É o contra-ataque de Vítor Escária. O ex-chefe de gabinete do primeiro-ministro diz que os pressupostos legais do crime de tráfico de influências que lhe é imputado não foram cumpridos por falta de indícios sobre o momento e a forma de consumação do crime — e acrescenta que nem sequer está demonstrada a entrega por Diogo Lacerda Machado de qualquer vantagem para si.
“Não é minimamente credível ou crível, desde logo ao nível da experiência comum e do sentido da vida, que Vítor Escária se dispusesse a cometer crimes, a bem de um projeto, contentando-se altruisticamente com a compensação monetária dada a um terceiro”, lê-se no recurso que será decidido pela Relação de Lisboa e ao qual o Observador teve acesso.
Contudo, nem uma palavra é dita sobre os cerca de 75 mil euros que as buscas lideradas pelo procurador Rosário Teixeira descobriram em caixas de vinho e em livros espalhados pelo gabinete de Escária na residência oficial do primeiro-ministro.
A defesa, liderada pelo advogado Tiago Rodrigues Bastos, considera ainda nulas as medidas de coação impostas ao seu cliente (proibição de viajar para o estrangeiro e entrega de passaporte) pelo Tribunal Central de Instrução Criminal por entender que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) é o único tribunal competente.
A investigação visa Costa e isso faz com que existam implicações para todos os arguidos
O argumento da defesa de Vitor Escária para afirmar que apenas o STJ pode decidir sobre os inquéritos da Operação Influencer é simples de explicar. Como o inquérito visa vários suspeitos, sendo um deles o primeiro-ministro António Costa, só este facto “comporta implicações para todos” os arguidos.
“É por demais evidente que a investigação visava também o primeiro-ministro”, lê-se no recurso, sendo “indiferente” que António Costa “tenha sido ou não constituído arguido, ponto é que seja incontornavelmente visado num procedimento criminal”, enfatiza a defesa de Vitor Escária.
Assim sendo, consideram os advogados Tiago Rodrigues Bastos e Filipa Elias, o foro especial de que o primeiro-ministro beneficia tem de ser estendido a todos. Logo, os autos têm de ser tramitados pelo STJ, conclui a defesa.
Ora, o que aconteceu é que o Tribunal Central de Instrução Criminal “praticou atos jurisdicionais”, como o interrogatório dos arguidos e a decisão sobre as medidas de coação, que seriam alegadamente competência do Supremo.
A defesa invoca o artigo 27 do Código de Processo Penal, que dispõe que no caso de processos conexos serem competência de tribunais de diferente hierarquia, “é competente para todos o tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada”.
Daí que a defesa de Vítor Escária assegure que o despacho de medidas de coação padece de nulidade por via da incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal para decidir o caso.
A “leviandade do MP” e os pressupostos do crime de tráfico de influência
O crime de tráfico de influência tem vários pressupostos legais, sendo que um deles é a solicitação ou aceitação por parte de quem pode influenciar de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial — independentemente de a mesma ser para si ou para terceiro. Outro requisito tem a ver com a consumação do crime, que aconteceu com essa solicitação ou aceitação, sendo indiferente se a influência é real ou se foi efetivamente executada.
Ora, a defesa de Vitor Escária faz questão de dizer no seu recurso que o Ministério Público não localiza o momento e a forma de consumação do crime, incorrendo o juiz de instrução Nuno Dias Costa no mesmo alegado erro.
Isto é, a defesa diz que o MP apenas terá apresentado uma prova indiciária de que Vítor Escária terá “aceitado as solicitações de Diogo Lacerda Machado para abusar da sua influência junto de decisores públicos”: a famosa reunião de 22 de dezembro de 2022. Trata-se de uma reunião que, segundo o despacho de indiciação, teria ocorrido na sede nacional do PS mas que, afinal, ocorreu no gabinete de Escária na residência oficial do primeiro-ministro.
A defesa de Escária não deixa de assinalar o erro do local da reunião — apelidando o mesmo como uma “leviandade” ou “a vontade de se apimentar a ‘estória'”, lê-se no texto do recurso.
Certo é que o local onde a reunião veio a ocorrer, a residência oficial de primeiro-ministro, é apresentada pela defesa de Vitor Escária como a correta porque era em São Bento que Escária “desempenhava as suas tarefas institucionais, como foi receber os promotores do projeto de Start Campus.”
A defesa explica que a “reunião mostra-se compreendida no quadro funcional do chefe de gabinete do primeiro-ministro”. “Nessa qualidade, Vítor Escária recebeu os promotores do projeto Start Campus, como recebeu outros com relevância para o país”, explicam os seus advogados.
Seja como for, a defesa “não vê como é que se pode considerar indiciado o pacto corruptivo com base numa reunião, desde logo pela simples circunstância de ter ocorrido, mas também porque nela foram abordadas as preocupações dos promotores, tendo Escária, alegadamente, prestado o seu apoio ao projeto”.
Defesa não vê indícios da entrega de qualquer vantagem a Vítor Escária
O mesmo diz a defesa sobre uma alegada influência de Escária junto de Nuno Banza, presidente do Instituto Nacional de Conservação da Natureza com vista à emissão de um parecer favorável em relação à Avaliação de Impacte Ambiental da primeira fase de construção do projeto do data center.
“Tanto mais que a investigação há muito que se encontrava em curso” mas não há, diz a defesa, “elementos inequívocos tanto da influência exercida por Vítor Escária” ou da “venda da influência por parte de Vítor Escária a Diogo Lacerda Machado”, lê-se no texto do recurso.
Apreendidos 75 mil e 800 euros em notas no escritório do chefe de gabinete de António Costa
Em relação à alegada vantagem entregue a Vítor Escária — outro pressuposto do crime de tráfico de influência — a defesa também não viu qualquer indício recolhido nos autos.
Neste ponto, os advogados Tiago Rodrigues Bastos e Filipa Elias ignoram a descoberta de cerca de 75 mil euros em numerário no gabinete de Vítor Escária nas buscas que foram realizadas na residência oficial do primeiro-ministro no dia 7 de novembro de 2023. O facto de o MP ainda não ter qualificado do ponto de vista juridico-penal tal descoberta pode explicar o silêncio da defesa.
Em declarações à imprensa, num intervalo dos interrogatórios dos cinco arguidos detidos na Operação Influencer, o advogado Tiago Rodrigues Bastos avançou com a explicação de que se tratava de uma remuneração por serviços de consultoria e de docência prestados em Angola.
No recurso, a defesa apenas faz referência a uma parte das contrapartidas que o MP imputa a Diogo Lacerda Machado: o salário pelos serviços de consultadoria prestados a um dos acionistas da empresas Start Campus. Os advogados de Escária ignoram a segunda contrapartida que corresponde a um contrato promessa respeitante a 0,5 % do capital social da empresa do data center.
“Não só está por demonstrar, sequer indiciariamente, a afirmação de que aquela avença constiuía o pagamento de uma actividade ilícita (…), como não é minimamente credível ou crível, desde logo ao nível da experiência comum e do sentido da vida, que Vítor Escária se dispusesse a cometer crimes, a bem de um projeto, contentando-se, altruisticamente, com a compensação monetária dada a um terceiro”, afirmam os advogados daquele que era à data chefe de gabinete do primeiro-ministro e exercia as suas funções em regime de exclusividade.
Instituto da Conservação da Natureza foi apenas um dos 19 decisores sobre a Avaliação de Impacto Ambiental
A defesa de Vítor Escária tentou igualmente desconstruir a importância do parecer do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) sobre a Avaliação de Impacto Ambiental da primeira fase de construção do projeto do data center em Sines.
Segundo a defesa, o MP quis fazer crer que, por um lado, “qualquer parecer favorável seria ilícito” devido ao facto de a construção do data center ocorrer em plena Zona Especial de Conservação” e, por outro lado, “o parecer favorável do ICNF e a decisão favorável da Avaliação de Impacto Ambiental são uma e só coisa e tudo sob a alçada de Nuno Banza, presidente do ICNF”, lê-se no texto do recurso.
Tiago Rodrigues Bastos e a sua colega Filipa Elias são taxativos: “Nem a construção de uma ZEC é por si ilegal, nem o ICNF determina o sentido do parecer final da Avaliação de Impacto Ambiental”.
Para fundamentar essa afirmação, a defesa juntou o parecer final da Comissão de Avaliação, o qual tem três informações relevantes:
- A comissão é constituída por nove entidades, nomeadamente a Agência Portuguesa do Ambiente, a Direção-Geral do Património Cultural, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, entre outras.
- O ICNF faz parte dessa comissão, mas o seu representante é Sandro Nóbrega — “que não consta que tenha sido pressionado para o que quer que fosse”, afirma a defesa
- E a AIA não foi feita ignorando a incidência em ZEC, sendo que o ICNF emitiu mesmo um parecer que contraria as afirmações de Nuno Banza de ecossistemas “intocáveis” referidas no despacho de indiciação do MP. “[Do] ponto de vista dos sistemas ecológicos, considera-se ser de emitir parecer favorável condicionado ao cumprimento das disposições constantes no capítulo final do presente documento”, cita-se no recurso da defesa.
Logo, diz a defesa de Vitor Escária, a conclusão de que “o parecer favorável do ICNF é ílícito — conclusão que o MP lança com vista ao preenchimento da decisão ilícita favorável exigida pelos requisitos do crime de tráfico de influência — mostra-se completamente destituída de fundamento”, acusa a defesa.
Não há qualquer perigo de fuga de Vítor Escária: “Seria facilmente descoberto”
Tal como aconteceu com Diogo Lacerda Machado, o juiz Nuno Dias Costa deu como indiciado o perigo de fuga invocado pelo MP para Vitor Escária. Contudo, e ao contrário de Diogo Lacerda Machado, Escária não teve de depositar nenhuma caução. Ficou apenas sem o passaporte e proibido de sair do país.
A defesa de Escária quer revogar essa medida de coação, por entender que a mesma é “desproporcional” e “desnecessária”, alegando que não há qualquer perigo de fuga do seu cliente. “Além dos factos indiciados e o crime imputado com base nos mesmos não jusitificarem, por si, qualquer ‘necessidade’ de fuga, não existe qualquer indício na atuação do ora recorrente, bem pelo contrário, de pretender eximir-se à ação da Justiça.”
“O arguido tem a sua vida em Portugal, tudo o que fez no estrangeiro foi esporádico e sempre no exercício da sua profissão de economista, pelo que das duas uma: ou ia para o estrangeiro trabalhar como consultor/professor e facilmente seria descoberto ou ia para o estrangeiro trabalhar ocultando a sua identidade para não ser descoberto, dedicando-se a uma actividade diferente da sua, afastado de tudo e de todos”. “Ora nem uma nem outra são hipóteses são minimamente plausíveis”, asseguram os advogados de Escária.
“Com toda a franqueza, a ‘fuga à justiça’ (…) com todas as consequências que a mesma acarretaria num mundo global e cada vez mais ‘pequeno’, afigura-se de acordo com as regras da experiência comum, bem pior do que qualquer condenação, fosse ela qual fosse”, conclui a defesa.