Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
As desigualdades na educação não foram introduzidas pela pandemia, mas foram por ela severamente ampliadas. Assim, se eram já muitos alunos a ficar para trás, a partir de agora serão muitos mais. E, pela mesma ordem de ideias, se esse era o calcanhar de Aquiles do sistema educativo, é legítimo defender que tenha ascendido agora à sua principal prioridade.
Comecemos pelo princípio e pelo pressuposto que tem de estar na base desta reflexão: a escola é o elevador que permite ascensão social. Dizê-lo não é ceder a um qualquer ideal romântico, mesmo que a inconsequência dos discursos políticos (que tanto repetem esta ideia) o sugira. Dizê-lo é apenas manter em vista o papel do sistema educativo enquanto política pública: proporcionar um acesso universal à educação, sim, mas também garantir que esta consegue oferecer uma formação de qualidade e com respostas à medida das necessidades de cada aluno – em particular, proporcionando às crianças das franjas mais frágeis da população a obtenção de instrumentos intelectuais com os quais possam ambicionar um futuro melhor, mais feliz e mais livre. Ora, o nosso elevador social da educação está avariado. Não implica isto que não funcione de todo – felizmente, temos evidências de melhorias na aprendizagem, incluindo entre os jovens mais pobres. Mas implica que esse elevador sobe de forma lenta e intermitente, frustrando as expectativas de tantos.
Portugal é, na OCDE, o país onde se observa menor mobilidade social na educação. O que isto quer dizer é simples: muito mais do que em outros países, em Portugal prevalece uma relação fortíssima entre o perfil socioeconómico das famílias e a probabilidade de sucesso escolar dos seus filhos – um aluno com pais licenciados tenderá a valorizar a escola e obter sucesso escolar, um aluno com pais pouco qualificados tenderá a cair no insucesso escolar. É esse elo que compete às escolas e ao sistema educativo quebrar, de modo a que as desigualdades sociais à entrada da escola não sejam as mesmas desigualdades de resultados educativos à saída. Infelizmente, não o têm conseguido com a eficácia desejada.
Quem procurar evidências desse fracasso encontrará nas reprovações um exemplo inequívoco. Os alunos que mais chumbam na escola são os que apresentam um baixo perfil socioeconómico. Basta verificar os dados oficiais para o confirmar: no 7.º ano, as negativas a matemática atingiram 51% dos alunos com Acção Social Escolar escalão A (os mais desfavorecidos), 39% dos do escalão B e 25% dos restantes alunos – uma desigualdade social nos resultados que se confirma em todas as disciplinas. Sabendo que existe uma relação entre perfil socioeconómico e sucesso escolar, reconheça-se que nada disto é verdadeiramente surpreendente. Mas basta atribuir-lhe uma noção de escala para se tornar chocante: em Portugal, um aluno socialmente desfavorecido tem (praticamente) quatro vezes maior probabilidade de reprovar do que um aluno com perfil socioeconómico mais elevado. No plano europeu, só em Espanha a situação é mais negativa do que em Portugal. Nos restantes países, a tendência é para que a probabilidade seja o dobro (em vez de o quádruplo do caso português).
Este enquadramento sobre as desigualdades já presentes no sistema educativo português é fundamental para lançar qualquer reflexão relativa ao impacto da pandemia de Covid-19 nas desigualdades de aprendizagem. Por uma razão simples. É que as desigualdades agora geradas não são conjunturais – elas somam-se às existentes e agravam aquele que é actualmente o maior desafio estrutural do sistema educativo: a desigualdade de oportunidades.
O ensino a distância amplia desigualdades
Quando, em Março de 2020, as escolas fecharam portas por causa da pandemia de Covid-19, substituiu-se o ensino presencial pelo ensino a distância. A única excepção foi atribuída aos alunos do ensino secundário (11.º e 12.º anos) inscritos para realização de exames nacionais e estritamente relacionada com a sua preparação. Assim, do 1.º ao 10.º ano, os alunos ficaram condicionados ao ensino a distância desde Março até ao final do ano lectivo 2019-2020. É, claro, discutível se haveria condições para outras soluções, nomeadamente optar por um regresso ao ensino presencial ainda no decorrer do ano lectivo, conforme vários países europeus procuraram fazer. O que é indiscutível, tendo por base a investigação na área, é isto: a ausência de ensino presencial causa um impacto negativo significativo na aprendizagem dos alunos, em particular nos com maiores dificuldades, e que esse dano será tanto maior quanto mais longa for a sua ausência.
Há vários factores que provocam esse prejuízo, dos quais vale a pena destacar três. O primeiro é que, em termos de aprendizagem dos alunos em escolaridade obrigatória, as evidências empíricas apontam para que o ensino a distância seja menos eficaz que o ensino presencial – e, portanto, um fraco substituto deste. Refira-se ainda que o ensino integralmente a distância é uma raridade ultra-minoritária nos sistemas educativos europeus, destinada a alunos que residam em áreas remotas. Assim sendo, as ofertas educativas a distância foram até hoje sobretudo utilizadas de forma a complementar o ensino em sala de aula. A consequência directa disto é a impreparação das comunidades educativas para adoptar o ensino a distância de forma generalizada. Ou seja, neste caso em concreto, a ineficácia do ensino a distância é ampliada, uma vez que a sua implementação foi uma solução de recurso, para a qual professores e alunos não estavam inicialmente preparados, sofrendo os respectivos custos de adaptação.
O segundo factor a ter em conta é que, de acordo com os (poucos) estudos existentes (sobretudo focados na realidade americana), a eficácia do ensino a distância tende a ser pior nos alunos com dificuldades de aprendizagem. Ou seja, o ensino à distância penaliza em particular os alunos que já apresentam um handicap na aprendizagem – seja porque são alunos menos resilientes e menos autónomos, seja porque o ensino a distância implica menor apoio dos professores. De resto, importa referir que a interacção com um professor é condição indispensável para a uma aprendizagem eficaz – uma das evidências mais consensuais na literatura académica é precisamente que, dentro da escola, nenhum factor é mais determinante para o sucesso escolar de um aluno do que o desempenho do seu professor. Ora, no ensino a distância, a relação dos alunos com os professores é muito menor ou mesmo nula, variando consoante a familiaridade dos docentes com as ferramentas digitais – o que prejudica todos os alunos, mas ainda mais aqueles alunos que mais necessitam de apoio.
O terceiro factor é o mais óbvio e amplamente discutido: o ensino a distância requer acesso a equipamento e internet de banda larga, de forma a que os alunos possam manter-se “ligados” à sua escola. Essa necessidade requer poder económico e representa uma desvantagem para os alunos de contextos sociais desfavorecidos, visto que estes têm, geralmente, piores condições de acesso à tecnologia e, em alguns casos, ficam mesmo excluídos do ensino a distância. Sendo difícil estimar com exactidão quantos alunos ficaram excluídos (desde o encerramento das escolas) porque dependentes dos seus próprios meios, os levantamentos feitos pelas autarquias remetem para percentagens significativas – por exemplo, 23% dos alunos do 1.º ciclo do ensino básico no concelho de Lisboa. Independentemente da fiabilidade das estimativas existentes, os dados comparados a nível europeu mostram que Portugal é um dos países onde é mais provável essas desigualdades ocorrerem, visto apresentar elevada desigualdade de acesso a internet de banda larga nas residências entre áreas urbanas (83%) e áreas rurais (63%) – um gap de 20 pontos percentuais que só a Grécia ultrapassa. Num contexto em que o ensino presencial é substituído pelo ensino a distância, e em que compete ao Estado garantir o acesso à escolaridade obrigatória da população entre os 6 e os 18 anos, este é um desafio incontornável, cujo adiamento da resolução aprofundará desigualdades sociais e educativas.
O dano na aprendizagem tem solução?
Sendo claro o ponto de partida (a desigualdade de oportunidades no sistema educativo) e como a pandemia contribuiu para o agravar (com a suspensão do ensino presencial), mantém-se incerto se o dano na aprendizagem é irreversível e, portanto, se ficarão alunos irremediavelmente para trás. O momento precoce desaconselha juízos definitivos, até porque escasseiam os dados de avaliação que permitem monitorizar esse impacto. Mas as evidências disponíveis justificam o lançamento de um sinal de alarme: se nada for feito para apoiar os alunos com maiores fragilidades, sim, a distância que os separa dos seus colegas aumentará de forma irremediável.
É difícil quantificar o dano na aprendizagem para os alunos que se viram excluídos do ensino a distância ou para aqueles que, com maiores dificuldades à partida, tiram menor proveito desta alternativa ao ensino presencial. Não existem ainda dados de avaliações que dêem certezas. Mas, com base em estudos sobre situações análogas, é possível obter uma ideia bem-formada da sua ordem de grandeza. Por exemplo, recorrendo a um caso extremo, verificou-se que o dano de aprendizagem causado pela Segunda Guerra Mundial em crianças de países em conflito (que suspenderam aulas), quando comparadas com crianças de países sem conflito e sem suspensão de aulas, não se esbatera mesmo após 40 anos. Recorrendo a exemplos mais próximos da nossa realidade, há uma extensa investigação sobre as chamadas “perdas de aprendizagem” durante o período de férias de Verão a certas disciplinas, como Matemática, que mostra como a ausência de contacto frequente com a escola fragiliza os conhecimentos previamente adquiridos. Da mesma forma, sabemos que o impacto do absentismo na aprendizagem dos alunos é particularmente acentuado e proporcional aos dias de faltas – quantos mais dias um aluno faltar às aulas, maior o fosso que se cria entre os seus resultados em exames e os dos seus colegas sem faltas.
Quando aplicados à situação decorrente da pandemia de Covid-19, com as devidas ponderações, estes estudos alertam para dois riscos. Primeiro, que um menor contacto com a escola (ou até situações de abandono do ensino a distância) durante um período tão longo terá muito provavelmente um impacto severo e duradouro nos alunos, não somente de estagnação na aprendizagem mas, em certos casos, também de retrocesso na aprendizagem. Segundo, é igualmente possível antever que os alunos que tirarem pior proveito do ensino a distância ficarão numa situação de desvantagem competitiva face aos seus colegas ou face a alunos de escolas onde o ensino a distância esteja bem enraizado.
O cenário que está na mesa é este. Mas o dano real e a sua eventual irreversibilidade dependerão da eficácia das medidas governativas entretanto implementadas para atenuar este impacto negativo na aprendizagem e anular o ampliar das desigualdades sociais na educação.
As mais importantes dessas medidas foram a distribuição de equipamento tecnológico (através das autarquias e, no próximo ano lectivo, para abranger todos os alunos carenciados) e a criação de uma nova “telescola”, #EstudoEmCasa, que é uma oferta educativa complementar para o ensino básico, de apoio aos professores, alunos e pais – e que, para os alunos excluídos do ensino a distância, será um contacto mínimo com conteúdos educativos enquanto não houver ensino presencial. Ambas as iniciativas têm pertinência e mérito, mas nenhuma representa uma solução estrutural para os desafios actualmente existentes. Seja porque a “telescola” não substitui a “escola”, seja porque a distribuição de equipamento em si mesma não diminuirá as desigualdades no uso da tecnologia (uma criança que nunca teve um computador terá, forçosamente, maiores dificuldades em utilizá-lo). Não são uma cura, são paliativos.
A existir, a cura para estas (velhas e novas) desigualdades na educação passará incontornavelmente pelo ensino presencial. O que, no concreto e no imediato, significa duas coisas. Primeiro, reduzir ao indispensável a suspensão das aulas presenciais, porque cada dia sem aulas nas escolas é mais um dia em que as desigualdades de aprendizagem se ampliam. Segundo, assim que se tornar viável o ensino presencial, providenciar meios para garantir que os alunos que assim o desejarem têm acesso gratuito a aulas de apoio e de recuperação, incluindo no habitual período de férias. Estas medidas requerem, ambas, reorganização dos recursos das escolas, sim, mas sobretudo coragem política, porque encontrariam pela frente a resistência de vários agentes do sistema educativo e até de várias famílias. Haja essa coragem e muito ganharão as crianças que tanto têm perdido.
Este ensaio foi publicado originalmente na revista de aniversário do Observador, que está à venda nas bancas e online.