Foi no seu habitat natural que Isabel Jonet nos recebeu, no seu gabinete no Banco Alimentar, em Lisboa. Numa manhã atarefada, com muitos jovens voluntários a preencher o local, a conversa decorreu entre o barulho das máquinas e da comida a ser transportada. Habituada a pensar nos outros, e sempre de olhos postos nas suas necessidades, é de sorriso fácil e gargalhada pronta que recebe a primeira pergunta: Quem é Isabel Jonet?
“Então, isso já sabe”, foi a sua primeira resposta, mas rapidamente a descrição se estendeu: “Sou mãe de família, avó agora, licenciada em Economia pela Universidade Católica, e o que faço em cada dia é gerir instituições de solidariedade social, seja o Banco Alimentar Contra a Fome de Lisboa, seja a Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome, seja a ENTRAJUDA, que fundei há quase 20 anos e que tenho imenso orgulho pelo trabalho que tem vindo a ser desenvolvido, em complemento com o trabalho dos Bancos Alimentares. Consagro muito do meu tempo à gestão, mas à gestão com amor e com sentido. Estou aqui sentada, no Banco Alimentar, há 29 anos e tenho tido experiências extraordinárias, tenho uma vida rica”.
Se o que nos traz aqui é o seu sentido de serviço público e a sua sensibilidade social, aliados a um percurso notável, não ficamos surpreendidos quando nos conta que a solidariedade surgiu na sua vida desde muito cedo, antes sequer do convite para presidir o Banco Alimentar. “Venho de uma família em que somos 5 irmãos e os meus pais, desde cedo, nos educaram tendo uma participação cívica. E o voluntariado faz parte da minha vida desde os 12 anos, com essa idade visitava crianças doentes no Hospital de Santana, na Parede, todas as férias de verão”, conta, acrescentando: “Fiz isto durante vários anos e desde essa altura que sempre tive um trabalho voluntário. Vivi oito anos em Bruxelas e mesmo durante esse período fiz voluntariado. Eu costumo dizer que o voluntariado faz parte de mim e eu sinto que o voluntariado me completa. Sempre conjuguei uma atividade profissional, desde que trabalho, com uma atividade voluntária. Quando cheguei ao Banco Alimentar, vim aqui oferecer-me como voluntária e disponibilizar algum tempo, e nunca pensei que, 29 anos depois, trabalharia em exclusivo como voluntária e ligada a tantas instituições de solidariedade social. Hoje em dia, eu diria que sou uma profissional voluntária”.
Desde 1993 a trabalhar em regime de voluntariado no Banco Alimentar, este foi um casamento feliz que se deu quando Isabel volta de Bruxelas, com o intuito de acompanhar os seus filhos no ensino português. Sempre com a vontade de conciliar um trabalho profissional com um trabalho de voluntariado, é assim que se vem apresentar a um Banco Alimentar que estava a dar os seus primeiros passos. Hoje, passados quase 30 anos, todos os dias se senta no seu gabinete assumindo os cargos de Presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome, Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome de Lisboa e Membro do Conselho de Administração da Federação Europeia dos Bancos Alimentares.
Mas se há algo que não mudou com o passar destes anos, é o amor que sente pela causa e a vontade que tem de fazer mais e melhor. “O Banco Alimentar tem uma coisa que mexe muito comigo que é a luta contra o desperdício”, afirma, de sorriso nos lábios e orgulho no peito, explicando-nos de seguida o que se significou a sua entrada nesta instituição: “O Banco Alimentar era muito pequenino, na altura apoiava 16 instituições, e aquilo que eu fiz aqui foi um modelo de gestão que é hoje o modelo seguido no resto da Europa. É um modelo de gestão de uma instituição de solidariedade social, mas que se baseia naquilo que é a gestão profissional de qualquer empresa de logística. Porque os Bancos Alimentares são empresas de logística da caridade, ou seja, são empresas que são instituições de solidariedade social e que, com recurso a trabalho voluntário, lutam contra o desperdício de bens. Aquilo que fazemos é ser muito eficientes na angariação de alimentos, mas depois também temos de ser muito eficientes na sua distribuição. Hoje já há 21 Bancos Alimentares em Portugal congregados na Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares, que ajudam a levar alimento a 4% da população portuguesa, mas o mais extraordinário é que, à volta de 70% destes alimentos teriam como destino provável a destruição, apenas por razões comerciais e tudo isto provoca grandes excedentes – seja na indústria, seja na distribuição. Aquilo que os Bancos Alimentares fazem, desde há 33 anos, é lutar contra o desperdício”.
E se há algo do qual se orgulha, entre muitas outras coisas, é o facto de cada vez mais o voluntariado ser uma coisa procurada por jovens. As grandes campanhas de recolha do Banco alimentar, a fase visível daquilo que é o Banco Alimentar e o seu trabalho, são um processo “pelo qual a grande maioria dos jovens já passou. A grande maioria dos jovens já foi voluntário no Banco Alimentar e isso é que é transformador. O Banco Alimentar leva uma mensagem aos jovens de que ser voluntário não é coisa de velhos, é coisa de novos que querem intervir na sociedade e que se podem divertir ao mesmo tempo que estão a intervir para que outros comam”, reforça Isabel Jonet, aproveitando a deixa para falar também da ENTRAJUDA, uma instituição criada por si, em 2004, seguindo o mesmo modelo de gestão anteriormente falado: “A ENTRAJUDA o que faz é, com base no mesmo modelo de gestão, levar gestão às organizações do setor social, mobilizando voluntários qualificados. Lançámos a Bolsa do Voluntariado para mobilizar estas pessoas e é hoje o maior site português de voluntariado. É um casamento entre quem precisa de voluntários e quem quer ser voluntário. E isto é muito gratificante. É uma vida cheia e com uma remuneração muito superior a qualquer salário que eu pudesse ter tido”, remata.
Porque falar sobre o Banco Alimentar não é possível sem se falar em voluntariado, na hora de perceber a posição do país em relação a esse tema, Isabel Jonet não tarda em reforçar que somos, de facto, um país muito solidário. Para a Presidente, o caminho dos Bancos Alimentares neste tema tem sido “inegável” e muito tem contribuído para esta noção de responsabilidade social. “Acho que em Portugal há muito voluntariado. Mas não é contado. Muitas pessoas têm intervenção cívica e cidadã, e não se sabe. Não é preciso só ter voluntariado na área social, há imenso voluntariado no desporto, com o ambiente, há muitos bombeiros voluntários…e há imenso voluntariado informal, muito voluntariado que as pessoas nem sabem bem classificar. As estatísticas dizem que Portugal é um dos países da Europa onde há menor taxa de voluntariado, eu não posso acreditar nisso, porque eu vivo o voluntariado há muitos anos”, complementa, acrescentando em seguida que os portugueses são um povo “que gosta de participar quando confia. E, portanto, o que temos de fazer hoje é criar os mecanismos que sejam adequados a gerar essa confiança para que não se perca esta generosidade. Porque, efetivamente, hoje as pessoas têm vidas mais difíceis e encaixar o voluntariado é mais complicado. Temos de aproximar as causas das pessoas”.
O percurso de Isabel Jonet é longo, mas se há algo que a trouxe até aqui foi a sua determinação e a vontade de fazer mais e melhor. E é precisamente com ela em mente que nos fala dos objetivos para o futuro, afirmando que ainda há muito por fazer. “O meu maior desejo, e as pessoas riem-se, é que o Banco Alimentar possa fechar”, declara, com bastante convicção, explicando em seguida que isso “significaria que não há pessoas que precisam de ajuda para comer. Porque precisar de ajuda para comer é terrível. Nós não deveríamos precisar de ajuda para comer porque seríamos autónomos na nossa vida. Eu tenho sempre esta ambição de cortar os círculos de pobreza e acho que só os conseguimos cortar com mais riqueza, melhor emprego, emprego mais bem pago, mas também com muita educação, educação de qualidade que faça com que os jovens possam aceder a empregos mais bem remunerados. Eu acho que ainda há muitos desafios. Naquilo que me toca, eu gostava de ter um setor social muito organizado, muito eficaz e muito eficiente”.
É caso para dizer: percurso digno de Prémio.
Dona de um percurso notável, não é de admirar que Isabel Jonet tenha sido a personalidade distinguida na 20ª edição dos Prémios Dona Antónia. Focados em distinguir mulheres empreendedoras e cujo impacto social seja de relevo, foi também em Isabel que encontraram mais uma “Ferreirinha”.
“Eu, ao longo da minha vida, já recebi muitos prémios. E todos os prémios são um momento mágico, porque não estamos à espera. Mas todos os prémios que recebi, recebi em nome do Banco Alimentar e entreguei ao Banco Alimentar. Com exceção de dois prémios que guardo para mim. E um deles foi o Prémio Dona Antónia”, começa por dizer, na hora de falar sobre a receção deste prémio, continuando em seguida: “Gostei imenso de receber o Prémio Dona Antónia. Foi uma cerimónia linda, nas caves da Sogrape, mas é um prémio que nos dá muita responsabilidade, porque no fundo é um prémio que pretende homenagear uma senhora que foi completamente à frente e inovadora no seu tempo, numa região do país muito difícil, onde ela gerou riqueza através de emprego, fazendo com que muitas pessoas pudessem ter trabalho. Este prémio é muito quentinho para o coração, é muito familiar, muito afetivo. Representa realmente um compromisso grande para com aquilo que fazemos, mas também com aquilo que podemos fazer, inovando”.
É entre recordações do dia em que recebeu o prémio, mas também da importância que ele tem na sua vida, que nos conta um pequeno episódio: “Quando o Dr. Fernando Guedes morreu, eu achei que tinha de reunir todas as Donas Antónias e fazer uma homenagem. Consegui reunir, em 3 dias, as assinaturas de todas as mulheres que tinham sido Dona Antónia, que estavam ainda vivas, para o fazer. E isso foi muito bonito. Quisemos expressar uma gratidão à Sogrape por terem mantido o Prémio Dona Antónia, homenageando e destacando mulheres que, seguindo o caminho da Dona Antónia, marcaram de alguma forma a sociedade e as comunidades nas quais vivem”. Sendo este um prémio inspirado numa mulher, mas atribuído a várias, é caso para dizer que tem um gosto especial. Não só para Isabel, como para a condição da mulher, no geral. “Penso que aquilo que se faz em cada dia, por qualquer um de nós, é que contribui para o empoderamento feminino. Quando uma mulher tem filhos, desde que os começa a educar, sejam homens ou mulheres, tem de os educar numa igualdade de oportunidades e numa igualdade total – de competências, de capacidades, de obrigações, de deveres, de direitos. Acho que prémios deste tipo reconhecem aquilo que é feito para promover essa igualdade”, remata.
Com a conversa a chegar ao fim, aproxima-se a pergunta que mais risos despoleta. Tendo noção do desafio, mas nunca deixando de o enfrentar e concluir com sucesso, Isabel Jonet completa a frase Para se ser considerada uma “Ferreirinha” é preciso ser…, com duas palavras simples, mas que dizem tudo: “Inovadora e Corajosa”. E quando as diz, fala de Dona Antónia, mas também de si, como se de um espelho se tratasse.