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Emmanuel Macron, em visita ao Hospital Pitie-Salpetriere, em Paris, a 27 de fevereiro, onde dias antes tinha morrido a primeira vítima de Covid-19 em França
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Emmanuel Macron, em visita ao Hospital Pitie-Salpetriere, em Paris, a 27 de fevereiro, onde dias antes tinha morrido a primeira vítima de Covid-19 em França

MARTIN BUREAU/POOL/AFP via Getty Images

Emmanuel Macron, em visita ao Hospital Pitie-Salpetriere, em Paris, a 27 de fevereiro, onde dias antes tinha morrido a primeira vítima de Covid-19 em França

MARTIN BUREAU/POOL/AFP via Getty Images

Depois dos coletes amarelos, os batas brancas: em França, os médicos estão furiosos com Macron

Em França, médicos e enfermeiros desesperam por máscaras para usarem no hospital. Outros fazem-nas à mão em casa. Um coletivo de 600 médicos vai processar o governo: "Vemo-nos em tribunal".

A 16 de março, quando falou pela primeira vez aos franceses a partir da sua secretária no Palácio do Eliseu sobre o novo coronavírus, Emmanuel Macron carregou no pathos e falou como uma espécie de general diante dos seus soldados: “Não lutamos contra um exército, não lutamos contra outra nação, mas o inimigo anda por aqui. É invisível, é esquivo e está a avançar. E isso requer a nossa mobilização geral”.

Depois, pronunciou as quatro palavras que só em situações extremas coube aos governantes franceses dizerem: “Nós estamos em guerra”.

Porém, naquele discurso, Emmanuel Macron tinha em mente governante em específico, mais do que qualquer outro: Georges Clemenceau, primeiro-ministro de França entre 1917 e 1920, que, por ter chefiado o governo no fim da Primeira Guerra Mundial, ficou conhecido para a História como o “Pai Vitória”.

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Georges Clemenceau, no seu discurso de tomada de posse, em novembro 1917, homenageou a figura do soldado francês, jurando-lhe reconhecimento e meios: “Aqueles franceses que nós fomos obrigados a mandar para o centro da batalha têm mais direitos do que nós”. E Emmanuel Macron, na altura de falar desta “guerra” — “uma guerra pela saúde, é certo”, reconheceu — trocou os soldados pelos profissionais da saúde “que se encontram na primeira linha de um combate que lhes vai exigir energia, determinação e solidariedade”. E depois, o piscar de olhos ao discurso histórico de há quase 103 anos: “Eles têm mais direitos do que nós”.

"Se o Presidente da República quiser cumprir ao máximo a metáfora bélica que escolheu, não se pode contentar por parafrasear Clemenceau. Tem de armar os soldados que fazem as emboscadas, proteger os civis e mobilizar o aparelho produtivo, se um dia quiser vir a ser comparado ao 'Pai Vitória'".
Editorial do "Le Monde" de 26 de março

Dez dias volvidos depois daquele discurso, no entanto, são precisamente os profissionais da saúde que estão na linha da frente das críticas a serem dirigidas ao Presidente. Entre os que trabalham nos hospitais, são poucos os que se convencem com as palavras que Emmanuel Macron dirige à população a um ritmo diário — e quem está “na primeira linha” do combate que o Presidente evocou queixa-se da falta de meios básicos de proteção, como luvas e máscaras.

Em editorial, esta quinta-feira, o Le Monde fazia eco do mal-estar entre os trabalhadores da saúde e escrevia: “Se o Presidente da República quiser cumprir ao máximo a metáfora bélica que escolheu, não se pode contentar por parafrasear Clemenceau. Tem de armar os soldados que fazem as emboscadas, proteger os civis e mobilizar o aparelho produtivo, se um dia quiser vir a ser comparado ao ‘Pai Vitória'”.

Esta quinta-feira, França anunciou um total de 29.155 casos de Covid-19 em todo o país, entre os quais 1.696 mortos. Entre estes números (que pecam por serem tímidos, já que as autoridades francesas não estão a contabilizar as mortes fora do hospital e os testes estão em escassez), há cada vez mais médicos e outros funcionários do setor da saúde.

“Você pede aos seus soldadinhos para irem para a frente sem armas nem escudo”

“Passei-me e vim defender toda a minha família de profissionais da saúde.” Foi assim que Alain Colombié, médico de 61 anos na aldeia de Pomérols, no Sul de França, explicou à AFP o que o levou a tirar uma fotografia que deu a volta a todo o país. À primeira vista, Alain Colombié parece estar simplesmente nu e de perna cruzada, mas um olhar atento vê que tem dois adereços diferentes — um estetoscópio e duas faixas, uma no braço e outra na cabeça. Ambas dizem como este médico de 61 anos se sente: “Carne para canhão”.

A fotografia, que Alain Colombié colocou na sua página de Facebook, vinha acompanhada de uma legenda com uma mensagem para Emmanuel Macron: “Você pede aos seus soldadinhos para irem para a frente sem armas nem escudo (máscaras, gel, proteção) e, claro, em sentido”. E continua: “E, pronto, aqui estou eu. Pronto a meter a minha vida em perigo e a proteger a população e os meus profissionais da saúde”.

https://www.facebook.com/alain.colombie.5/posts/2706786906085848

Um pouco por todo o país, há médicos que alertam para a falta de proteção para eles próprios. Ao Le Parisien, um médico falou falta de máscaras, com trabalhadores de hospitais a procurarem, muitas vezes em vão, comprar máscaras em farmácias e supermercados, no pouco tempo que lhes sobra fora dos hospitais. Muitas vezes, têm de fazer as suas próprias máscaras: “Ficamos a fazer trabalhos manuais”.

Ao La Croix, uma enfermeira de um grande hospital parisiense denuncia a mesma situação. “Tenho medo de contrair Covid-19”, diz. Entre os seus colegas, já houve quem conhecesse essa realidade. “Alguns deles já testaram positivo. Outros estão à espera de serem testados. Os médicos tentam acalmar-nos e dizem-nos que estamos a tomar todas as precauções, mas nós estamos numa situação complicada. Corremos verdadeiramente o risco de ficarmos com ainda menos profissionais do que o costume.”

Esses mesmos números, de médicos que, por também eles ficarem infetados, são obrigados a sair da “primeira linha de combate” de que Emmanuel Macron falava, já se começam a verificar.

A Franceinfo teve acesso a um e-mail interno do L’Assistance Publique-Hopitaux de Paris (centro administrativo que reúne os 39 hospitais da capital francesa), datado de 24 de março, onde o diretor referia que havia até então 490 trabalhadores (entre médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares) que tinham testado positivo para a Covid-19. Quatro dias antes, a 20 de março, eram 345 os que estavam infetados — ou seja, em apenas quatro dias, o número de trabalhadores infetados subiu, só nos hospitais de Paris, 42%.

Fora da capital, os contágios também crescem a um ritmo imparável entre quem trabalha nos hospitais e centros de saúde. De acordo com o La Croix, já testaram positivo 238 trabalhadores em Estrasburgo, 35 em Metz e cerca de 10 em Nice.

Mais grave ainda, já morreram três médicos com Covid-19 em França.

“Vemo-nos no tribunal”

O descontentamento dos médicos e outros profissionais de saúde pode mesmo chegar aos tribunais. Um coletivo de 600 médicos, que formaram um grupo autointitulado “C19”, colocou um processo no Tribunal de Justiça da República (a única instância que pode julgar as ações de governantes exercidas durante os mandatos) contra o primeiro-ministro, Edouard Philippe, e a ex-ministra da Saúde, Agnés Buzyn.

Numa petição que já reuniu a assinatura de mais de 250 mil pessoas, aqueles dois governantes são acusados de terem veiculado “mentira de Estado”, dizendo que “devem justiça aos batas brancas [alcunha para médicos] e ao povo francês”.

"O governo estava a par dos perigos desta epidemia mas não agiu a tempo nem tomou as medidas necessárias, nomeadamente a compra de máscaras e a realização de testes sistemáticos, o que poderia ter permitido isolar os assintomáticos de contaminaram várias pessoas."
Texto da petição do coletivo de médicos C19

“O governo estava a par dos perigos desta epidemia, mas não agiu a tempo nem tomou as medidas necessárias, nomeadamente a compra de máscaras e a realização de testes sistemáticos, o que poderia ter permitido isolar os assintomáticos de contaminaram várias pessoas”, lê-se no texto da petição. “Os nossos dirigentes revelaram o perigo que emana das suas decisões nos momentos fulcrais e a sua capacidade de reconhecerem uma urgência.”

Além desta queixa do coletivo C19, há outras quatro, de acordo com o Le Monde, onde se incluem profissionais e também um paciente. “Vemo-nos em tribunal”, escreveu no Twitter Jêrome Marty, presidente do sindicato de médicos UFML.

Os médicos do C19 acusam ainda a ex-ministra da Saúde de ter “tomado conhecimento” da epidemia e de, ainda assim, “ter batido em retirada para uma campanha parisiense improvisada”. Esta é uma menção ao facto de Agnès Buzyn ter saído do Ministério da Saúde para concorrer como candidata do República em Marcha (o movimento-partido de Emmanuel Macron) às eleições municipais de 15 de março. A sua entrada na campanha era tudo menos esperada, já que foi chamada a substituir Benjamin Griveaux, primeira escolha do partido de Emmanuel Macron que desistiu da campanha por causa de um escândalo sexual.

Agnèz Buzyn (ex-ministra da Saúde, na máscara da esquerda) e Edouard Philippe (primeiro-ministro, à direita) estão no centro da queixa do coletivo C19(GUILLAUME SOUVANT/AFP via Getty Images)

GUILLAUME SOUVANT/AFP via Getty Images

Em entrevista ao Le Monde, a 17 de março, já depois de ter ficado em terceiro lugar, com 17,26%, e, por isso, impedida de ir a uma segunda volta (que, ao contrário da primeira, foi adiada pelo menos até junho, por força da pandemia do novo coronavírus), Agnès Buzyn denunciou ter avisado ainda enquanto ministra da Saúde tanto Emmanuel Macron como Edouard Philippe para a necessidade de não haver sequer uma primeira volta, por razões de saúde pública.

Ao Le Monde, a ex-ministra disse ter tomado conhecimento do novo coronavírus a 20 de dezembro, ao ler num “blog anglófono” o relato de “pneumopatias estranhas” na China. “Alertei o diretor-geral de saúde”, disse. Depois, a 11 de janeiro, terá contactado Emmanuel Macron: “Enviei uma mensagem ao Presidente sobre a situação”. A 30 de janeiro, foi a vez de avisar o primeiro-ministro: “Adverti Edouard Philippe de que as eleições não podiam acontecer de qualquer forma. Travei a fundo”. Porém, a ex-ministra diz que os dois homens não travaram com ela.

A braços com uma crise política, por causa da saída do candidato do República em Marcha em Paris, terão insistido com Agnès Buzyn para que esta saísse do Ministério da Saúde e representasse o partido nas autárquicas da capital. E assim o fez. A primeira volta teve lugar a 15 de março e, no dia seguinte, Emmanuel Macron fazia o seu discurso prestando homenagem aos soldados de bata branca.

“Desde o início da campanha que não pensava noutra coisa a não ser no coronavírus”, disse a ex-ministra e ex-candidata em Paris. “Tínhamos de ter parado aquilo tudo, foi tudo um disfarce.”

"As declarações de Agnès Buzyn no Le Monde de 17 de março tiveram o efeito de uma bomba e motivaram a nossa queixa. No fundo, ela explica que sabia de tudo e que não fez nada. E também que avisou o governo da eminência e da seriedade do perigo."
Fabrice di Vizio, advogado do coletivo de médicos C19

A entrevista caiu mal em vários cantos de França. Ao Le Monde, fonte do “aparelho de Estado” francês refere que aquelas declarações de Agnès Buzyn foram uma tentativa de limpar a sua imagem, perante a possibilidade de haver queixa dela nos tribunais (à altura, o C19 não tinha avançado), utilizando-a, assim, como uma “bomba atómica”.

Porém, foi aquela mesma entrevista que acabou por motivar a queixa do C19, cujo advogado, Fabrice di Vizio, fala igualmente de uma “bomba”, em declarações ao Le Parisien.

“As declarações de Agnès Buzyn no Le Monde, de 17 de março, tiveram o efeito de uma bomba e motivaram a nossa queixa”, diz o advogado. “No fundo, ela explica que sabia de tudo e que não fez nada. E também que avisou o governo da eminência e da seriedade do perigo. As suas declarações, que poderiam passar por incompetência, caso acreditássemos nas suas palavras, revelam pura inconsciência. É ainda mais grave, e isso demonstrar-nos que houve uma mentira de Estado.”

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