Diogo Infante estreou muito recentemente a peça do Edward Albee “Quem tem medo de Virginia Woolf?”, que é um milagre que acontece no Teatro da Trindade e que vais estar até 11 de Junho. Dê-me lá notícias desse milagre.
Eu não lhe chamaria um milagre, eu chamaria um…
Está tudo certo, maravilhosamente certo…
Eu não tenho essa consciência. Tenho muito prazer e fico muito feliz que tenha gostado. A nós dá-nos muito prazer fazer o espetáculo todas as noites. Foi um projeto muito acarinhado, muito desejado. Esta é uma peça daquelas que me acompanha há muitos anos. Vi a versão do Teatro da Graça com a Isabel de Castro e o Mário Jacques e fiquei estupefacto com o espetáculo na altura.
E desde então gostaria de o ter feito?
Sim, sim. Bom, na altura eu teria idade para fazer o personagem mais novo, mas sei que foi um daqueles textos que me marcou e que ao longo dos anos eu pensei: “Gostava de um dia de o revisitar”. Tive oportunidade de o programar enquanto diretor do Teatro Nacional D. Maria II, numa versão assinada pela Ana Luísa Guimarães e com a Maria João Luís, com o Virgílio Castelo e com a Sandra Faleiro. Entretanto o tempo passa, voa, e passaram seis anos desde essa produção no D. Maria II e eu achei que já tinha passado o tempo suficiente para se poder voltar a fazer. Enfim, os clássicos merecem sempre ser revisitados e este não é exceção.
É um clássico absoluto.
É um dos grandes textos do séculos XX. É impossível pensar na dramaturgia mundial e não pensar neste texto do Albee. Por mais que ele tentasse superá-lo, ele não conseguiu. É a sua grande obra-prima.
Como foi, de algum modo, partilhar uma encenação? Porque João Perry acompanhou a encenação até relativamente perto da data da estreia e depois, por motivos de saúde, o João teve de sair e o Diogo Infante pegou na peça. Não foi complicado, ainda para mais tendo o papel principal?
Foi, foi estranho. Todo o processo foi estranho, embora o João tivesse criado os alicerces do espetáculo. Mas, depois, eu ainda tive cerca de cinco semanas para poder torná-lo meu, de alguma maneira, respeitando naturalmente aquilo que tinham sido as diretrizes do João. E, em muitos aspetos, nós estávamos de acordo quanto ao sentido que queríamos dar ao espetáculo.
Qual era esse sentido?
Era, por um lado, honrar o texto, nem eu nem ele tínhamos a preocupação de o alterar. Enfim, houve uma dramaturgia feita sobre o texto, naturalmente, mas não tentámos encontrar caminhos alternativos.
Ou revê-lo…
Não era essa a proposta e, portanto, nesse sentido era muito claro que o texto é uma espécie de partitura que se impõe. O João defendia, tal como eu, a necessidade de os ritmos, de as cadências das falas, de os jogos entre as personagens serem muito claros, muito acutilantes, nunca deixar cair a bola, que é uma expressão que nós usamos em teatro. E, portanto, essas linhas estavam levantadas e toda a equipa lamentou muito que o João não pudesse levar este projeto até ao fim — mas a saúde, nestas coisas, é a prioridade e o João já está bastante melhor e, portanto, fico muito feliz.
Ele já viu o espetáculo?
Ainda não, ainda não. Eu acho que ele está a dar tempo para sedimentar a coisa.
Diogo, olhando para si, para o seu currículo, para o que tem sido a sua vida como ator, nós vemos sobretudo um homem de teatro, quase um animal de teatro. Porque será?
Eu sou muito mais uma pessoa de teatro do que de televisão, embora deva muito à televisão e ao audiovisual. Mas, efetivamente, é no teatro que me sinto em casa, que sinto que tenho um espaço que me permite desafiar-me, ir mais longe, aprofundar. Gosto da ideia de poder experimentar e errar. Em televisão, não temos esse espaço e no cinema também não. Mas no teatro nós temos sensivelmente seis semanas, oito semanas de ensaios que nos permitem testar os limites, experimentar. E isso é um privilégio para que, quando nos confrontamos finalmente com o público, o possamos fazer de forma muito tranquila e segura e conscientes daquilo que estamos a fazer e porquê. E portanto, efetivamente, eu revejo-me nessa leitura, embora eu ache que sou um ator multifacetado e procuro desmultiplicar-me porque eu gosto da variedade.
Gosta da versatilidade.
Sim, gosto.
E também gosta da versatilidade de géneros. Eu já o vi fazer comédia, gosta do drama, gosta da tragédia…
Gosto de me desafiar, gosto de me obrigar a sair da minha zona de conforto — como se diz agora — e perceber como é que posso encarar novos desafios. É evidente que se tiver que escolher um caminho, se me obrigassem muito, diria que sou um ator clássico. Gosto de textos clássicos, gosto de grandes personagens, gosto do texto, gosto da palavra, gosto do peso das palavras, gosto de ouvir o texto. E portanto isso define-me. É evidente que define as minhas escolhas, que define os meus caminhos. Mas ainda há muito caminho pela frente.
Mas deixe-me só insistir um bocadinho no teatro. O que é que o teatro tem que faz com que que um ator se transfigure? Que poder é que o teatro tem?
É o aqui e o agora, por um lado. Tudo acontece naquele momento. Nós somos um bocadinho atletas de alta competição e temos que render. É agora — é agora que temos de dar o salto, é agora que a fasquia vai subir, é agora que o público está a entrar e não há espaço para hesitações. Não dá para voltar. Uma vez iniciada a descida vertiginosa que às vezes se afigura perante nós, que é este abismo maravilhoso, uma vez iniciado esse processo, nós só acordamos no fim, com as palmas. Durante os três, quatro anos em que fiz a “Ode Marítima”, tinha muitas vezes a sensação de mergulhar num túnel escuro e só acordar quando voltava a ver a luz, que era no final do espetáculo.
Mas em cima de um palco há, apesar de tudo, um sortilégio, há um mistério — que não há no cinema, não há na televisão.
Sim, sem dúvida.
Que advém do ao vivo?
Sim. O espectáculo ao vivo é ritualista por natureza. Nós temos todo um processo de preparação, de meditação. E depois a partilha com o público é algo único, irrepetível — é algo transcendente, de facto. E isso dá-nos uma descarga de adrenalina de tal forma violenta que poucas coisas na vida me fazem sentir tão vivo como aquele momento em que eu subo para cima do palco.
O Diogo pode deixar-se afetar no decurso de uma peça por ter um público que sente ensonado, ou alheado, ou a rir despropositadamente?
Todos os públicos são diferentes e, portanto, há sempre uma margem de imprevisibilidade e nós temos de estar disponíveis para integrar esse elemento estranho e variável no espectáculo. Mas é evidente que há desconforto. Às vezes o público ri demais ou há pessoas a conversar ou a olhar para o telemóvel e isso é… nós não somos autómatos. Já me aconteceu parar um espetáculo.
Relembre lá.
Foi no “Cyrano de Bergerac”, no Teatro Nacional. Eu estava a representar e às tantas reparei que uma senhora estava a mandar uma mensagem e a luz do telemóvel tornava-se muito visível e aquilo era muito perturbador. Eu olhei para a senhora uma ou duas vezes e ela continuava a escrever e, às tantas, comecei a dizer o texto para ela. A ação continuava. Ela olhou para mim fez “assim” como quem diz “desculpe, desculpe” e eu continuei. Passados para aí mais dez minutos, numa outra cena, a senhora volta a estar a mandar mensagens. E eu parei, parei o espetáculo: “Vai desculpar-me mas não imagina como isso é perturbador”. E a senhora disse: “Sabe o que é? É que tenho o meu filho em casa, estou muito preocupada”. E eu: “Então, mas porque é que veio?”. Começou toda a gente a rir, ela também, pediu desculpa. Eu acho que as pessoas não avaliam o grau de concentração que exige estar a dizer um texto que dura duas horas, de uma dimensão trágica, dramática.
Estamos a falar de teatro, do que é representar, desse sortilégio, e você nunca disse a palavra “vocação”. Houve uma vocação forte em si?
Sim. Sabe que, quando fui fazer audições para o conservatório, estava na prova de voz e a professora, creio que era a Maria João Serrão, perguntou-me: “Mas porque é que está aqui?”. E eu olhei para ela e disse: “É a minha vocação”. E começou-se tudo a rir porque aquilo caiu muito mal na altura. Parecia uma terrível falta de modéstia da minha parte: “Ainda agora aqui chegou e já diz que tem uma vocação”. Mas eu, dentro de mim, sentia que era essa vocação. Eu já tinha feito teatro amador, já tinha estado em cima de um palco. E foi essa convicção, nas tábuas, na relação com o público, na relação com o texto, que eu um dia tive uma epifânia e percebi: é isto que eu quero fazer para o resto da minha vida. E foi de tal forma intensa essa clarividência que tudo fiz — e a minha família foi preciosa nesse esforço — para conseguir alcançar esse sonho, concretizá-lo. Porque, na altura, nós vivíamos no Algarve e não era fácil… Eu, naquela altura, não tinha contexto — nem financeiro, nem familiar — para poder de repente fazer uma aventura. Mas a verdade é que a fiz, com o apoio de todos. A minha mãe e a minha avó, que me criaram, eram as minhas duas maiores fãs, cheias de orgulho porque perceberam o quanto era importante, de facto, vir atrás de uma coisa que eu achava que queria fazer.
Que era o seu caminho.
Que era o meu caminho. E claro que dei a mim próprio um tempo. Na altura, lembro-me de dizer: “Dou aqui uns cinco anos para ver se isto funciona”. Porque, se hoje em dia não é fácil viver-se da representação, na época mais difícil era.
Posso dizer que a sua história começa essencialmente com esse momento em que decide “Eu vou para a frente com isto”? Porque antes tinha estudado turismo e tinha sido guia turístico.
A minha história começa para aí aos cinco, seis anos. Eu era fascinado pelo filme “A Serenata à Chuva”, que vi muitas vezes e cujos diálogos e canções eu sabia de cor. Em particular, o tema que dá titulo ao filme. E, em casa, eu costumava fazer o meu numero d’ “A Serenata à Chuva” com um chapéuzinho. A minha mãe tinha um disco que eu punha a tocar praticamente em loop e dançava e cantava o “Singing in the Rain”. Já na altura era muito evidente que eu gostava do showbiz, do esptáculo.
Mas você nunca fez musicais.
Dirigi. Dirigi o “Cabaret” no Maria Matos. Como ator, não tive essa oportunidade de fazer um musical desses. Mas ainda não perdi a esperança.
As pessoas pensam que uma vocação e um talento se alimentam muito dos aplausos, de estar em cima do palco, de ter boas críticas. E, no entanto, não sei se o público mede o que há de suor, de esforço, de trabalho, de memória.
É muito agradável sentir o reconhecimento público do nosso trabalho e do nosso esforço e os comentários positivos e os elogios e as palmas. É verdadeiramente notável. Mas deixe-me que lhe diga que nada nos marca tanto como os comentários negativos, como as críticas que nos destroem. Porque é sobre essas que eu fico a matutar. É sobre essas que eu me destruo e, qual Fénix, volto a renascer para dizer: “Não, eu consigo fazer melhor”. E, portanto, se 100 pessoas me disserem “Parabéns, Diogo, gostei muito”, eu fico um bocadinho desconfiado. Mas se alguém me disser “Que grande porcaria” eu acredito e fico a pensar “A sério? Mas porque é que não gostaste?” — e tento perceber. Porque, no fundo, todos nós, para além de termos uma enorme necessidade de sermos aceites e reconhecidos, temos uma fragilidade. O palco, de alguma forma, é uma maneira que encontramos muitas vezes de lidar… Eu era muito tímido. Aprendi com a idade e com a vida a ultrapassar a minha timidez e a falar em público, a acolher a gentileza de um gesto, de um sorriso, de um autógrafo, que eram coisas que me perturbavam, que me incomodavam. Tinha muita dificuldade em lidar com esse tipo de sucesso na primeira fase da minha vida. Hoje acho que já estou bastante mais sociável, mas no palco era onde eu me sentia verdadeiramente protegido. O que me faz ir para cena é o sentir-me forte, é o sentir-me maior que eu. Eu tenho um personagem que se calhar é um homem maravilhoso, ou é um homem terrível, mas a história dele está escrita, eu sei para onde ele vai. A minha vida, às vezes, eu não sei.
Uma pequena curiosidade pessoal, para partirmos para os clássicos. Como é que é possível o cérebro armazenar um texto do tamanho e da violência deste da Virginia Woolf? É treino?
É técnica. É um músculo que se exercita e que tem de se manter ativo porque ele vai perdendo elasticidade. Creio que a minha memória está bastante exercitada e ágil, mas exige um esforço inacreditável.
Na sua vida houve Shakespeare, Moliére, Tchekhov, Padre António Vieira, Pessoa, Albee, Tenessee Williams, Pinter. Houve quase só o melhor ou mesmo só o melhor. Foi uma escolha deliberada?
Foram oportunidades que me foram surgindo, que me deram a conhecer alguns desses grandes autores de que falou e eu percebi que ficava absolutamente encantado com a possibilidade de dizer aqueles textos maravilhosos e esse gosto ficou em mim. Gosto desse desafio. Gosto de calçar sapatos que são maiores que os meus. Gosto de sentir que estou a dizer textos que já foram ditos por grandes atores. Se calhar é uma vaidade minha, mas é uma forma de… eu desafio-me. Às vezes corre melhor outras vezes não corre mas eu gosto de correr esse risco.
Houve algum personagem que tivesse corrido muito bem?
Muitas vezes a perceção que eu tenho do sucesso dos personagens não corresponde necessariamente à recetividade que eles tiveram. E portanto houve personagens pelos quais fui premiado, mas em que fiquei com uma sensação amarga de “Eu podia ter feito melhor”. Vou dar-lhe um exemplo: o Hamlet. Eu fiz o Hamlet há dez anos e acho que podia ter feito melhor. Acabei o espectáculo a pensar: “Hum… não foi mau mas se calhar não…”. Fiquei sempre a duvidar de mim, das minhas escolhas. Se calhar o João Mota devia ter-me dirigido mais, não sei. Às vezes há fatores que nos ultrapassam…
Qualquer coisa ficou aquém?
Para mim. Para mim, sim. Muito embora tenha ganho vários prémios com aquele espectáculo. E, de cada vez que os recebia, com humildade, pensava: “Se calhar não mereço isto”. Houve outros personagens que me deram um gozo enorme. Eu adorei fazer o Cyrano, é uma personagem maravilhosa. Não ganhei nenhum prémio com ele, mas ninguém me tira o prazer que eu tive a interpretá-lo. É um personagem brilhante, rico, fantástico e cheio de panache e um coração enorme. E todo aquele contraste entre um homem fisicamente brutal e forte e depois um coração de passarinho com a alma de um poeta. Enterneceu-me imenso.
Agora vamos falar da sua pele de encenador: o que é que se pede a um encenador? Que dê a ver?
Hoje em dia, o papel do encenador sofreu várias mutações. O termo quase caiu um pouco em desuso. Hoje são criadores. Ou seja, eles ou criam um objeto de raiz, ou recriam o texto. Eu nunca senti essa vocação. Tenho o maior respeito pelas pessoas que gostam de criar mas eu, quando pego num texto destes, aquilo que quero é honrá-lo. Nunca tenho a pretensão de o desconstruir, ou de o desmontar, ou de o reinventar, ou de dizer “Vamos fazê-lo todos em jeans e numa garagem”. Nunca é isso que me apetece. Não quer dizer que não possa ser muito interessante e já vi muitas criações alternativas em que eu pensei: “Uau, eu jamais teria essa capacidade de o fazer”. Eu gosto de uma perspetiva mais clássica, da abordagem dos textos. É isso que eu procuro: é ler nas entrelinhas, é ler os subtextos, é tentar perceber o que é que o autor pensou, o que é que ele queria quando escreveu aquelas palavras, porque é que a personagem reage daquela maneira. Eu não me vejo sequer como um encenador no sentido formal do termo. Gosto de pensar mais em mim como um diretor de atores. Eu gosto de dirigir atores, de os potenciar, de os espicaçar.
Gosta de formar uma equipa com eles.
Gosto. Fascina-me imenso. Ou seja, como sou ator, prezo muito todo esse processo de trabalho com os atores porque percebo muito bem o que lhes vai na alma, as dificuldades que estão a sentir.
Agora que fala em diretor, também me estou a lembrar que entre 2006 e 2008 você dirigiu o Maria Matos e entre 2009 e 2011 dirigiu o Nacional. Porque é que cada uma só durou dois anos?
Na verdade, duraram três ou seja, foram dois mandatos. Foram sempre questões de ordem financeira que se cruzaram e questões de política, basicamente. No primeiro caso, do Maria Matos, houve uma nova administração da EGEAC com quem eu tive alguns desentendimentos do ponto de vista formal e depois a programação que ia ser apresentada não foi aprovada por questões financeiras e eu fiquei numa situação muito delicada porque tinha que avançar com compromissos. Acabei por sair porque entretanto me surge também um convite para ir para o Teatro Nacional por mão do então ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro. Como estava num impasse no Maria Matos, acabei por aceitar este novo desafio. No D. Maria, o projeto também foi muito desafiante e eu acho que correu bastante bem, mas, mais uma vez, politicamente, não tive interlocutores. Por outro, foi no início da grande crise, com aqueles cortes brutais nos orçamentos a todos os níveis, que todos nós sentimos na pele. A cultura não foi exceção. O nosso interlocutor era, sobretudo o Ministério das Finanças. Houve mais uma vez um impasse por questões financeiras onde eu tentei explicar que os cortes não podiam ir além de um determinado limite, senão comprometiam a própria missão do Teatro Nacional. Depois eu tomei uma decisão pública sobre esse… e fui demitido por incumprimento. Mas não me arrependo de nada, fiz sempre aquilo em que acreditava. Não estava ali agarrado ao lugar. Só tenho pena que o poder político não tenha tido a capacidade de reconhecer esse esforço. Porque, efetivamente, e isso leva-nos para uma conversa que se calhar não cabe aqui, mas eu continuo a sentir que não há uma política cultural em Portugal.
Eu ia pedir-lhe justamente um ponto de situação sobre como é que vê o teatro, mas podemos ser mais ambiciosos e falar da cultura.
Maria João, eu não sou um político, sou um agente cultural. Sou um produtor, sou um encenador, sou um ator, e penso aquilo que faço. O que a mim, enquanto cidadão, me desagrada, é pensar que os nossos políticos não pensam de base uma estratégia cultural para o país.
Portanto, há gestão e não há políticas.
Exatamente. Uma política cultural é uma coisa de base, devia ser pensada juntamente com o Ministério da Educação, deveria começar nas escolas, na forma como criamos uma dinâmica e uma democratização do acesso à cultura. Hoje em dia, com raras exceções, voltámos a uma cultura de elites.
Acha?
Acho, porque as estruturas e os organismos que têm dinheiros públicos fazem espectáculos de três dias, cinco dias. No fundo, quem vai ver esses espectáculos são convidados ou pessoas culturalmente iluminadas e que têm acesso a eles. O grande público não vai. O que acontece é que acabam por ser os promotores privados, os poucos que conseguem, que investem em projetos como este. O “Quem tem medo de Virginia Woolf?” é de uma produtora privada que acredita que este texto e esta equipa podem atrair grande público.
Vamos dizer o nome dela…
Sim, é a Sandra Faria, da “Força de produção”. Nós tínhamos trabalhado num outro projeto, no “Plaza Suite”, que correu muito bem. Eu disse-lhe: “Olha, eu a seguir quero fazer o ‘Quem tem Medo de Virginia Woolf?’, se calhar vou eu produzir, vou tentar encontrar algum tipo de apoio” e a Sandra disse “Eu quero produzir isto convosco, eu quero correr esse risco convosco”. Não deixa de ser curioso que seja um produtor comercial que pegue num texto desta envergadura e esteja a fazer aquilo que deveria ser uma missão de um teatro, enfim, mais institucional.
Chegou a estudar em Inglaterra?
Não, não chegou a acontecer. Eu tentei, ainda fui fazer uma audição a Londres que me correu muito mal. Não fui aceite. Em Londres, é outro campeonato. Na altura, nós não estávamos sequer na Comunidade Europeia, portanto ir estudar para Londres era uma coisa muito muito cara. E eu lembro-me de andar a procurar escolas e de escolher a mais baratinha e marquei audições com quatro, cinco meses de antecedência e fui lá e fiz o teste e fiz aquilo tudo e eles disseram-me: “Muito obrigado, não passou à fase seguinte”. E pronto, eu fui descartado assim, depois conheci um professor de teatro que me disse: “Isto aqui não funciona assim, tu tens que te candidatar a dez escolas, tens que ter professores para te ajudarem nas audições. Tens de voltar para o ano e preparar-te melhor”. E eu não tinha capacidade para o fazer e, portanto, com o rabinho entre as pernas e um bocadinho triste, voltei para Portugal, fiz audições para o conservatório, onde entrei, e aqui fiquei. E, devo dizer, ainda bem, porque eu acho que o destino às vezes tem esta maneira engraçada de nos empurrar num determinado sentido. Se tivesse ficado em Londres, não sei se teria tido todas as oportunidades que tive em Portugal.
Fazer os personagens que fez…
Tudo aquilo que fiz até agora. Hoje sinto que tenho um espaço. É o meu, é pequenino, é meu… É proporcional ao nosso país. E sinto-me muito e verdadeiramente reconhecido e agradecido por um país com a nossa dimensão e com as dificuldades culturais de que falávamos há pouco me ter dado a oportunidade de sobreviver com o resultado do meu trabalho.
Posso dizer que a sua grande escola foi o ir fazendo?
Sim, o palco, os atores mais velhos — e digo isto com o maior dos respeitos pelos mais velhos, por quem tenho uma enorme ternura e admiração. Sempre tive com eles uma relação muito próxima.
E procura-os? Dê-me um exemplo.
A Eunice, a Carmen, o Rui, o Perry. Eles contam histórias maravilhosas. E só de os ver a representar… Lembro-me que, quando trabalhei com a Eunice, eu ficava estarrecido a vê-la, a ouvi-la…
Fez várias telenovelas e agora está aí a “Impostora” ainda consigo. Você faz por questões financeiras, o que toda a gente compreenderá, ou faz porque acha também um desafio?
As duas coisas. Há muitos anos percebi que o dinheiro era importante: era importante para pagar as contas, era importante para eu não estar triste porque não tinha dinheiro para comprar um par de sapatos se me apetecesse. E também percebi que o dinheiro, numa sociedade de consumo como a nossa, era uma medida do meu sucesso. Acho que, em arte, nós temos de desdramatizar um bocadinho a questão do dinheiro. As televisões é melhor paga, naturalmente, porque se chega a muito mais gente. Eu represento para uma sala todas as noites com 400 pessoas — na televisão, 1,2 milhões de pessoas veem aquilo que faço. E, portanto, é uma questão de dimensão. O Ronaldo ganha o que ganha porque chega a milhões e milhões no mundo inteiro. Dito isto, gosto muito de fazer televisão. Gosto da ginástica a que ela me obriga.
Obriga, por exemplo, a gravar um episódio por dia ou quase.
Sim, em termos de tempo útil. Mas eu posso gravar com uma diferença de vinte episódios no mesmo dia. Ou seja, eu posso gravar cenas do episódio 20 e do episódio 40. E, entre um e outro, morreu alguém, alguém teve um acidente, a minha filha foi raptada… Portanto, num espaço de segundos nós temos de dar saltos violentíssimos emocionais e a televisão, como sabe, é cruel porque são planos “assim” e, se a gente não estiver lá, o público não acredita. E isso obriga a uma ginástica muito grande para um ator. Creio que não é por acaso que a generalidade dos grandes atores hoje em dia fazem televisão. É a nossa pequena indústria, à nossa medida. Nós não temos um Hollywood nem um Bollywood, mas temos uma pequena indústria audiovisual. E é muito simpático sentir que as pessoas vêm ao teatro para nos ver e que esperam no fim para nos dar uma flor ou tirar uma fotografia.
Está neste momento no Trindade com Virginia Woolf, com a Alexandra Lencastre. e está na telenovela “Impostora”, com a Fernanda Serrano — cria-se uma certa química, uma amizade, uma cumplicidade?
Nalguns casos, a amizade surgiu primeiro, e depois essa empatia acaba por ser transferida para cena, como é o caso da Alexandra. No caso da Fernanda, embora nos tenhamos cruzado algumas vezes, foi neste projeto que nos aproximamos muitíssimo — ficamos muito amigos, falamos muito e de facto essa cumplicidade foi crescendo, essa confiança mútua. Tivemos cenas muito difíceis, emocionalmente muito complicadas, e é bom quando temos ao nosso lado alguém que não nos deixa cair, que está lá, que nos dá o apoio, dá o olhar, dá a contracena, dá aquela energia. Alguns atores têm mais pruridos, ou mais pudores em partilhar, alguns são pura e simplesmente mais egoístas. A Fernanda é uma atriz muito generosa e um doce de pessoa.
O que é que o Diogo Infante faz quando não encena, não está na televisão, no cinema ou no teatro?
Das duas uma. Ou estou a levar o meu filho à escola, ou estou…
Tem que idade?
Tem 14, está um adolescente em toda a sua plenitude. Portanto, tenho os afazeres normais de um pai mas depois tenho alguns hobbies que me entretêm. Jogo ténis duas a três vezes por semana e monto a cavalo. Tenho um cavalo, sou federado, entro em provas de saltos e é uma paixão.
E a vida é o quê?
É uma oportunidade fantástica de viver intensamente. Tenho esta grande sorte de ser ator e, por isso, vivo muitas vidas neste pequeno espaço de tempo que é a nossa longevidade. Já fui muita gente diferente, já tive muitas paixões, muitos amores. Fora isso, sou um homem muito afortunado.
Tem a sensação que a vida o tratou bem.
Muito bem, não me posso queixar. Tenho uma família maravilhosa. Faço aquilo de que gosto e procuro sempre olhar para a vida numa perspetiva positiva. O copo para mim está sempre meio cheio.
[Veja aqui a entrevista de Maria João Avillez a Diogo Infante]