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Uma das duas maiores Unidades Locais de Saúde do país — e a maior da região de Lisboa –, a ULS de São José (que agrega vários hospitais na região central da capital), espera há cerca de 11 meses que a Direção Executiva do SNS aprove o nome proposto para diretor clínico, uma figura que tem como função coordenar toda a atividade clínica. Fontes hospitalares ouvidas pelo Observador criticam o atraso na nomeação, por parte da entidade liderada por Fernando Araújo, e falam numa “vingança” contra a atual administração da ULS de São José, relacionada com a exoneração do anterior diretor clínico.
Questionada pelo Observador, a Direção Executiva não respondeu às questões colocadas. Já o Ministério da Saúde lembra que a competência de nomeação é da entidade de Fernando Araújo mas sublinha a importância da “estabilidade dos órgãos de gestão” das ULS.
Foi em junho de 2023 que o então Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central (entretanto transformado em ULS de São José) enviou para o Ministério da Saúde — que, nessa altura, tinha ainda o poder de nomear os cargos dirigentes dos hospitais, ainda que sob proposta da Direção Executiva — o nome escolhido para assumir o cargo de diretor clínico, depois da saída do responsável anterior: o nome que estava (e ainda está) em cima da mesa de Fernando Araújo é o do diretor do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital Dona Estefânia, Rui Alves.
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O cirurgião trabalha há quase 35 anos na ULS de São José e é um dos mais prestigiados médicos em toda a estrutura, tendo liderado, por exemplo, a separação de duas gémeas siamesas, num procedimento de mais de 14 horas, no final de julho de 2023.
ULS de São José é a única do país sem diretor clínico
Em agosto de 2023, o governo de António Costa decidiu alargar a autonomia da Direção Executiva, dando à entidade o poder de passar a nomear diretamente os gestores hospitalares (entre os quais os diretores clínicos), sem necessidade de intervenção da tutela.
A resolução do Conselho de Ministros justificava a decisão com a “vantagem em estabelecer uma ligação direta entre a responsabilidade de orientar de forma global o funcionamento” do SNS e o “poder de nomear” os conselhos de administração de hospitais. O Ministério da Saúde, liderado então por Manuel Pizarro, considerava a alteração “um passo importante no reforço da gestão estratégica do SNS, desgovernamentalizando o processo de designação dos dirigentes das instituições”, com vista “a uma resposta operacional mais articulada e ágil”.
Mas ágil é o que não tem sido o processo de nomeação do diretor clínico da ULS de São José. Onze meses depois do envio do nome do novo diretor clínico para a tutela (que o remeteu de seguida para a Direção Executiva), os oito hospitais de Lisboa — Curry Cabral, hospital Dona Estefânia, Hospital de Santa Marta, Hospital de Santo António dos Capuchos, Hospital de São José, Maternidade Alfredo da Costa, Hospital Júlio de Matos e Instituto de Oftalmologia Gama Pinto — continuam sem um responsável pela coordenação da atividade assistencial, numa situação sem paralelo com qualquer outra unidade hospitalar do SNS e que merece críticas da presidente da agora Unidade Local de Saúde de São José.
“É muito grave”. Presidente da ULS diz não compreender demora e fala em “sobrecarga”
“Esta situação é muito grave. Não compreendo qual é o objetivo de ter o maior centro hospitalar de Lisboa (com 10 mil funcionários) sem diretor clínico há quase um ano e apenas com quatro elementos no conselho de administração”, diz ao Observador Rosa Valente de Matos. A gestora hospitalar lembra que o Ministério da Saúde enviou, em junho de 2023, o nome proposto pelo então Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central para a Direção Executiva do SNS, para que esta entidade emitisse o habitual parecer.
No entanto, a entidade liderada por Fernando Araújo nunca transmitiu qualquer avaliação do nome ao Ministério da Saúde e portanto a nomeação não foi feita pela tutela. Em agosto, os poderes de nomeação foram delegados na Direção Executiva e a nomeação continua por se concretizar, até hoje — apesar das insistências do conselho de administração dos hospitais da região central de Lisboa.
“Fomos perguntando à Direção Executiva como estava o processo e se era necessário algo mais. Nunca obtivemos resposta“, lamenta Rosa Valente de Matos, sublinhando que, nos últimos meses, a Direção Executiva do SNS procedeu à nomeação de todos os gestores hospitalares (presidentes de conselhos de administração, vogais e diretores clínicos — grande parte deles reconduzidos na sequência da transformação de todos os centros hospitalares em Unidades Locais de Saúde) à exceção do diretor clínico proposto pelo CHULC.
A Presidente da ULS de São José realça os constrangimentos que decorrem da falta de um diretor clínico para o conjunto dos oito hospitais (dois deles integrados na ULS de São José em janeiro) e das 39 centros de saúde (também incluídos no início de 2024 na recém-criada ULS). “É uma sobrecarga grande”, admite a responsável, recordando que “a direção clínica tem competências específicas, de grande complexidade”.
Sem diretor clínico nomeado, “os contactos com os médicos são mais complicados, há novas contratações adiadas, autorizações de procedimentos comprometidas. São situações que afetam os doentes”, realça fonte oficial da ULS de São José.
O diretor clínico é o elo dos médicos aos conselhos de administração. Segundo o artigo 73º do Estatuto do SNS, cabe ao médico designado para o cargo a coordenação da atividade assistencial do estabelecimento de saúde. Entre as tarefas atribuídas a esta figura estão a coordenação e elaboração dos planos de ação apresentados pelos vários serviços e departamentos de ação médica; a integração da atividade médica dos serviços; a avaliação e gestão do pessoal médico, designadamente nos processos de admissão e mobilidade interna; aprovação de orientações clínicas relativas à prescrição de medicamentos e meios complementares de diagnóstico e terapêutica; o esclarecimento de dúvidas sobre deontologia médica, entre outros.
O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares manifesta surpresa com a situação. “Não conheço os detalhes [do caso] mas se um presidente de um hospital propõe um diretor clínico, esse nome deve ser aceite. O facto de um presidente de um conselho de administração não ter oportunidade de escolher a equipa com quem vai trabalhar resulta, normalmente, em equipas disfuncionais”, avisa Xavier Barreto. “Se o diretor clínico da ULS de São José não foi nomeado, devia ter sido“, sublinha.
Questionada pelo Observador sobre a razão da demora na nomeação de Rui Alves, nome proposto pela ULS de São José, a Direção Executiva do SNS não respondeu, tal como tinha feito em agosto do ano passado, quando o Observador abordou o tema pela primeira vez.
Inação da Direção Executiva poderá estar relacionada com exoneração do anterior diretor clínico, que é próximo de Fernando Araújo
No entanto, fontes da ULS de São José, ouvidas pelo Observador, dizem que a entidade comandada por Fernando Araújo está a levar a cabo uma “vingança” contra o conselho de administração da ULS, devido à exoneração do anterior diretor clínico, Pedro Soares Branco — que é muito próximo de Jaime Alves, um dos membros do conselho de gestão da Direção Executiva do SNS e do próprio Fernando Araújo.
Ministério da Saúde afasta diretor clínico do Centro Hospitalar Lisboa Central
O médico fisiatra Pedro Soares Branco, que tinha sido nomeado em setembro de 2020 pela ministra da Saúde Marta Temido, foi exonerado pelo Ministério da Saúde no início de julho de 2023, a pedido da administração do à época Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central. Em comunicado, a tutela não detalhava as razões da exoneração mas fonte do CHULC referiu na altura ao Observador que a exoneração de Pedro Soares Branco estava relacionada com problemas entre o médico e o conselho de administração do CHULC, liderado por Rosa Valente de Matos. “Não teve nada que ver com divergências quanto a políticas de saúde”, adiantou.
No dia seguinte à exoneração, o especialista concedeu uma entrevista à TVI em que afirmou ter sido afastado do cargo por “divergências graves e progressivamente insanáveis com o conselho de administração, nomeadamente com a Dra. Rosa Valente de Matos”. Pedro Soares Branco acusou a administração de não ter consultado a opinião da direção clínica do CHULC numa fase “precoce” dos projetos a implementar e de “ter tomado decisões à revelia” do diretor clínico.
“Não havia nenhuma razão de fundo que justificasse a minha exoneração”, disse o ex-diretor clínico. Segundo fontes da ULS de São José, a exoneração terá gerado desagrado em Jaime Alves que é descrito como “amigo próximo” de Pedro Soares Branco. Jaime Alves, agora membro da comissão de gestão da Direção Executiva do SNS e braço-direito de Fernando Araújo, foi, durante três anos (de 2019 a 2022) vogal do conselho de administração do CHULC, tendo trabalhado lado a lado com Soares Branco.
Direção Executiva também ainda não nomeou o diretor clínico para os cuidados de saúde primários
Fonte hospitalar diz que, com o arrastar da nomeação do diretor clínico proposto pela administração, a Direção Executiva do SNS está a retaliar contra a ULS de São José, depois da exoneração de Soares Branco. “É uma vingança”, garante a mesma fonte.
Para além da espera de quase um ano pela nomeação do diretor clínico dos cuidados hospitalares, a ULS de São José espera também, desde janeiro, pela nomeação do nome proposto para diretor clínico dos cuidados de saúde primários (o do médico de família Hugo Gaspar), que também ainda não foi designado para o cargo por parte da Direção Executiva do SNS.
A 18 de abril deste ano, cerca de duas semanas depois da tomada de posse do novo governo, a Presidente da ULS de São José escreveu uma carta à ministra da Saúde, dando conta da “urgência na resolução da omissão” da nomeação dos responsáveis clínicos da unidade.
“Não é possível encontrar fundamentos racionais e técnicos que justifiquem a persistência deliberada nesta omissão que penaliza de forma injusta e grave, em primeiro lugar, toda a população que é atendida por esta Unidade do SNS, e que é constituída por várias centenas de milhares de cidadãos, e em segundo lugar, todos os profissionais que integram a ULS de São José”, escreveu Rosa Valente de Matos, numa missiva a que o Observador teve acesso.
Ministério da Saúde visa Fernando Araújo: “Estabilidade” dos órgãos de gestão das ULS é “essencial”
A responsável sublinha que a demora nas nomeações “representa uma grave perturbação no desempenho deste órgão executivo [ou seja, o conselho de administração], que tem de assumir as responsabilidades inerentes à gestão da mais complexa unidade do SNS, que aglutina 8 hospitais, com 3 urgências externas, 9 centros de responsabilidade integrados e 39 unidades de cuidados de saúde primários, sem a cúpula do seu corpo clínico, ou seja, sem os seus respetivos Diretores Clínicos”.
Na carta, a gestora hospitalar lamenta os “constrangimentos que continuam a ser impostos e não [foram] resolvidos pela tutela anterior” e pede a Ana Paula Martins que “promova junto da Direção Executiva a conclusão dos procedimentos de nomeação dos diretores clínicos da ULS de São José”.
Ao que o Observador apurou junto de fonte hospitalar, a ministra da Saúde levou ao tema à reunião com o diretor-executivo do SNS — que decorreu no dia 3o de abril, em Lisboa — e instou Fernando Araújo a proceder às nomeações dos responsáveis clínicos da ULS, o que, até à data da publicação desta notícia, ainda não ocorreu.
Questionado sobre o tema pelo Observador, o Ministério da Saúde refere apenas que a “nomeação do Diretor Clínico de todas as ULS é uma competência, estabelecida em lei do Orçamento, cometida à Direção Executiva do SNS” e que “é entendimento do Ministério da Saúde que a estabilidade dos órgãos de gestão de todas as ULS deve ser entendida com uma premissa essencial para o seu bom funcionamento”.