Maria das Mercês Borges foi a deputada que registou Feliciano Barreiras Duarte no momento da votação do Orçamento do Estado para 2019 na generalidade. O momento ocorreu às 18h31 do dia 30 de outubro de 2018, cinco horas depois de o antigo secretário-geral do PSD ter abandonado o hemiciclo para acorrer a uma “emergência familiar”. A deputada é coordenadora do PSD na Comissão do Trabalho e Segurança Social — que é presidida por Feliciano — e admitiu ao Observador que é possível ter “carregado no botão” no momento da verificação de quórum, levando a que o sistema assumisse a presença (e o voto no OE) do deputado ausente — mas garante que não foi ela a fazer o log in de entrada no computador. Questionado pelo Observador, Feliciano Barreiras Duarte respondeu que “nada mais tem a dizer sobre este assunto.”
O Observador verificou as imagens do plenário desse dia que demonstram que Maria das Mercês Borges era a deputada mais bem colocada para votar por Feliciano Barreiras Duarte no local onde o voto foi registado. “Não consigo precisar se o registei, se carreguei ou não carreguei. Sei que ele saiu em pânico por causa do filho, totalmente desesperado, por isso posso ter carregado porque fazemos isso muitas vezes. Se quiserem pôr as imagens que mostram isso, coloquem, eu não vou dar uma conferência de imprensa como a outra deputada [Emília Cerqueira]”.
[Veja aqui o vídeo que explica como se validou um voto-fantasma]
Mercês Borges não vê mal em ter registado Feliciano Barreiras Duarte para efeitos de votação e admite que já carregou “muitas vezes por vários outros colegas“. E acrescentou: “Isto não é só no PSD que acontece, é em todas as bancadas.”
A deputada admite que, “se o computador estava ligado” ao seu lado, pode “ter carregado no botão porque a ideia que tinha era que ele ia voltar. Não foi com nenhum instinto de maldade, não foi por vigarice“. A deputada acrescenta: “Que atire a primeira pedra quem não sabe que isto acontece”. Mercês Borges justifica ainda que tem “muito respeito e consideração” por Feliciano, mas garante que não tem uma relação pessoal ou de confiança com o colega.
Há, no entanto, uma ponta solta na história: a deputada garante que não fez o log in de entrada no computador, apenas admite ter carregado no botão antes da verificação de quórum. Ou seja, foi outro deputado a fazer o log in, ou foi Feliciano Barraeiras O Observador sabe que, já depois de ter sido noticiado que alguém votou no lugar de Feliciano, o deputado do PSD ligou a Maria das Mercês Borges para falar sobre o que se passou naquela tarde.
Perante o que falta esclarecer, Feliciano Barreiras Duarte limitou-se a repetir através de “fonte autorizada” (um amigo assessor que o ajuda em momentos de crise e que fala pelo deputado) que “o deputado Feliciano Barreiras Duarte nada mais tem a dizer sobre este assunto do que aquilo que já disse: esteve no Parlamento toda a manhã, teve que se ausentar por um motivo familiar premente (é do conhecimento geral a situação que tem vivido relativa a problemas de saúde de um filho, sobre a qual não quer alongar-se e pede respeito)”.
Na mesma curta declaração a “fonte autorizada” reiterou que o deputado “não pediu a ninguém que votasse por ele, não teve qualquer vantagem pecuniária ou política por se ter ausentado, o seu voto ou ausência dele era irrelevante para o resultado final da votação, dado que havia disciplina de voto e o PSD votava em bloco. E já se dirigiu aos serviços do Parlamento pedindo para marcarem falta à votação e justificando as razões da ausência.”
As 7 horas e 40 minutos que terminam com Mercês a votar por Feliciano
O dia era de debate e votação do Orçamento do Estado para 2019 na generalidade, em duas etapas que se previam (e foram) longas: 3 horas e 43 minutos na sessão da manhã e 4 horas na sessão da tarde, onde ocorreu a votação. Feliciano Barreiras Duarte esteve no arranque da sessão, às 10h00, mas acabou por sair pouco depois das 13h00.
Às 13h26, o deputado do PSD já tinha abandonado o seu lugar, na última fila da bancada social-democrata. E não voltou mais naquele dia.
Os restantes deputados naquelas filas confirmam a versão de que Feliciano saiu à pressa, como o próprio explicou, para “acorrer a uma emergência de um dos seus filhos menores“. A sessão da tarde recomeçou às 15h08, quando Ferro Rodrigues dá início à sessão e dá ordem para que se abram as galerias.
Feliciano diz que não deu a sua password a ninguém, sugerindo que podia ter deixado o computador ligado de manhã e outro colega, bem intencionado, o registou para votar. Problema: ao ver que o seu lugar habitual estava ocupado pelo deputado Miguel Santos, o deputado António Lima Costa sentou-se no lugar mais à ponta na fila de cima (onde Feliciano estava sentado de manhã).
Ao Observador, o deputado António Costa Lima confirmou que iniciou sessão com o seu próprio log in naquele lugar e que ali se registou para votar quando houve a verificação de quórum. Ou seja: alguém (ou o próprio, antes de sair) teve de fazer log in por Feliciano noutro computador que não aquele onde esteve sentado de manhã e depois registá-lo para votar.
Sobravam dois lugares livres onde podia ter sido feito o registo: um onde habitualmente se senta Ulisses Pereira (fora do país em Missão Parlamentar) e um outro mesmo ao lado de Maria da Mercês Borges, onde a deputada tinha um grande casaco preto, que acabava por impedir que alguém tivesse o impulso de ali se sentar.
Foi nesse computador que foi feito o registo do voto de Feliciano, às 18h30, pouco depois de Ferro Rodrigues ter feito a verificação de quórum.
O painel dava a indicação que se tinham registado 87 deputados do PSD (Marco António Costa fez sinal a Ferro que não se conseguiu registar), portanto teriam de estar na sala 88 deputados do PSD (uma vez que Ulisses Pereira estava fora do país). Mas não estavam. Faltava Feliciano. Nas imagens da AR TV que mostram os momentos da verificação de quórum, é possível perceber que Maria das Mercês Borges era a única que conseguiria ter feito o registo naquele computador por Feliciano. E a própria admitiu que é possível tê-lo feito.
Feliciano Barreiras Duarte votou assim contra o Orçamento do Estado para 2019 sem estar presente. Já depois disso, sabe o Observador, o deputado do PSD ligou para Maria das Mercês Borges para falar sobre o que aconteceu naquela tarde. Mas o deputado recusa-se a dar mais esclarecimentos sobre o assunto.
Ferro defende sanções para deputados incumpridores
Na sequência dos vários casos de presenças-fanstasma, que nos últimos tempos afetaram três deputados do PSD (José Silvano, Matos Rosa e Duarte Marques), e do voto-fantasma de Feliciano, o presidente da Assembleia da República decidiu tomar uma posição após a aprovação final do Orçamento do Estado para 2019.
Mais dois deputados com presenças-fantasma, incluindo antigo secretário-geral do PSD
Aliás, na votação final global do Orçamento do Estado para 2019 na última quinta-feira, deu-se um momento caricato. Foi feita a verificação de quórum e alguns deputados não se conseguiram registar. Um deles registou-se, mas levantou o braço como se não tivesse conseguido. Ferro Rodrigues até brincou: “Isso não pode ser, porque seriam 231 deputados e, portanto, teria de haver um deputado-fantasma“. Tudo resolvido e uma novidade, que Ferro fez questão de registar: “Parece que estamos todos, estamos os 230”. Depois da polémica, casa cheia.
Ainda assim, Ferro Rodrigues considera que a situação já está a ultrapassar todos os limites. Por isso o presidente da Assembleia da República convocou uma conferência de líderes extraordinária para esta quarta-feira. Logo no início da reunião, Ferro disse que é “inquestionável” que existiram irregularidades nos casos até agora registados.
O presidente da Assembleia da República foi bastante duro com os deputados incumpridores, para os quais defende sanções, e quer acabar com o registo de presença através do mero log in no computador. “Afigura-se como indispensável distinguir a simples ligação do computador do registo de presenças“, defende Ferro Rodrigues.
Ferro Rodrigues diz que “nunca é de mais enfatizar” que “não é, nem pode ser, o polícia dos deputados” e que “sempre os defendeu”. Porém, “quando alguns (poucos) deputados põem em causa o prestígio do Parlamento, estão a pôr em causa o prestígio da democracia representativa“. E acrescenta: “Com isso eu não pactuo”.
Para Ferro exige-se “mais responsabilidade e responsabilização individual (de cada deputado) e coletivas (de cada grupo parlamentar) sancionando as irregularidades.” Isto porque, apesar de considerar inaceitável, as formas de “funcionalização dos mandatos parlamentares”, a questão chegou a um ponto de limite.
Na mesma conferência de líderes, todas as bancadas concordaram com a introdução de um novo registo de presença em plenário, além de terem que fazer o habitual log in. Após proposta de Ferro Rodrigues, os partidos na conferência de líderes chegaram a um consenso quanto à criação de um grupo de trabalho para aumentar a responsabilização dos deputados no registo de presença. Os deputados ainda não chegaram a um acordo sobre a forma, mas têm dois pontos de partida: aceitam um novo registo — que passa pela marcação de presença em plenário, estando claro que é feita só para esse efeito — e rejeitam o recurso a qualquer registo com dados biométricos.
Negrão quer alterar regras na Jurisdição para sancionar estes casos
Sobre os casos já existentes — três deles registados no PSD — o líder parlamentar dos sociais-democratas, Fernando Negrão, disse esta quarta-feira que a direção da bancada só pode fazer o trabalho de “sensibilização dos deputados relativamente às suas responsabilidades”. Isto porque “uma regra sacrossanta da democracia e de qualquer parlamento no mundo” é a relação do deputado e do eleitor. Negrão disse ainda que estas irregularidades não são matérias passíveis de punição no Conselho de Jurisdição do PSD, embora admita que isso possa vir a ser “estudado“. Mas voltou a lembrar: “Isto [grupo parlamentar] não é uma empresa, nem um órgão administrativo“.
Deputados vão ter de fazer novo registo em plenário, mas afastam uso de dados biométricos
Quanto às medidas do Parlamento para combater o problema, o líder parlamentar do PSD, Fernando Negrão, disse que o “ponto crucial” é o da “responsabilidade individual de cada deputado” e que estes têm ” de assumir de uma vez por todas que tem responsabilidades perante os eleitores. Essas responsabilidades devem ser cumpridas.”
Negrão falou depois da hipótese do uso do cartão para esse registo, dando essa medida quase como certa. “Relativamente à marcação das presenças, haverá o uso do cartão que depois, aberto que esteja o computador, assinalará a presença e, por outro lado, assinalará todo o resto do trabalho que deve ser feito com o computador”, disse Negrão aos jornalistas. Para Negrão, este sistema do cartão — que já é utilizado em votações eletrónicas “responsabiliza mais o deputado no que respeita à sua presença em cada sessão de trabalho”. No entanto, a questão não terá sido discutida na conferência de líderes. Embora possa ser sempre uma proposta apresentada pelo PSD no grupo de trabalho que vai discutir o assunto.
Questionado sobre as fragilidades desta solução, Negrão diz que “um cartão responsabiliza muito mais um deputado. Não sendo oral, como é a password, é pessoal e intransmissível”. Sobre se os deputados não podiam depois trocar entre si os cartões, o líder parlamentar acrescentou que “há crimes no Código Penal e são muitos que existem e continuam a existir porque nada impede que eles continuem a ser cometidos”.
Os restantes partidos estão de acordo com um novo registo em plenário, proposto pelo presidente da Assembleia da República. O PS, através do deputado Pedro Delgado Alves, também destacou após a reunião que “não deve haver espaço para manipulação ou para fraude no que diz respeito a verificação de presenças em plenário”. Segundo o socialista, o objetivo do grupo de trabalho constituído é precisamente “arranjar formas que sejam estanques e que não permitam que isso suceda.”
O líder parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, destacou que a bancada bloquistta considera “necessário ir além do modelo de verificação que hoje existe. Porque ele, como se provou nos casos recentes, está desadequado e desatualizado”. Pedro Filipe Soares admite, no entanto, que “como em qualquer modelo, se não houver uma responsabilidade individual, ele tem sempre um patamar de fiabilidade”. Pedro Filipe Soares não está convencido com o modelo de cartão abordado por Negrão: “O modelo já existe atualmente, qualquer deputado pode validar a sua presença com username e password ou com o cartão de deputado. Esses dois modelos existentes já provaram, nas situações que foram descritas, não estarem à altura de garantir quer a presença dos deputados, quer a validação de quórum de iniciativas legislativas, o que desvirtua a democracia representativa como ela deve existir”.
Já o líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães, começou por dizer que “o problema não está nem no modelo nem no sistema, mas no bom ou, neste caso, no mau uso que é dado a esse sistema”. Apesar dessa posição, os centristas defendem que “havendo propostas construtivas como há, no sentido de haver um reforço dos procedimentos“, o CDS não tem nada a opor. Mas avisa: “Não há sistemas infalíveis, não há sistemas perfeitos, o que há é o bom ou mau uso do sistema”.
O PCP, através do deputado António Filipe, diz que concorda “genericamente” com as propostas feitas pelo presidente da AR. Para o PCP a ideia de poder existir “no sistema informático do plenário da AR uma forma autónoma do deputado assinalar a sua presença” é um “método razoável e responsabilizante“.
José Luís Ferreira, dos Verdes, reforçou que este é “mais um problema ético do que técnico”. Apesar disso, Os Verdes “consideram útil que se pudesse tomar medidas de maior responsabilização para os deputados” e por isso concordam que existe uma nova “diligência no sentido de confirmar a presença do deputado no plenário”. Destacou, no entanto, que ainda não está fechada a forma como será feita: “Pode ser com cartão ou no ecrã no computador”. E reiterou algo com que todos concordaram: “Está afastada qualquer utilização de dados biométricos”.