lénine.
A táctica de tomada do poder ratificada pelo Comité Central dos bolcheviques, dependia da provocação, e da credibilidade da provocação, exercida sobre o Governo Provisório. A grande interrogação andava em torno do seguinte: no que é que o Governo podia ser provocado e, com isso, ver a sua escassa reputação socavada, não apenas aos olhos da opinião pública mas, sobretudo, daqueles que poderiam defendê-lo no momento do avanço dos golpistas. Os resultados dependiam da capacidade de se fazer avançar o Governo ou, o que era realmente importante e desejável, de transmitir a ideia clara de que ele avançaria contra a “revolução”.
Dessa forma, o golpe pareceria um mero movimento defensivo e nunca uma iniciativa concertada, devidamente planeada, com objectivos bem definidos da parte dos bolcheviques. A iniciativa destes, que a frio emergiria como pondo em causa a autoridade do Governo chefiado por Kérenski e a dos próprios sovietes, uma vez que fora concebida e seria executada com o desconhecimento destes, necessitava de um bode expiatório. O bode expiatório seria uma putativa iniciativa contra-revolucionária da responsabilidade do Governo Provisório. Assim, e como era já do conhecimento público antes do avanço dos bolcheviques, far-se-ia correr a acusação de que o governo conspirava em duas frentes. Numa, com Kornílov, com o objectivo de “suprimir a Revolução”. Noutra, com o Kaiser, com a perversa intenção de entregar Petrogrado ao Exército alemão. Finalmente, e não sem uma forte ironia, em função do que seria a atitude dos bolcheviques não muito tempo depois da sua chegada ao poder, punha-se a correr o rumor segundo o qual se estariam a reunir todas as condições para que se “dispersasse” tanto o Congresso dos Sovietes como a Assembleia Constituinte. Como testemunharia Estaline mais tarde:
A Revolução [leia-se: o Partido Bolchevique] disfarçou as suas acções ofensivas por trás de uma cortina de fumo defensiva de forma a tornar mais fácil a atracção à sua órbita dos elementos indecisos, hesitantes.
A revolução de Outubro abriu uma nova era naquilo que passaram a ser as iniciativas normais a prosseguir numa situação em que o objectivo era a tomada do poder pela força e que, aliás, tanto a direita como a esquerda não democráticas copiariam, ou procurariam copiar, sobretudo nas décadas de 1920 e 1930. Na noite de 24 para 25 de Outubro, o êxito da empresa esteve em grande medida no facto dos bolcheviques terem desistido da ideia de que seriam as “manifestações armadas de massas e as escaramuças nas ruas” a permitir o êxito golpista. Por isso, não se seguiram os caminhos traçados por Lénine nos levantamentos de Abril e Julho e que consequências tão dramáticas apresentaram, fosse pelo facto das multidões terem provado ser muito difíceis de controlar, fosse, sobretudo, por acabarem por produzir reacções contrárias aquelas que poderiam levar ao cumprimento dos objectivos predefinidos.
Em Outubro, a iniciativa golpista assentou pura e simplesmente na criação e uso de pequenas e bem disciplinadas unidades de soldados e trabalhadores que agiram sob o comando da Organização Militar, “disfarçada de Comité Militar Revolucionário”. Aquelas unidades ocuparam os principais centros de transporte e comunicações, serviços públicos e tipografias – “os centros nevrálgicos de qualquer metrópole moderna”. O simples facto dos revoltosos terem feito com que às suas mãos fossem parar as linhas telefónicas que garantiam a quase totalidade das comunicações entre o Governo e o Estado Maior, tornou improvável, senão impossível, qualquer contra-ataque.
A eficácia e a discrição da acção dos revoltosos em Petrogrado foi de tal ordem, que enquanto se desenrolava a “revolução de massas”, cafés e restaurantes, a ópera, os teatros e os cinemas estavam abertos ao público e repletos de gente em busca de divertimento. Como é facilmente perceptível, em circunstância alguma se poderá classificar a “insurreição Bolchevique” de 25 de Outubro em Petrogrado (ao contrário do sucedido em Moscovo e noutras cidades russas) como uma luta sangrenta travada por dezenas de milhares de revolucionários, e na qual também vários milhares de heróis sem rosto e sem nome deram a vida pela causa da Revolução, muito à imagem tanto do discurso produzido pela historiografia oficial soviética e por uma certa historiografia ocidental de raiz marxista que lhe seguiu as pisadas, como pela brilhante mas também ficcionada reconstituição dos acontecimentos feita por Eisenstein na longa metragem Outubro.
Um forte indício de que após a tomada do poder pelos bolcheviques as coisas não iriam correr da melhor forma caso se insistisse nas soluções políticas desde sempre defendidas por Lénine e apoiadas em boa medida pelos seus pares, é visível através de uma análise que se faça de alguns factos que precederam e acompanharam os acontecimentos dos dias 24 e 25 na capital. Na realidade, e ao contrário daquilo que os bolcheviques quiseram fazer crer, durante o golpe a sua influência ou o peso efectivo no seio da guarnição militar estacionada em Petrogrado – com excepção da base naval de Kronshtadt – era escassa. Estimativas optimistas registam que apenas cerca de 10%, para menos, da guarnição da capital participou no golpe.
Há quem fale em meros 4%, ou seja, cerca de 10 mil homens, sendo bom recordar que aqueles membros mais pessimistas do Comité Central que se tinham em algum momento oposto a uma tomada do poder pela força, o fizeram precisamente por considerarem que os bolcheviques não contavam com o apoio da guarnição estacionada na capital. Como é sabido, os optimistas provaram ter razão. Sobretudo porque se era verdade que os bolcheviques podiam gozar com o apoio de uns escassos 4%, o Governo Provisório tinha um apoio ainda mais reduzido, muito por causa das manobras preventivas levadas a cabo por jovens militantes bolcheviques em diversas unidades. Na noite de 24 para 25 de Outubro, como posteriormente, o segredo não estava na quantidade mas sim na qualidade e, sobretudo, na determinação dos bolcheviques em se imporem.
Às 10 da manhã do dia 25, foi entregue à imprensa, redigida por Lénine, uma declaração que se tornaria histórica por ratificar a deposição do Governo Provisório e por fazer passar para as mãos do “Comité Militar Revolucionário anexo ao Soviete dos Deputados Operários e Soldados de Petrogrado” o poder de toda a Rússia ( “Aos Cidadãos da Rússia” in V. I. Lénine, Obras Escolhidas em Seis Tomos, 3.º vol., s.e., Lisboa — Moscovo, Edições “Avante!” — Edições Progresso, 1985, p. 336.). Como é óbvio, a declaração, apesar de ter um lugar de destaque no corpo dos decretos publicados pelos bolcheviques nos primeiros tempos da sua governação, era em boa medida uma impostura, uma vez que, pelo menos formalmente, ninguém fora do Comité Central dos bolcheviques conferira qualquer autoridade para a consumação do golpe, depondo o Governo e assumindo o poder em toda a Rússia em nome do Soviete de Petrogrado.
O braço armado do Soviete da capital fora constituído para defender a capital e não para tomar o poder, ao passo que o Segundo Congresso dos Sovietes que deveria legitimar o golpe não se tinha ainda sequer reunido de forma a que alguém pudesse falar em seu nome. A situação era ainda mais caricata uma vez que, ao fim da tarde, o Governo Provisório ainda se não tinha rendido no seu refúgio situado no Palácio de Inverno, apesar das fracas tentativas de assalto levadas a cabo por forças revoltosas. Só mais tarde, após a retirada dos Cadetes e dos Cossacos, mas permanecendo ainda um punhado de jovens Cadetes e o famoso Batalhão da Morte, composto exclusivamente por mulheres, os Guardas Vermelhos avançaram cautelosamente e ocuparam o Palácio de Inverno, consumando em Petrogrado a primeira revolução proletária mundial. Mas este não se tratou de um assalto com as características daquele que pode ser visto na “reconstituição histórica” inventada no famoso filme de Eisenstein, Outubro. O acto, embora histórico, nada teve de glorioso. O Palácio foi invadido e devastado pela multidão apenas depois de ter deixado de ser defendido. O total de baixas foi de cinco mortos e vários feridos, a maior deles vítima de balas perdidas.
A reunião do Segundo Congresso dos Sovietes iniciara-se, entretanto, horas antes da queda do Palácio de Inverno. Aquele, cuja composição nada tinha que ver com o alinhamento político da Rússia, foi curiosamente descrito por Trótski como o “mais democrático de todos os parlamentos da história mundial.” Quando se diz que o Congresso não tinha representatividade, não se pretende significar que ali faltavam os delegados das chamadas formações políticas representantes da “burguesia”. Quer-se tão somente dizer que as organizações de camponeses se recusaram a participar – declarando o Congresso sem autoridade e apelaram aos sovietes da nação para não o apoiarem –, o mesmo acontecendo, por motivos idênticos, com os comités de soldados que se recusaram a enviar os seus representantes.
O facto de se ter tratado de um Congresso composto por sovietes citadinos e concelhos de militares não apenas bolcheviques na sua maioria, mas, e sobretudo, especialmente criados para o efeito, acelerou todo o processo de afastamento e de futuro confronto inevitável entre os bolcheviques e alguma esquerda socialista revolucionária, por um lado, e as restantes formações socialistas do amplo e complexo leque político-partidário russo, por outro. Inicialmente, no decurso do Congresso, os delegados mencheviques e socialistas revolucionários presentes, apesar de minoritários, denunciaram o golpe e exigiram o estabelecimento de negociações imediatas com o Governo Provisório – então ainda formalmente em funções. Trótski, numa frase que ficaria célebre, garantiu que o lugar daqueles que faziam este tipo de declarações e propostas, era no “caixote do lixo da história.” Independentemente de outras peripécias que tiveram lugar em fases posteriores do Congresso, a verdade é que estava lançada a luta violenta no seio do movimento socialista russo.
Em função destes factos, é óbvio que a famosa e tradicional, do ponto de vista historiográfico, Guerra Civil opondo “brancos” e “vermelhos”, a “reacção” e a “revolução”, o “passado” e o “futuro”, teve que esperar pelo golpe de 18 de Novembro de 1918 que teve lugar na cidade de Omsk. A partir deste momento, o que sucedeu foi que cessou o então já longo e intenso conflito político-militar opondo a esquerda socialista não bolchevique, composta por cadetes, mencheviques e socialistas revolucionários, por um lado, e os bolcheviques, por outro, que prometia não apenas durar mas também poder ser fatal para os bolcheviques – naquela data encontravam-se estes, no essencial, reduzidos política e geograficamente a pouco mais do que aos principais centros urbanos da Rússia.
A acção dos generais que tomaram o poder em Omsk salvou os bolcheviques ao transformar uma guerra civil entre “vermelhos” e “verdes”, entre uma esquerda não democrática e outra democrática, num conflito militar exclusivamente entre forças antidemocráticas, sendo que uma, porém, os “vermelhos”, gozava de um maior apoio popular, ainda que não incondicional, baseado no facto de terem concentrado o esforço e o programa político-ideológico de toda a esquerda revolucionária, democrática ou não.
Em face do que parecia ser a ameaça de um regresso ao passado, protagonizado militarmente pelos pouco numerosos mas muitas vezes aguerridos exércitos constituídos essencialmente por oficias do antigo Exército czarista, emergiam as promessas e a esperança de um futuro repleto de “amanhãs que cantam” já consubstanciado, por exemplo, na distribuição de terra aos camponeses, na feitura da paz com as Potências Centrais no início de 1918 e na benção dada a uma política, que parecia continuar indefinidamente, de apoio ao saque indiscriminado e mesquinho daqueles que, no passado, tinham sido os chamados saqueadores.
Finalmente, quando em 1921, após a derrota definitiva dos exército “brancos”, factos concretos pareciam ser capazes de fazer ressuscitar a velha guerra civil entre “vermelhos” e “verdes” – foi tanto o caso, em concreto, da revolta na base naval de Kronshtadt, como o da insatisfação generalizada do operariado e, sobretudo, do campesinato face aquilo em que se tinham tornado os sacrifícios impostos pelo chamado “Comunismo de Guerra” – a verdade é que a dura realidade imposta por outro tipo de acontecimentos acabaria por se revelar de muito maior peso.
Foi o caso da longa e custosa participação da Rússia na Grande Guerra, a que seguiu uma ainda mais dolorosa e igualmente prolongada guerra civil, salpicada por não poucos episódios de guerra com o exterior. Tudo isto impediu o retomar do velho conflito entre duas visões de reconstrução da Rússia, ao que se juntaria, aliás, um outro facto de grande importância. Independentemente da repressão sem limites que o poder bolchevique exerceu sobre os seus inimigos mencheviques e socialistas revolucionários desde Novembro de 1917, a verdade é que vencida a guerra contra os “brancos” e abandonadas temporariamente as aventuras externas – através das quais seria possível fazer deflagrar, finalmente, a Revolução generalizada protagonizada pela totalidade do proletariado europeu e mundial –, a opção por uma abertura política, que ficaria conhecida pelo nome de Nova Política Económica (NEP), amoleceria o possível relançar da oposição interna ao bolchevismo nos termos em que existira entre Novembro de 1917 e Novembro de 1918.
Isto não significa que o sistema público vigente tivesse visto alterada a sua natureza. Simplesmente, acontecimentos como o deflagrar e posterior esmagamento da revolta dos marinheiros da base naval de Kronshtadt – a “beleza e o orgulho da Revolução” na opinião de Trótski – que teve lugar em Fevereiro de 1921, quando a guerra civil se aproximava do fim e se reunia um importante Congresso do Partido Bolchevique, foi particularmente simbólico. Demonstrou que a manutenção de uma linha política e ideologicamente dura por parte dos bolcheviques teria como consequência a reabertura de uma nova guerra interna cujas consequências seriam inimagináveis.
Provou ainda que o grosso da oposição ao novo regime não era nem seria a “burguesia” e outros grupos sociais sobreviventes da velha ordem czarista ou do moribundo capitalismo russo, mas sim as “classes trabalhadoras” lideradas por antigos dirigentes socialistas revolucionários, mencheviques e até, claro está, bolcheviques, sobre as quais tinha sido lançado o fardo da guerra e de políticas catastróficas e irrealistas.
A NEP, e a consequente abertura política e económica que apesar de tudo garantiu, foi um dos vários recuos tácticos promovidos por Lénine. Fez-se com o objectivo não de mudar a natureza da revolução ou dela abdicar mudando as raízes do regime, mas sim como a solução possível para problemas complexos e em boa medida irresolúveis caso se insistisse no caminho traçado pelas cúpulas bolcheviques lideradas por Lénine desde Novembro de 1917. Os bolcheviques, depois de terem garantido a repressão exemplar de vários focos de revolta popular em toda a Rússia nos primeiros meses de 1921, promoveram uma abertura. Fizeram-no não porque ela fosse boa em si mesmo, mas porque era necessária para o recomeço do inevitável e desejado processo revolucionário russo. Note-se, por exemplo, que o X Congresso Partido Bolchevique iniciado em Março de 1921, e que autorizou os primeiros passos da NEP, foi o mesmo que ilegalizou “faccionalismo” no seio do Partido.
Imediatamente após a tomada do poder pelos bolchevique e com a progressiva assunção das rédeas do poder por aquele que era o seu dirigente máximo, iniciou-se de forma unilateral uma política sistemática de eliminação generalizada, não poucas vezes física, dos respectivos adversários. Neste sentido, o acesso que, sobretudo na década de 1990, foi facultado ao Arquivo Central do antigo Partido Comunista da URSS, permitiu revelar de forma cristalina a franca contradição existente, do ponto de vista ético e político, entre aquilo que eram os textos publicados de Lénine e muitos daqueles que embora existentes, e também da sua autoria, se mantiveram inéditos e encerrados durante décadas no interior do citado arquivo.
Ora muitos dos textos da autoria de Lénine que sobreviveram, e cuja publicação nunca esteve prevista, revelam quanto era falsa a sua imagem divulgada oficialmente. Ou seja, a de um homem idealista que apenas recorria à fraude e à violência quando pressionado por acontecimentos que não controlava. De facto, a documentação revela aquilo que nas palavras de Richard Pipes não passava de “um cínico cruel que de muitas maneiras constituiu um modelo para Estaline” e para outros dirigentes bolcheviques. Não admira por isso que durante décadas se tenha impedido o acesso à documentação que ilustra o que pensava e como agia Lénine. Para terminar este ponto, convém apenas deixar bem claro que hoje não restam quaisquer dúvidas que foram os bolcheviques, pela mão de Lénine, que lançaram uma campanha de terror em massa no mês de Setembro de 1918, uma campanha de terror que não tinha como alvo privilegiado a “contra-revolução” sob a forma de exércitos ainda praticamente inactivos, mas sim as classes trabalhadoras russas.
Confirma-se assim a ideia, pelo menos uma vez transmitida por Gorki, segundo a qual Lénine não apenas não manifestava qualquer interesse pelos seres humanos enquanto indivíduos, como estava convencido que as classes trabalhadoras deveriam ser tratadas exactamente da mesma forma como o operário metalúrgico tratava o minério de ferro. O que sucedeu posteriormente no que respeita à aplicação indiscriminada de mecanismos variados de violência política radica neste pressuposto (a)moral.
Sobre a Natureza Moral do Bolchevismo e da História da Revolução de Outubro
O dia 10 de Março de 1917, não foi para os habitantes de Petrogrado o do entrada dos EUA na guerra. Foi, isso sim, a jornada em que se celebraram “as exéquias pelas vítimas da Revolução de Fevereiro.” Tratou-se, nas palavras de Trótski (The History of the Russian Revolution, s.e., Nova Iorque, Pathfinder, 2001), de uma “manifestação lutuosa, mas solene e luminosa, no fundo […] o grandioso acorde final da sinfonia dos cinco dias”, designação porque eram conhecidos os acontecimentos revolucionários ocorridos no transacto mês de Fevereiro. O mais significativo, talvez, da luminosa descrição que Trótski nos deixou do evento, reporta-se ao facto de, nas suas palavras, todo o mundo ter acudido aos funerais: os que tinham combatido ao lado daqueles que tombaram, como os que tinham discursado e, provavelmente também os que tinham matado e, sobretudo, os que tinham ficado à margem da luta. Operários, soldados, gente humilde da cidade; encontravam-se também os estudantes, ministros, embaixadores, respeitáveis burgueses, os jornalistas, oradores, os chefes de todos os partidos. Desde os subúrbios iam chegando ao campo de Marte soldados e operários, levando sobre os ombros caixões vermelhos.
Quando começaram a descer os caixões nas sepulturas, na Fortaleza de Pedro e Paulo soou a primeira salva, fazendo estremecer as imensas massas populares. Os canhões soavam de uma maneira diferente: eram: os nossos canhões, as nossas salvas. O distrito de Viborg acudiu com cinquenta e um caixões vermelhos. Não era mais do que uma parte das vítimas, das quais se sentia orgulhoso. Na procissão dos trabalhadores de Viborg, o mais compacto de todos, podiam ser vistas numerosas bandeiras bolcheviques, mas elas flutuavam pacificamente ao lado das outras.
Por muito que nos custe, e esta insuspeita descrição feita por Trótski é disso testemunho, é em boa medida inimaginável que entre Março e Outubro, como já se viu, não só um conjunto desmedido e trágico de acontecimentos tivesse lugar, mas que, sobretudo, tivessem o desenlace conhecido. É verdade que, em Abril, a chegada de Lénine a Petrogrado produziu uma guinada na vida política russa. É igualmente verdade que muitos factos contribuiriam profundamente, até aos surpreendentes acontecimentos de Outubro, para a degradação da já instável situação socio-política russa e, com isso, para o avanço da capacidade de influência de Lénine sobre a vida política em geral e sobre o partido por ele dirigido em particular. Mas também é verdade que a tomada do poder a 25 de Outubro não foi uma consequência inevitável da degradação da situação política e do ambiente social.
Ela decorreu acima de tudo da crescente influência política conseguida pelo partido bolchevique ao longo da Primavera e Verão, e depois, após uma grave crise, novamente no Outono, fazendo nesta altura valer a sua singular capacidade organizativa e a especial qualidade do seu líder, Lénine, e do seu braço direito, Trótski. Apesar de tantas vezes se falar de Outubro e do triunfo dos bolcheviques como o resultado de uma especial sintonia com o sentir das massas, a verdade é que praticamente tudo se deveu, no essencial, à vontade de um indivíduo, isto tanto no êxito registado em Outubro, como às suas hesitações e precipitação tanto de Abril como de Julho, e que como se sabe por pouco não se tornaram fatais.
O caminho tomado pelos bolcheviques a partir de Abril, de confronto contra tudo e contra todos e em busca de um objectivo bem determinado, que era além da tomada do poder, a conservação deste independentemente dos seus custos, parece afinal ter surpreendido os seus adversários e em especial aqueles que com os bolcheviques partilhavam um espaço político-ideológico, além de social, genericamente comum. Mas quem a partir do momento do regresso de Lénine à Rússia se recordasse ainda daquele que tinha sido o seu percurso político no seio do movimento social democrata russo, talvez não se surpreendesse com o conteúdo não apenas do programa que apresentou, mas também com a natureza ou o conteúdo moral (ou amoral) do seu comportamento antes e depois de 25 de Outubro.
Aparentemente, parece que poucos foram os que estiveram atentos à ameaça ao próprio espírito da Revolução de Fevereiro que o crescimento do bolchevismo a partir de Abril poderia significar. Independentemente daquele que era o seu ódio ao “czarismo”, à “burguesia” ou ao “capitalismo”, Lénine devia ter sido reconhecido e relembrado em 1917 por, em 1903, ter provocado uma cisão entre bolcheviques e mencheviques no seio do recentemente fundado Partido Social Democrata dos Trabalhadores da Rússia. De o ter feito por pretender impor o seu próprio conceito de partido, enquanto organização estável agindo como um pequeno grupo estreitamente unido de “revolucionários profissionais”, opondo-se, portanto, às ideias “mais democráticas de Mártov”, que se destacava aliás por dar uma grande importância, ou maior importância do que Lénine, “à espontaneidade dos actos” levados a cabo pelas massas, em detrimento da “consciência e da pretensão” de conquista e de exercício do poder tal como era pensado pelos “intelectuais socialistas.”
Como resultado, antes e depois de Outubro, a luta de Lénine e dos bolcheviques por ele comandados, não foi feita a favor da revolução e do socialismo, mas sobretudo contra aqueles que do seu ponto de vista, apesar de designarem por socialistas e revolucionários, não eram mais do que traidores a ambas as causas.
Sucede que a forma como Lénine e aqueles que o seguiram moldaram, sob o ponto de vista ético, a vida política russa e, por simpatia, a vida política europeia e mundial, tanto no período entre guerras, como após 1945, ajuda a perceber de facto tanto o alcance como o significado da Revolução de Outubro, do Comunismo e dos Totalitarismos que marcaram definiram uma parte significativa da história do século XX e, em alguns casos isolados, das quase duas décadas iniciais do século XXI.
Assim, e em primeiro lugar, quando se diz, se reconhece e se está seguro que a Revolução de Outubro foi, primeiro que tudo, um golpe levado a cabo “por um partido socialista contra outras agregações também socialistas”, da mesma forma que se produziu contra aquelas que eram as intenções expressas pelo II Congresso dos Sovietes, o qual sem qualquer dúvida teria funcionado obedecendo ao “principal desejo das massas e formado um governo soviético” com apoio de todos os partidos socialistas, “com exclusão dos burgueses”, independentemente da sua viabilidade, significa que se está perante um exemplo histórico de desprezo claro pela contemporização com outras formações políticas que partilhavam importantes referências ideológicas.
Na Rússia estes factos e estas circunstâncias levaram à construção não de um Governo democrático e representativo, mas sim de um Governo que embora mais homogéneo era muito menos democrático e ainda menos representativo. Esta opção voluntária e consciente, considerada vital pelo seu líder de forma a que pudesse cumprir-se um programa considerado de necessidade histórica, abriu um ciclo novo na política europeia e foi repetido várias vezes no futuro, nomeadamente na Alemanha do início de 1933 por Hitler e pelos Nacionais Socialistas. Neste caso, também triunfou a “firme resolução” de um partido ferreamente comandado por um homem que se considerava encarregue pela história do cumprimento de uma missão.
Em 1933, logo em Março, os Nacionais Socialistas consumaram uma política de confronto com os seus “poderosos companheiros de coligação” governamental, apesar de com eles partilharem um programa político e ideológico. A linha única que aos poucos triunfou na Rússia após a Revolução de Outubro, esteve presente nos acontecimentos que, a partir de Março de 1933, levaram os Nacionais Socialistas ao exercício solitário do poder na Alemanha. Na Rússia em 1917, como na Alemanha em 1933, ou noutros países onde acabariam por se impor governos de partido único saídos de soluções “revolucionárias”, o resultado inevitável seria, cedo ou tarde, a “fatal” implantação de “um sistema de terror”. Do ponto de vista político, mas também ético, o decreto de 5 de Setembro de 1918 que instituiu o chamado “terror vermelho”, não significou o início de uma nova etapa na história da Rússia bolchevique, mas tão só a derradeira etapa no caminho para uma destruição de classes sociais absolutamente sem precedentes na história europeia, servindo de exemplo maior o espírito que presidiu ao entretanto consumado assassinato da família imperial russa.
Como é óbvio, decretar e institucionalizar um sistema terrorista de Estado como fizeram Lénine e os bolcheviques, significou, entre outras coisas, a abolição da noção de culpa individual e, portanto, de toda a ética judaico-cristã de responsabilidade individual”. Iniciado o “extermínio” política e ideologicamente legitimado pela história da luta entre classes sociais, principiou também uma nova fase na vida política das sociedades, no seio das quais deixou de haver limite para a aplicação deste princípio moral. Ao não haver qualquer diferença social essencial entre destruir uma classe e/ou destruir uma raça, Lénine e os bolcheviques abriram caminho para a prática indiferenciada do genocídio.
Quando se afirma que abriram não significa que esteja esquecido, por exemplo, o facto de, na sequência da Revolução Francesa, a violência revolucionária ter sido justificada pela necessidade de defesa da nova ordem moral que se pretendia instituir. Simplesmente, o conceito de “inimigo objectivo” tão presente e tão determinante no universo bolchevique, assim como o conceito de “necessidade histórica”, estiveram totalmente ausentes da Revolução Francesa. O “terror da virtude” de Robespierre era algo de sinistro. No entanto, dirigia-se a um “inimigo escondido”, a um “vício escondido” que devia ser encontrado antes de ser punido.
Não se dirigia a pessoas que, “mesmo do ponto de vista do dirigente revolucionário”, eram inocentes. Como alguém já escreveu, o terror jacobino procurava desmascarar o “traidor disfarçado” antes de o condenar. Com o triunfo do bolchevismo e com a utilização generalizada de muitas das técnicas e dos seus conceitos, aquilo que se passou a fazer foi mascarar de traidor pessoas ou classes arbitrariamente escolhidas de forma a criar as necessárias “não pessoas” naquele que era o “embuste sangrento do movimento dialéctico” (Hannah Arendt, On Revolution, s.e., s.l., Penguin Books, s.d., p. 100.).
Teoria ou ideologia, por um lado, e a prática política, por outro, conjugaram-se para legitimar uma abordagem realista daquilo que os bolcheviques, e mais tarde muitos dos seus seguidores, passaram a designar como sendo o absurdo de referências éticas que mencionassem o certo ou o errado, o bem ou o mal, e que foram no fim de contas a pedra angular da política na antiga União Soviética e em inúmeros estados cujos regimes autoritários ou totalitários, de “esquerda” ou de “direita”, explícita ou implicitamente, seguiram o seu exemplo.
O optimismo que se gerou em torno da possibilidade efectiva de se poder mudar o homem – individual e colectivamente – conduziu a um chamado “consequencialismo” grosseiro que desencorajava constrangimentos morais. Face a um objectivo tão nobre como era aquele que os bolcheviques se propunham cumprir – nada mais nada menos do que a mudança natureza humana – todos os meios necessários se apresentaram, cedo ou tarde, indiscutivelmente aceitáveis. Nos anos imediatamente após a Revolução de Outubro, várias publicações russas divulgaram discussões acerca da admissibilidade da tortura sob o ponto de vista do marxismo.
No geral, a resposta foi favorável Ora a partir do momento em que a tortura é aceitável, dificilmente se imagina aquilo que não é. A partir do momento em que o sistema de fé em que assentava o bolchevismo incluiu o compromisso de que “o fim era tão bom que absolutamente nada era permitido que se interpusesse no caminho dos meios mais eficientes para o atingir”, as suas referências do ponto de vista ético simplesmente desapareciam. Não admira, portanto, que tenha vindo de Lénine a aplicação prática do princípio da indiferença pela destruição do indivíduo em função daquilo que era o dever imperioso de aplicar novas políticas.
Em 1908, por exemplo, Lénine escreveu que a Comuna de Paris tinha fracassado por causa da “excessiva generosidade” do proletariado, e que este, portanto, deveria ter exterminado os seus inimigos em vez de sobre eles ter tentado exercer qualquer tipo de “influencia moral”. Em 1917, e segundo testemunho de Trótski, quando Lénine se opôs à abolição da pena capital como instrumento de punição dos desertores na frente de combate, ter-se-á interrogado, como aos seus interlocutores, sobre como se poderia “fazer uma revolução sem execuções.” Prescindir destas seria um “erro”, uma “fraqueza proibida”, uma “ilusão pacifista” e por aí fora (Jonathan Glover, Humanity: A Moral History of the Twentieth Century, s.e, Londres e New Haven, Yale University Press, 2000, p. 255).
Mas o mais preocupante decorre do facto de ser essencial reconhecer que para além das circunstâncias particulares que levaram ao triunfo, neste caso do comunismo na Rússia, mas também do fascismo em Itália ou do nacional-socialismo na Alemanha, reside na circunstância infeliz, porém indiscutível, de que o conjunto de ideias e de práticas que lhes deu forma possuía e possui razões objectivas para ser projectado e continuar a enraizar-se profundamente entre os homens (François Furet, El pasado de una ilusión. Ensayo sobre la idea comunista en el siglo XX, 1.ª ed., s.l., Fondo de Cultura Económica, 1995, p. 17.)