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ANDRÉ KOSTERS/LUSA

ANDRÉ KOSTERS/LUSA

Défice público. Dúvidas e debates estruturais

"Défice estrutural" transformou-se no conceito mais polémico da discussão sobre o esboço de Orçamento do Estado para 2016. Luís Teles Morais e Henrique Lopes Valença tentam colocar ordem na mesa.

As dúvidas em torno do défice estrutural não são as únicas a justificar o “braço-de-ferro” entre Bruxelas e o novo Governo a propósito do Orçamento do Estado para 2016, mas têm sido fonte de grande polémica. Por um lado, parece claro que se tentou baixá-lo artificialmente, no primeiro “esboço”, com a classificação como extraordinárias de uma panóplia de medidas. Por outro, o próprio défice estrutural e as regras associadas têm sido alvo de críticas.

Há, de facto, uma base sólida para estas críticas, que reside nos problemas associados ao PIB (produto interno bruto) potencial – essencial para se obter o défice estrutural. Também defendemos (num Policy Paper recente) que o cálculo e conceptualização do PIB potencial envolve, em certa medida, uma ficção, por não ter subjacente uma realidade económica tangível.

"As críticas ao saldo estrutural, sendo comuns e crescentes, são habitualmente pouco estruturadas e, por isso, ineficazes."

O impacto dos ciclos económicos sobre as finanças públicas é inegável, mas a existência de um PIB potencial, do qual o PIB observado se vai afastando e aproximando – permitindo medir os ciclos – carece de mais alguma fundamentação. E é aqui que começa a confusão. Porém, as críticas ao saldo estrutural, sendo comuns e crescentes, são habitualmente pouco estruturadas e, por isso, ineficazes. Ainda há dias, Luís Aguiar-Conraria, noutro artigo, misturava a crítica ontológica (“não existe”) com a crítica epistemológica (“ninguém sabe qual é”).

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Também achamos que o seu papel nas regras europeias deve ser revisto. Mas isto não é o mesmo que dizer que toda a lógica que o sustenta seja inválida, nem que, por esse motivo, as regras devam ser totalmente “atropeladas” no contexto atual.

Primeiro, o método para o cálculo do PIB potencial é consistente quer entre os vários países da UE, quer de um ano para o outro (apesar das substanciais revisões retroativas a que tem sido submetido). Este aspeto é crucial, porque a regra mais importante em torno do défice estrutural tem a ver com a sua redução anual, e não com o seu nível.
Para além disso, a importância destes dilemas conceptuais pode ser relativizada. O PIB potencial entra para o saldo estrutural através da chamada “componente cíclica”, cujo valor se desconta ao défice global (desconta, no caso de países em fase recessiva – atualmente quase todos…).

Mas esta é apenas metade da história. O passo seguinte para chegar ao défice estrutural é, claro, descontar – ou acrescentar – as medidas extraordinárias. Como exemplo, em Portugal, nos últimos anos a “componente cíclica” foi da mesma dimensão da componente das medidas extraordinárias. Boa parte da diferença entre “estrutural” e “global” não depende, portanto, do frágil PIB potencial.

"O défice estrutural é problemático, e o seu papel decisivo deve ser revisto, minorado. Mas até agora foi sempre usado para avaliar o esforço orçamental dos países."

Em síntese, o défice estrutural é problemático, e o seu papel decisivo deve ser revisto, minorado. Mas até agora foi sempre usado para avaliar o esforço orçamental dos países. Não deve ser posto em causa apenas quando não convém. Aliás, o hiato do produto (diferença entre PIB potencial e PIB observado) tem sido amiúde utilizado como argumento a favor de políticas expansionistas e “anti-austeridade”.

Devem distinguir-se os aspetos políticos dos aspetos técnicos. Queremos que Portugal possa intervir de forma incisiva no debate europeu, no sentido de promover alterações dos aspetos negativos da arquitetura do Euro. Não só porque prejudicam a nossa posição, mas porque fragilizam todo o edifício.

Fá-lo-emos melhor com base na nossa própria credibilidade. Devemos defender as nossas posições, sim, mas com rigor. E não tentar subverter as regras como parece claro que, de forma mais ou menos estratégica, se tentou fazer nestas negociações. Para mais, raramente se manifestou a vontade de pôr em causa, em termos concretos, essas regras. Isto fragiliza, à partida, a nossa posição: para quê tentar mudar as regras do jogo se a intenção não for segui-las?

"Os cortes nos salários e pensões, e mesmo a sobretaxa de IRS, poderiam, de facto, ter sido classificados [como extraordinários]."

A propósito de posições críticas, mas bem fundamentadas, há uma parte das propostas do Governo que nos parece justificada. Não é o caso de algumas medidas (IVA da restauração, “reversões” no IRS e IRC): é inimaginável concebê-las como extraordinárias e, como assinalou a UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental), é óbvio que não cabem na definição oficial. No entanto, os cortes nos salários e pensões, e mesmo a sobretaxa de IRS, poderiam, de facto, ter sido classificados assim.

Assim sendo, porém, não se trataria apenas de descontar as reposições no défice estrutural de 2016. Tal implica também a revisão da rubrica das medidas extraordinárias para todos os anos em que estes cortes vigoraram.
Fizemos algumas contas rápidas, que detalhamos aqui*, para explicar as implicações mais importantes que esta operação teria (terá?). Desde logo, significa que o défice estrutural nos últimos anos seria revisto em alta – ou seja, passava a considerar-se “artificial” e “temporária” a redução do défice obtida com estes cortes.

Défice estrutural reportado e reclassificado (nossa estimativa)

Défice estrutural reportado e reclassificado 1

Fonte: Comissão Europeia, UTAO, Ministério das Finanças e cálculos próprios

Mas, como se pode ver, isto também significa que teria havido uma redução do défice estrutural em 2015, ao contrário do que agora se considera. O mesmo em 2016: fazendo fé nas restantes contas do “esboço”, com a reclassificação haveria nova redução, mesmo sem as tais medidas impossíveis de considerar temporárias. Isto porque as várias “reposições” (2015 e depois) deixariam de afetar negativamente este indicador.

Sabe-se agora que o acordo andará por aqui, embora a Comissão não o aceite no caso dos salários. Discordamos desta posição: o carácter destes cortes foi necessariamente temporário, pois não se encontrou uma solução legal/constitucional que os permitisse tornar permanentes. Mas cremos que as principais conclusões, mesmo sem reclassificar os cortes salariais, se mantêm (barras amarelas no gráfico).

Em qualquer caso, organizemos a discussão. Há muito a discutir para melhorar o Euro. Façamo-lo em vez de minar outros debates, menos estruturais, mas igualmente importantes.

*Uma análise mais detalhada poderá ser encontrada no Opinion Brief “Estrutural, extraordinário… estranho?”, nesta ligação.

Economistas e investigadores do Institute of Public Policy Thomas Jefferson-Correia da Serra

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