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"Deixo a minha mãe guardar as medalhas porque são limpas". Fernanda Ribeiro sobre o ouro e o bronze e as saudades dos Jogos

Campeã olímpica em 1996, bronze em 2000 e uma das atletas portuguesas mais bem sucedidas. Quase com 50 anos, Fernanda Ribeiro recorda a carreira ao Observador e revela ainda novos objetivos.

Fernanda Ribeiro tem 49 anos. Completa este ano 50, uma nova meta que não está apenas relacionada com a idade e com a vida pessoal como também com aquilo que fez a vida toda: correr. No próximo ano, vai tentar bater o recorde mundial dos 10 mil metros de atletas com 50 anos e é para isso que ainda se prepara, ao correr todos os dias de segunda a sábado.

É junto ao Estádio Municipal da Maia que se encontra com o Observador para uma conversa que não só puxa o filme atrás para recordar os primeiros anos da carreira, os altos e baixos, as medalhas e os anos difíceis, como também aponta metas para o futuro que passa pela Academia Fernanda Ribeiro, que desde 2014 forma jovens atletas nas mais diversas vertentes do atletismo.

23 anos depois de ter sido campeã olímpica em Atlanta, 19 anos após o bronze em Sydney, várias vezes campeã da Europa e do Mundo, Fernanda Ribeiro é uma das atletas portuguesas mais bem sucedidas de sempre. Mas não é por isso que esquece “as mágoas”, como os Jogos de 2008 e os Mundiais de Sevilha em 1999.

A atleta portuguesa ultrapassou a chinesa Wang Junxia na reta da meta para conquistar a medalha de ouro olímpica em 1996

Como é que uma menina de Penafiel se interessa pelo atletismo e começa a praticar?
Sou de Penafiel mas sou de uma aldeia. E não tinha muita coisa. A minha aldeia, hoje em dia, não tem campo de futebol. Deve ser das poucas aldeias do país que não tem campo de futebol. Aquilo que nós fazíamos muito era correr, correr na rua. E como eu normalmente corria com os rapazes e ganhava, o meu pai estava ligado a uma associação desportiva e perguntou-me se queria ir correr. E eu disse que sim. E foi assim que comecei. Mais porque o meu pai até me prometeu uns calções, uma camisola e umas meias e naquela altura aquilo tudo para mim era uma relíquia.

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Que idade é que tinha nessa altura?
Tinha nove anos.

Em retrospetiva, acha que foi muito cedo?
Acho que não. Houve uma altura em que as pessoas achavam que treinava muito, porque comecei a fazer a meia maratona com 11 anos, mas não era verdade. Fui uma criança que brincou sempre muito, nunca foi doente pelo treino. Nem quando passei sénior nem depois quando passei a ganhar medalhas fui doente pelo treino. Se calhar, com nove anos, devia era ter feito outras disciplinas do atletismo… mas em Penafiel não havia e fui logo só para a corrida. E não estou arrependida. Mas, por exemplo, eu agora tenho a Academia e as crianças que entram aqui fazem de tudo um bocadinho, aprendem lançamentos, aprendem saltos… porque isso é que é formação. Isso é que é importante. Quando eu comecei, comecei com o meu pai, que não percebia nada de atletismo mas foi ele que me levou. Neste momento, na minha Academia, quero que as crianças sejam pessoas formadas. Não estou arrependida de ter ido logo para a corrida, até porque era o que havia, mas acho que neste momento a formação deve ser pelo menos até aos 14, 15 anos. Experimentar tudo um pouco. Se calhar a pessoa vai para a corrida e depois é melhor em saltos ou noutra coisa qualquer e desanima e deixa porque não experimentou. Acho que muita gente ainda pensa que atletismo é só corrida.

A minha aldeia, hoje em dia, não tem campo de futebol. Deve ser das poucas aldeias do país que não tem campo de futebol. Aquilo que nós fazíamos muito era correr, correr na rua. 

Fundou a Academia Fernanda Ribeiro mas sempre disse que nunca queria ser treinadora. Porquê?
Nunca tive essa vontade porque comecei a ter lesões muito cedo e sofri muito. E era incapaz de pôr alguém a sofrer aquilo que eu sofri. Pela experiência que tive, para ganhar as medalhas que ganhei, passei muitos treinos a chorar. E era incapaz de obrigar alguém a fazer esse treino. É muito sofrimento.

Tem falado muito no seu pai. Os seus pais sempre a apoiaram ou foi complicado?
O meu pai levou-me desde logo para o atletismo, a minha mãe era contra. Foi contra o atletismo, não por… Sou de uma aldeia, as pessoas não entendiam muito bem o que era uma menina, uma mulher correr. Os meus pais com isso não tiveram problemas. A minha mãe quando não queria não era por ir mostrar as pernas nem nada. O problema dela era que eu com nove anos era muito magrinha e muito pequenina e a minha mãe achava que não me podia dar a alimentação que precisava de ter e era uma preocupação porque achava que ao correr eu podia apanhar uma doença. Passados uns anos, a minha mãe foi a pessoa mais importante da minha carreira. Nos momentos em que quis abandonar, foi a minha mãe que não me deixou.

E quando é que começou a olhar para o atletismo como uma carreira? Sem ser pelos calções ou pela camisola?
Acho que passados uns tempos passei logo a levar o atletismo mais a sério. A primeira corrida que fiz, fiquei em segundo, depois sei que já tinha 40 e tal vitórias e isso foi-me levando. Bati o recorde nacional de infantis, fui a primeira vez com 14 ou 15 anos ao Campeonato da Europa de juniores e a partir daí passei a levar o atletismo muito a sério. E cometi um erro, que foi abandonar a escola, porque na altura havia escola ao sábado e eu para estar nas competições não podia ir. E apostei. Não estou arrependida pela minha aposta mas claro que é algo que hoje em dia digo para não fazerem. Comigo correu bem, mas nem sempre corre.

No pódio dos 10 mil metros em Atlanta, a primeira medalha que trouxe de uns Jogos

É verdade que chegou a ser desclassificada porque não acreditavam que, tão pequenina, podia ganhar a atletas mais velhas?
Sim. Nunca gostei de correr com as crianças da minha idade porque achava que era muito fácil ganhar e era muito pouco tempo, eram mil metros. E na corrida das mais velhas já eram cinco, seis mil. E corria sempre nessas competições. Um dia fui correr e fui desclassificada porque achavam que não podia ganhar uma corrida de seniores. Diziam que era impossível uma menina tão pequenina ganhar uma corrida de seniores. Era muito complicado. E cheguei a ter corridas paradas 40 minutos porque primeiro deixavam inscrever-me e depois já não podia correr porque era uma corrida muito grande. Foram algumas dificuldades, levava muita pancada com as seniores, porque era pequenina e era um encontrão para aqui, um encontrão para ali.

Como é que uma criança ainda lida com tudo isso? Não tem vontade de desistir?
Não. Depois comecei a arranjar grupinhos que não tinham nada a ver com o meu clube, que foi o Valongo, mas que começaram a proteger-me. Na partida já partia no meio delas, já se punha uma à frente, uma atrás e eu já conseguia partir. Nunca fui muito de me assustar. Quando aconteceu aquilo de me desclassificarem da corrida, na semana a seguir fui correr, ganhei, e no final fui disparada para o juiz, que era o mesmo, e disse-lhe: “Agora já acredita ou ainda não?”. Não era de desistir, não me deixava ficar.

Nunca teve ídolos? Alguém que admirasse?
Não. Claro que quando comecei a correr ouvia falar de Carlos Lopes, Rosa Mota, esses atletas todos, mas não posso dizer que eram os meus ídolos. Queria ser campeã olímpica, desde miúda que era o que dizia. Nunca tive assim nenhum ídolo. Só depois é que comecei a ver uma americana, a Mary Decker, gostava muito de a ver correr, mas depois foi uma desilusão porque foi apanhada com doping e aprendi a não ter ídolos. Aquilo que para mim é um ídolo é aquela pessoa que luta, por isso, para mim toda a gente que treina e toda a gente que luta são os meus ídolos.

Um dia fui correr e fui desclassificada porque achavam que não podia ganhar uma corrida de seniores. Diziam que era impossível uma menina tão pequenina ganhar uma corrida de seniores. Era muito complicado.

Foi ao Campeonato da Europa de juniores muito nova. Não perdeu nada nessa altura, na fase da adolescência, dos amigos, dos primeiros namorados?
Tinha 13 ou 14 anos. Acho que não, brinquei sempre muito, nunca perdi nada. Comecei a fazer estágios no Algarve com 11 ou 12 anos e ia brincar para o parque. Tinha a minha casa e as minhas colegas brincávamos às casinhas, íamos apanhar flores, fingíamos que aquela era mesmo a nossa casa e nunca me vou esquecer disso. O meu primeiro Campeonato da Europa também nunca vou esquecer porque fui a mascote, era muito bem tratada, era a atleta mais pequenina. E nunca me vou esquecer que um diretor francês apostou logo em mim. Eles ofereciam um galinho em ouro a quem eles achavam que podia ser campeã da Europa e depois tínhamos de devolver esse galinho se ganhássemos mesmo. E esse galo até veio da Mary Decker, que tinha sido campeã e eles tinham apostado nela. Eu sempre que ia a um Campeonato da Europa, mesmo sabendo que ia ganhar ou não, levava sempre o galo. E sempre que levei e encontrei o tal senhor, nunca ganhei. No ano em que ganhei, não o encontrei. Hoje em dia ainda tenho esse galo.

É possível fazer amizades dentro do desporto? Ou é tudo sempre muito efémero?
Não, acho que é possível.

Os Jogos e as Aldeias Olímpicas

E qual é a sensação de estar numa Aldeia Olímpica? Acho que existe muito a ideia de que os atletas estão lá muito isolados, de que não há grande convívio…
Não, para mim os Jogos Olímpicos são a Aldeia Olímpica. Quando fui campeã olímpica podia ir para um hotel da Adidas e nunca quis porque para o mais importante nos Jogos — claro que é a competição, porque queremos ganhar — é a Aldeia Olímpica. É onde nós estamos com aquelas pessoas com quem achamos que nunca vamos estar, do ténis, do futebol, e acho que ali é que está mesmo uma família. Temos tudo lá dentro, é mesmo uma aldeia, cabeleireiro, lojas, tudo. E quem vai a uns Jogos e não fica na Aldeia não vai aos Jogos Olímpicos, vai a um torneio olímpico. O que se vive mesmo é a Aldeia Olímpica. Tive muitos problemas em 2000, achava que tudo corria mal, quando cheguei a Sydney achei que tinha de me ir embora porque não estava a correr nada, porque não estava bem, porque estava doente, e só comecei a ser eu quando entrei na Aldeia Olímpica. Estive 15 dias fora da Aldeia Olímpica e só comecei a acreditar que podia ir para dentro da pista e fazer alguma coisa depois de estar dentro da Aldeia. Não sei, é diferente: as pessoas com quem corro nos Jogos são as pessoas com quem corro nos Mundiais. A diferença é que ali vemos as pessoas das outras modalidades. Eu em 2004 [Jogos Olímpicos de Atenas] estive com o Messi.

No final dos 10 mil metros dos Jogos de Sydney, em 2000, onde conseguiu o terceiro lugar atrás de uma etíope e uma queniana

Torna-se surreal? Quando estava lá sentia que estava a cumprir um sonho de menina ou nem se lembrava disso?
Não, chega a uma altura em que já nem nos lembramos. É claro que os meus Jogos mais importantes foram os que ganhei, mas os meus primeiros Jogos foram aqueles que mais me marcaram, os que nunca vou esquecer.

Por serem os primeiros?
Por serem os primeiros, pela organização… Acho que foi tudo bom. Em Atlanta [Jogos Olímpicos de 1996], a Aldeia já não foi tão boa como em Seul [Jogos Olímpicos de 1988] mas pronto, aí tive a medalha. Deu para compensar.

E o que é que aconteceu nos anos de passagem de júnior para sénior? Pensou mesmo em desistir?
Pensei porque sempre fui muito boa em infantil, iniciada, juvenil e depois ganhei medalhas como júnior. E quando passei para sénior as pessoas exigiram logo que eu fosse campeã olímpica, campeã do mundo e isso era aquilo que mais me custava. Antigamente, lembro-me de que abria um jornal e só via críticas. Agora vejo atletas a não fazer nada e ninguém acredita, há sempre uma desculpa. Eram muito duros comigo. E ver o que os jornalistas diziam e depois ouvir o que as pessoas diziam — “acabou”, “já nunca mais corre” — ia-me deixando muito em baixo. E por isso é que digo que a minha mãe foi sempre a pessoa mais importante porque quando quis abandonar ela não me deixou. Não é fácil a passagem de júnior para sénior. Não é que tenha tido maus resultados, porque até fui aos Jogos Olímpicos [Barcelona, 1992], mas não era candidata a nada e outros até eram candidatos e ganharam zero. Acho que não atacaram as pessoas que deviam ter atacado e atacaram-me a mim.

Mas correu tudo mal nesses Jogos, não foi?
Sim, correu tudo mal. Esses Jogos foram os piores, lembro-me de pensar que não queria mais, não queria correr mais, não estava para sofrer mais. Ouvia tantas vezes as coisas que comecei a acreditar. Passei esses Jogos a chorar.

Antigamente, lembro-me de que abria um jornal e só via críticas. Agora vejo atletas a não fazer nada e ninguém acredita, há sempre uma desculpa. Eram muito duros comigo. E ver o que os jornalistas diziam e depois ouvir o que as pessoas diziam -- "acabou", "já nunca mais corre" -- ia-me deixando muito em baixo.

O ambiente era mau nesses Jogos? Dentro da comitiva portuguesa?
Não era dos melhores. Não por mim, mas de vez em quando existiam assim umas guerrinhas. As pessoas estavam à espera de ganhar medalhas e não ganharam. Foi a frustração. Notava-se o mau ambiente. Eram muitos candidatos a medalhas e Portugal nesse ano veio embora sem medalhas. Chorei muitas vezes mas também foi a maneira que tive de pensar e decidir que ia mesmo ser atleta. Eu não tinha perdido a qualidade, só tinha perdido a vontade.

E é cada vez mais difícil ou cada vez mais fácil ser atleta em Portugal?
A minha opinião sobre isso às vezes é um bocadinho difícil de entender. Os atletas dizem que não têm condições e isso a mim faz-me muita confusão. Acredito que os atletas de segundo plano não tenham as condições necessárias, agora os nossos atletas de primeiro plano… não acredito. Se eles não tivessem, então nós estávamos como? Aquilo que acho é que às vezes as pessoas têm mais do que aquilo de que precisam. Fui para o Porto com 12 anos, apanhava um comboio que demorava hora e meia, fazia quatro ou cinco quilómetros da estação para apanhar outro comboio… Vejo agora, aqui na Academia, que os pais vêm trazer os meninos, os pais vêm buscar os meninos, os pais vão levar os meninos à competição e os pais fazem tudo. Eu comecei com uma sapatilha de 200 escudos e agora têm todos sapatilhas de marca e esquecem-se de que não é a sapatilha que corre. Agora temos muita coisa e não há sofrimento. Nós, naquela altura, lutávamos mais. Fico contente por termos mais condições, mas acho que agora temos condições a mais.

A receção à chegada ao Aeroporto Sá Carneiro, no Porto, depois de ter conquistado a medalha de ouro em Atlanta

E o bronze em Sydney, nos Jogos de 2000, foi um momento agridoce? Queria mais ou ficou contente com o terceiro lugar?
Muito, muito, muito contente. Para mim, 1999 foi um ano muito complicado. Era candidata a ganhar uma medalha nos Mundiais de Sevilha e desisti. Foi nessa altura que comecei a falar dos meus problemas nos tendões de Aquiles, que tinha desde 1994, mas as pessoas não acreditavam. Fui-me habituando à dor mas há alturas em que não dá. Não há uma explicação para Sevilha. Tinha de fazer 25 voltas e à segunda já não conseguia correr. Esse foi um dos piores momentos da minha carreira e afetou-me muito, não havia explicação. Vim embora para Portugal e estive sete dias sem sair de casa, tinha muita vergonha, estava muito envergonhada.

E como é que essa desilusão se reflete nos Jogos Olímpicos de Sydney?
O ano de 2000 depois foi horrível porque trazia essa mágoa de Sevilha. Comecei a não querer ir aos meetings, a achar que tudo estava mal, fazia boas marcas mas a cabeça não funcionava e não dava. Fui para Sydney e achava que estava com febre, sangrava do nariz mas era tudo psicológico. Até que o meu treinador veio ter comigo e me disse que íamos fazer uma conferência de imprensa e assumir que íamos embora. E foi isso que me abanou um bocado. Quando cheguei à Aldeia Olímpica comecei a ter mais confiança. Mas até falei com a Manuela Machado e a Ana Dias, a olhar para a lista das participantes todas, e elas diziam que não tinha grande hipótese e até me disseram para não levar o fato de cerimónia porque não valia a pena. Era o ano em que eu não contava ganhar nada. Para mim, essa medalha é ouro.

E o momento da medalha de ouro, nos Jogos Olímpicos de 1996, revê esse momento muitas vezes?
Estive muitos anos sem rever a competição. Depois, passados uns tempos, decidi voltar a ver com a minha mãe e o meu irmão, porque o meu irmão guardou as cassetes todas. Acho que até foi quando fez 20 anos: decidi ver tudo, ver tudo o que fiz bem e tudo o que fiz mal, porque antes só via mesmo a parte final. A partir daí, já vi várias vezes. Quando estou assim mais em baixo, vou ver a corrida. Faz-me sentir bem.

1996 foi um ano bom? Ou também foi um ano complicado que acabou da melhor forma?
1996 também foi um ano muito difícil. 1995 já não foi um ano muito fácil porque em abril, abril ou maio, põem-me gesso na perna por causa do tendão de Aquiles. Tive de tirar esse gesso, foi uma responsabilidade minha, tirei o gesso sem autorização médica. Fiz o meu primeiro contrato com a Adidas internacional no princípio de 1995, vou ao médico e fico com o gesso e no outro dia tenho de fazer a minha primeira sessão para a Adidas, em Barcelona. Vou fazer a primeira sessão de fotografias e quando chego lá estou de muletas e claro que eles não gostaram, então tirei. Mas se não tivesse tirado, não tinha sido campeã do mundo.

1996 foi difícil porque um médico me deu a carreira por terminada em Manaus, no Brasil, quando estava em estágio para os Jogos. Por causa do tendão de Aquiles. Foi o Dr. Paulo Becker, que agora está na Seleção Nacional de futebol, que disse que íamos tentar na mesma. E foi com ele e com o massagista e o fisioterapeuta que consegui recuperar e preparar-me. E agora, mais de 20 anos depois, ainda consigo correr uma hora. E para o ano quero ir tentar bater o recorde de 10 mil metros com 50 anos.

Fui-me habituando à dor mas há alturas em que não dá. Não há uma explicação para Sevilha. Tinha de fazer 25 voltas e à segunda já não conseguia correr. Esse foi um dos piores momentos da minha carreira e afetou-me muito, não havia explicação. 

E porque é que não foi aos Jogos de 2008, em Pequim? Ia ser a primeira fundista de sempre a estar presente em seis edições.
Se calhar não fui aos Jogos de 2008 por castigo. Nesse ano, começaram a existir assim umas… guerrinhas. O que me deixa mais triste é que fiz os mínimos internacionais e ganhei a várias atletas e essas atletas foram e Pequim e eu não. Porque o país delas levou-as e o meu não. Iam ser os meus sextos Jogos e Portugal nem sequer ia gastar mais dinheiro comigo porque o Comité Olímpico Internacional convida os campeões olímpicos para estarem nos Jogos. Estive lá sentada na bancada e não tínhamos ninguém nos 10 mil metros, por isso não ia tirar o lugar a ninguém. Ninguém me deu uma explicação, nem Federação nem Comité Olímpico. O Fernando Mota, que na altura era presidente da Federação Portuguesa de Atletismo, disse-me que um dia tínhamos de conversar. Até agora nada. É uma mágoa.

O dinheiro ganho com o atletismo

Lembra-se do que é que fez com o primeiro dinheiro que ganhou com o atletismo?
Acho que a primeira vez que ganhei dinheiro a sério foi em 1994 mas nem me lembro do que é que fiz com ele. Devo ter juntado para comprar o terreno onde hoje tenho a minha casa. Depois comecei a fazer a minha casa, antes não tinha dinheiro para casas. Ia tendo, investia, o dinheiro ia aparecendo, mais uma corrida ou outra e o dinheiro aparecia. Por isso é que dou muito valor àquilo que tenho, os meus pais não tinham nada, eu é que ajudei os meus pais. Consegui comprar o terreno, consegui fazer a minha casa aos bocadinhos e foi assim que consegui. Digo muitas vezes aos meus atletas aqui da Academia que a primeira vez que ganhei 500 contos foi mesmo aqui na Maia e achava que estava rica.

E esta ideia de fundar e criar a Academia Fernanda Ribeiro, foi para tentar fazer algo mais?
Sempre disse que gostava de ter uma ligação com as crianças, não necessariamente como treinadora mas estar perto das crianças. E às vezes quando ia dar palestras e assim perguntavam-me se não ia fazer nada quando ao assunto e eu dizia que gostava mas que a Maia já tinha um clube, o Maia Atlético. Era comprar uma guerra mas era o que queria fazer, porque queria ficar ligada à modalidade. Assim tenho mais coisas para fazer. Acabaram por me dar a volta e convencer-me a criar a escolinha, para ter miúdos perto de mim. Tive muitos problemas para conseguir ter este espaço mas consegui. Já consegui criar o meu meeting, a minha corrida e alguns dos melhores do mundo já fazem marcas aqui. E dá-me muito gozo ir ver a lista dos tempos do ano e ver “meeting da Maia” logo a seguir ao meeting de Londres.

A receção à chegada ao Aeroporto Sá Carneiro, no Porto, depois de ter conquistado a medalha de ouro em Atlanta

Tinha muitas superstições?
Não, não tinha. A única coisa que fazia era benzer-me antes das corridas mas isso é uma coisa que faço muitas vezes, às vezes até vou no carro e benzo-me. Não tinha muita coisa, nem entrar com o pé direito nem pé esquerdo nem nada disso.

E onde é que guarda as medalhas?
Estão em casa da minha mãe. Deixo que seja a minha mãe a guardar-me as medalhas porque são medalhas limpas. Porque se alguma vez tivesse acusado doping ou qualquer coisa, não deixava que fosse a minha mãe a guardá-las. Porque vejo a minha mãe com tanto orgulho nas minhas medalhas… e deixo porque as ganhei com o meu suor, o meu sofrimento, as minhas lágrimas. Se fosse com a ajuda de outra coisa não deixava. Aquilo que a minha mãe mais adora são as medalhas.

Ainda a reconhecem na rua? E o que é que lhe dizem?
Sim. Dizem-me: “Agora não ganhamos medalhas”. É a coisa que mais dizem.

Porque é que acha que isso acontece? Que não ganhamos medalhas em longas distâncias há tanto tempo? E vê isso a voltar a acontecer no futuro?
Não sei. Acho muito complicado. Agora apareceu uma atleta que é a Mariana Machado, que é a única que ainda estou assim a ver com hipóteses, mas é um bocado difícil. Nós antigamente íamos a um Campeonato do Mundo ou a um Campeonato da Europa e trazíamos medalhas quase sempre, eu, a Manuela Machado, a Carla Sacramento… Agora ou ganhamos naqueles Europeus em anos de Jogos Olímpicos, em que metade das pessoas não aposta, ou então não ganhamos.

[Sobre os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008] Iam ser os meus sextos Jogos e Portugal nem sequer ia gastar mais dinheiro comigo porque o Comité Olímpico Internacional convida os campeões olímpicos para estarem nos Jogos. Estive lá sentada na bancada e não tínhamos ninguém nos 10 mil metros, eu não ia tirar o lugar a ninguém. Ninguém me deu uma explicação, nem Federação nem Comité Olímpico. 

E o que é que se sente quando só faltam dois ou três metros para a meta e já não há ninguém à frente?
Só penso nisso se tiver mesmo muito avanço. Só consigo pensar se a distância for mesmo muito grande. E mesmo aí nunca se sabe, porque tive roturas nos gémeos a entrar em retas da meta. Em cima da meta pode acontecer muita coisa. Acho que a chinesa [Wang Junxia, segunda classificada em Atlanta] nunca pensou que ainda a fosse passar: olhou para o ecrã, viu a diferença e achou que ia ganhar. Quantas pessoas não entram na reta da meta, começam a atirar beijinhos para o público e corre mal?

Existe muito o mito de que não se dá muito bem com a Rosa Mota. É verdade? Ou não tem razão de ser?
Eu e a Rosa falamos, se tiver de ir a algum sítio com a Rosa vou. Sei que não vai com algumas pessoas, comigo nunca disse que não ia. As pessoas é que gostam muito desses filmes. Se me perguntarem se a Rosa foi correta comigo depois dos Jogos de Atlanta, não foi. Fui campeã olímpica e depois saiu uma entrevista na Visão dela a dizer que eu tinha falta de chá. Se me perguntarem se me dou mal com o marido e treinador da Rosa Mota [José Pedrosa], sim. Mas com a Rosa vou a qualquer sítio, a qualquer lado, não tenho problemas. Acho que foi uma grande atleta e conheci-a quando eu ainda era pequenina.

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