Quem entrasse por acaso no Pavilhão do Alto do Moinho, em Corroios, este sábado e assistisse a umas horas da conferência nacional do PCP dificilmente perceberia que estava a presenciar um momento histórico. O dia em que se fechou a longa liderança de Jerónimo de Sousa decorreu praticamente sem referências ao assunto, nem dos delegados nem do próprio. Reunidos para discutir o futuro do partido, os delegados agiram como se não estivesse prestes a acontecer uma muito rara — é apenas a terceira — mudança de líder em democracia, e só os fortes aplausos em pé a Jerónimo, no início e no final do seu derradeiro discurso, denunciaram que o momento era excecional.
Se o PCP costuma insistir que não se foca em personalidades e líderes e que o papel de secretário-geral é apenas mais uma “tarefa” que o coletivo decide atribuir a quem entender, o último dia de Jerónimo como líder mostrou que a ideia é para levar a sério, pelo menos formalmente.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o perfil de Paulo Raimundo.
No palanque, ouviram-se apenas duas tímidas referências ao secretário-geral cessante (uma delas foi de uma delegada açoriana que aconselhava a Jerónimo, agora que terá mais tempo livre, umas férias no arquipélago) e nenhuma palavra de boas-vindas ao sucessor, Paulo Raimundo.
O próprio Jerónimo fez questão de não concentrar as atenções na sua saída. A única pista sobre a sucessão, ao longo de todo o dia, foi mesmo a chegada ao pavilhão — onde entrou acompanhado por Raimundo. Depois, o líder cessante ouviu os camaradas aplaudirem-no longamente ao subir ao palanque e dedicou-se a um discurso inteiramente focado no futuro do PCP, sem lugar a uma única palavra de balanço ou de despedida.
O guião de Jerónimo: como resistir em tempos de “vento duro”
A intervenção final do agora ex-secretário-geral do PCP deixou, de resto, pistas relevantes para perceber a estratégia do partido. Ideias a reter: o partido foca-se, mais do que em crescer, em “resistir”; sabe que está a enfrentar um “vento duro” e considera estar a ser alvo de uma “brutal ofensiva” para o enfraquecer; mas também sabe que, para continuar a avançar, tem de manter uma ligação “à vida” e “à luta” — leia-se alimentar as bases, reforçar a militância, entrar melhor nas empresas e locais de trabalho e aproveitar os tempos de potencial contestação social para apresentar soluções a quem sofre com o contexto económico e a inflação.
Além disso, a narrativa desenhada por Jerónimo será também a que o PCP — que passa agora a ser liderado por Paulo Raimundo, colega de Jerónimo nos órgãos mais restritos do PCP e também responsável, portanto, pela linha política e estratégica do partido — seguirá: falou de tempos duros, de campanhas contra o partido, de ataques constantes, e concluiu que o PCP não pode deixar de ser “o que é”.
E o que é, fez questão de lembrar contra possíveis tentações de alterar a essência do partido, é um partido marxista-leninista, inspirado nos conceitos das lutas de classes e de massas — sem cedências nem outras derivas. É por ser assim que o PCP é “corajoso”, rematou.
Curiosamente, há 18 anos, quando tomou posse como secretário-geral sucedendo assim a Carlos Carvalhas, Jerónimo agarrava um partido ainda combalido por causa da cisão e afastamento dos chamados renovadores e deixava recados precisamente sobre a identidade do PCP. Nessa altura, como escrevia a imprensa da época, Jerónimo, o “deputado-operário”, seria o único delegado na primeira fila de fato e gravata (“impecável de azul escuro”, contava então a Lusa).
E, conotado com a ala “ortodoxa” do PCP — pelo menos, no contexto da divisão interna da altura — e fiel à orientação marxista-leninista do partido, faria um discurso sobre a identidade do PCP. Aos críticos que pretendessem a “descaracterização do partido”, Jerónimo deixava então um conselho, mais um com base nos ditados populares em que tantas vezes se inspiraria: podiam pôr “as barbas de molho”.
Despedida de Jerónimo foi antecipada. PCP olha para a frente
Quase vinte anos depois, Jerónimo voltou a ser, se não o único, dos raros dirigentes que entraram de fato no pavilhão de Corroios, e voltou a deixar avisos sobre “a identidade comunista” que o PCP “assume firme e corajosamente”, como já poucos partidos na Europa fazem, e numa altura em que o partido está isolado no espetro político português, especialmente por causa da sua posição sobre a guerra na Ucrânia — mais uma vez, Jerónimo culpa EUA e NATO pela escalada da guerra e pediu que fossem abertas negociações com a Federação Russa, que só mencionou dessa vez.
Ainda assim, a tradição é para passar às novas gerações, inspirada pelo legado dos comunistas que vieram antes, recordou, numa altura em que tomará posse pela primeira vez um secretário-geral nascido depois do 25 de Abril (Paulo Raimundo ingressou na JCP adolescente, enquanto a União Soviética se desfazia).
Os avisos políticos foram, assim, variados; as referências pessoais nulas. O que talvez explique a demora e o à vontade de Jerónimo de Sousa na conferência de imprensa que deu no domingo passado, para justificar a sua saída, que durou quase 50 minutos (mais do que este discurso) e durante a qual fez balanços, desabafos e confissões.
Nesse dia, Jerónimo citava Pablo Neruda — “confesso que vivi” –, fazia balanços — a rara, no PCP, “dimensão dos afetos” e alguma “solidez ideológica” são legados que quer deixar, explicava, rejeitando que a geringonça seja a marca da sua liderança — e até contava pormenores da sucessão, incluindo a “surpresa” que o nome de Raimundo começou por gerar no Comité Central e o aplauso que ouviu dos colegas daquele órgão, durante quatro minutos.
O “profissional” Cunhal e o “obrigado” aos camaradas
Desta vez, a despedida resumiu-se aos longos aplausos no início e no fim do discurso — e um deles tão forte, a meio da intervenção, que lá interrompeu para agradecer: “Obrigado, camaradas, assim é mais fácil”. O coletivo estaria primeiro: o dia acabaria por ser dedicado aos assuntos internos e aos problemas com que o PCP tem de lidar, sem discutir nada que tivesse a ver com a liderança, sem despedidas nem desejos de boa sorte a Raimundo. Um cenário difícil de imaginar noutros partidos.
Na conferência de imprensa, Jerónimo mostrara, ainda assim, estar visivelmente emocionado e com vontade de falar da sua saída. Por isso, a reação foi ainda assim muito diferente da de Álvaro Cunhal, que em 1992, questionado pelo Expresso sobre o que sentia ao abandonar um cargo que ocupara durante três décadas, respondia secamente: “Não sinto nada, sou um profissional”.
Olhando para a história, na sua primeira eleição, em 2004, Jerónimo foi eleito com quatro abstenções. Da última vez, em 2020, a reeleição contou pela primeira vez com um voto contra.
Assim, para já, o novo líder começa, estatisticamente, com mais apoio: ao final da noite, Raimundo era oficialmente eleito pelo Comité Central por unanimidade (só Paulo Raimundo não votou) numa reunião ultrarrápida, que demoraria menos de uma hora e faria por dissolver a ideia de que o nome não gerara consenso, uma vez que à primeira não tinha obtido unanimidade. Desta vez, o PCP quer mostrar uma frente unida, partindo assim para este novo ciclo contra os muitos inimigos externos que diz enfrentar, para motivar as suas próprias tropas. O primeiro discurso do novo secretário-geral nesse papel acontecerá este domingo.