A medida tutelar que o Ministério Público propôs ao Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão poderá ser de difícil aplicação e até cair na “ilegalidade”, segundo juristas contactados pelo Observador. O procurador que assina as alegações do caso, que deviam ter sido analisadas esta terça-feira, quer que os dois alunos impedidos pelos pais de frequentarem a disciplina de Cidadania fiquem à guarda da escola durante o período escolar. Uma medida híbrida e até “bizarra”, na opinião dos mesmos juristas, uma vez que a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Risco prevê a confiança das crianças em pessoa idónea — na prática, a sua entrega à guarda de um adulto considerado idóneo — ou a uma instituição, e não este aparente meio termo.
Sem comentar o caso concreto e falando apenas na medida tutelar proposta, o advogado da área de família Nuno Cardoso-Ribeiro questiona, em declarações ao Observador, se esta medida tem mesmo “cobertura legal”. É que, segundo a lei, as medidas a aplicar a um menor que esteja numa situação de risco passam por vários patamares: primeiro, procura-se dar (ou reforçar) o apoio aos pais do menor e, quando este não é possível, procura-se um outro familiar; só depois dessas duas etapas se ponderar a entrega da criança a uma pessoa idónea e, finalmente, no limite, o acolhimento familiar ou numa instituição.
Nas alegações deste processo, assinadas pelo procurador António Vinagre de Sousa, e depois de não ter conseguido chegar a um acordo com a família destes menores, o Ministério Público pede ao tribunal que confie as crianças a uma pessoa idónea, neste caso a escola, nas pessoas do seu diretor Carlos Alberto Teixeira e “da interlocutora de primeira linha, Dra. Marta Silva”, lê-se no documento.
Mas, para Nuno Cardoso-Ribeiro, a escola — ou seja, uma pessoa coletiva —, não é uma “pessoa idónea”, muito menos pode ter estabelecido uma relação afetiva com os menores, como a lei impõe. Já os seus responsáveis, a serem considerados como as pessoas idóneas, terão também que aceitar esta responsabilização, que na prática pode ser uma decisão difícil. “Nunca vi semelhante proposta do MP ou que esta pessoa idónea fosse uma instituição, qualquer que ela fosse. Não conheço nenhum precedente neste sentido, parece-me que não tem cobertura legal. Talvez se fosse uma medida de acolhimento mitigada pudesse ser feita nestes moldes”, afirma. Uma juíza contactada pelo Observador, que preferiu não ser identificada, admitiu desconhecer que esta medida alguma vez tenha sido aplicada.
Para António Vinagre de Sousa, era impossível aplicar qualquer outra medida. Isto porque, alegou o procurador, uma medida de apoio junto dos pais nunca seria “efetivável [possível de concretizar], porque os perigos foram criados pelos próprios pais e ‘impingidos’ aos jovens”, escreve. Também o apoio junto de outro familiar não seria possível porque, acusa Vinagre de Sousa, “nenhum familiar, e trata-se uma família grande e conhecida na sociedade, se prontificou a mediar a situação”, avança o magistrado do Ministério Público, para dar depois o seu ponto de vista sobre essa impossibilidade: “Talvez por conhecerem o feitio contumaz do progenitor.”
Carlos Alberto Teixeira e Marta Silva serão assim, do seu ponto de vista, as “pessoas/entidades que não pertencem à família dos jovens e, assim, não estão vinculadas a eventual subserviente representação”, acrescentando que eles já desenvolveram uma relação afetiva com os dois jovens. O MP pediu também que estes dois responsáveis sejam ouvidos em tribunal. A medida de confiança dos jovens a pessoas idóneas seria, assim, “a única medida que se apresenta como do superior interesse dos jovens e com potencial de, definitivamente, afastar a situação de perigo existencial dos mesmos”, lê-se nas alegações assinadas em abril e que seriam apreciadas esta terça-feira.
Neste dia, estava previsto o arranque do debate judicial do caso, mas o juiz responsável pelo processo decidiu suspendê-lo. Segundo avançou uma fonte do Conselho Superior da Magistratura ao Observador, o argumento para interromper o debate judicial prendeu-se com o facto de, neste momento, as escolas se encontrarem já em pleno período de férias letivas, logo, as crianças não estão em risco. Assim, só em setembro se poderá perceber se os pais vão continuar a impedi-los de frequentar as aulas de Cidadania, obrigando o tribunal a tomar uma medida de promoção e proteção — que poderá ser reavaliada e não ser definitiva. Para já, porém, no próximo ano letivo, apenas um dos filhos de Artur Mesquita Guimarães terá a disciplina de Cidadania no plano curricular.
Ministério Público acusa pais de “coerção emocional”
Nas alegações, a que o Observador teve acesso, o Ministério Público acusa os pais dos dois menores de “fazer justiça por mãos próprias”, lê-se, “atribuindo-se a si mesmos um engendrado direito de objeção de consciência ao poder executivo ao rejeitarem orientações, regulamentos e especificidades escolares sem consideração pela competência profissional de professores e comunidade escolar e seus direitos, também, atingindo-os de forma agressiva e ameaçadora, inclusive de procedimento criminal”. Artur Mesquita Guimarães chegou a ameaçar com processos crime individuais todos os professores que desobedecessem à sua vontade.
O Ministério Público alega mesmo que, se não concordam com o plano curricular, os pais podiam mesmo ter optado pelo ensino doméstico. “A formação, educação ou desenvolvimento dos jovens não ficam devidamente asseguradas apenas com o ensino parental”. Se a sua intenção fosse apenas o ensino parental, “podiam ter optado pela modalidade de ensino doméstico”, sugere o procurador. E conclui, por isso, que, ao serem impedidos de frequentar esta unidade curricular, os alunos poderão ser vítimas de “maus tratos psíquicos”, poderão “não receber os cuidados de afeição adequado às suas idades e situação pessoal” e “serem obrigados a atividades inadequadas à sua idade”. António Vinagre de Sousa fala mesmo numa possível “coerção emocional”, lembrando que estas crianças até já foram vítimas de bullying nas redes sociais devido à decisão dos pais.
Em resposta, o advogado que representa pro bono Mesquita Guimarães, João Pacheco Amorim, lembrou que os relatórios sociais feitos aos dois menores não apontam nada disso. Nesses relatórios, as técnicas concluem que ambos os pais “apresentam adequadas condições socioeconómicas e garantem a satisfação das principais necessidades dos jovens, proporcionando um acompanhamento parental e uma dinâmica familiar coesa, estruturada em termos de definição de papéis, rotinas hábitos de trabalho, afetiva”, recusando qualquer perigo. Os menores “correspondem de forma positiva”, estando a par do processo que está a decorrer e mostrando-se de acordo com a vontade do pai, sustentam as técnicas que conduziram a avaliação aos dois jovens. Ténicas que notaram, também, numa visita à casa de família, que os menores têm acesso “às principais fontes e meios atuais de informação/comunicação e entretenimento/lazer e convivem com uma pluralidade de realidades, desde logo pelo facto de frequentarem um estabelecimento do ensino público”.
João Pacheco Amorim alega que não existe perigo algum e apela também ao Tribunal de Família e Menores para que não tome nenhuma decisão sem que a posição do Tribunal Administrativo seja conhecida. É neste tribunal que está ainda por tomar uma decisão sobre o processo escolar dos dois jovens.
Como tudo começou
O caso nasce a 10 de outubro de 2018, quando o pai destes menores enviou uma carta ao diretor da escola E.B. 2,3 Júlio Brandão, do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Banco, onde referia que, nesse ano letivo 2018/2019, os progenitores não autorizavam o filho a ter qualquer aula, ação ou aconselhamento relativos à disciplina de “Educação para a Cidadania”. “Não autorizamos a participação do nosso filho nas atividades do programa PRESSE (Programa Regional de Educação Sexual em Saúde Escolar,)”, tal como não autorizavam que qualquer profissional, mesmo que psicólogo, se aproximasse dos filhos para qualquer tipo de “acompanhamento” ou “aconselhamento” psicológico que incidisse sobre essas temáticas”, lia-se na carta. Os pais solicitavam, também, que lhes fosse prestada informação sobre qualquer atividade de “enriquecimento curricular” prevista para as aulas, como filmes, documentários, reportagens, visitas de estudo. Em caso de desrespeito pela posição que expunham na carta, os pais ameaçavam com um procedimento criminal.
Os pais sustentavam no seu pedido que as matérias lecionadas naquela disciplina traduziam uma “programação ideológica” por parte do Estado que conflituava com o direito e dever de educação e com a liberdade de consciência, de religião e culto, escreve o advogado nas alegações entregues ao tribunal, a que o Observador teve acesso.
Seguiu-se uma troca de correspondência, com a escola a dizer que não podia autorizar a não frequência da aula, até que, em dezembro de 2019, uma equipa técnica do agrupamento e as diretoras de turma dos dois alunos se reuniram com Artur Mesquita Guimarães. Foi, aliás, nesta reunião que o pai foi informado de que o caso seria comunicado à Comissão de Proteção de Menores.
Já em janeiro de 2020, um despacho do secretário de Estado da Educação, agora ministro, viria a decretar a obrigação de os alunos frequentarem então um Plano de Recuperação das Aprendizagens referentes aos conteúdos ministrados na disciplina para assim poderem transitar de ano. Mas Mesquita Guimarães não concordou com os moldes desses trabalhos e, em julho desse ano, enviava ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga uma providência cautelar para suspender os despachos do Agrupamento de Escolas e do próprio secretário de Estado. Desde então, têm-se sucedido providências cautelares em nome dos dois alunos, para que vão transitando de ano até o tribunal decidir se eles são efetivamente obrigados a frequentar a disciplina ou não.
Por agora, o caso continua sem um desfecho deste tribunal, assim como do tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão, onde esta terça-feira se deslocou Mesquita Guimarães, acompanhado do advogado e dos filhos.
Pai também discorda da disciplina de Religião e Moral
Ao Observador, Mesquita Guimarães queixa-se de a escola estar a “querer impor um conceito de família que não corresponde à [sua] moralidade. Que moralidade tem a Comissão de Proteção para vir atrás de nós?”, questiona, desdobrando-se em elogios ao desempenho dos filhos, que estão de tal forma integrados “que até já foram eleitos delegados”. “Sou da mesma opinião em relação à disciplina de Religião e Moral”, afirma, justificando que estes temas são da responsabilidade dos pais e da educação que devem dar aos filhos.
Para a juíza contactada pelo Observador, este caso até podia ser comparado com aqueles em que em causa está a Religião, como os das famílias testemunhas de Jeová que impedem os filhos de receberem transfusões de sangue. Nestes casos, os hospitais podem ficar momentaneamente com a tutela de menores para fazer a transfusão de sangue, o que também tem que ser decidido por um tribunal. “No entanto, aqui está em causa o direito à vida”, ressalva a magistrada.
Em 2017, num processo em que se avaliava uma questão mais abrangente, relativa à frequência da escola — e não de uma única cadeira —, o Tribunal de Portalegre teve uma decisão em sentido absolutamente contrário relativamente a uma aluna de etnia cigana. Neste caso, a juíza responsável pelo processo decidiu que a menina de 15 anos, de etnia cigana, já a frequentar o 7º ano, podia abandonar a escola até para poder ajudar a mãe, que estava doente. “Possui as competências escolares básicas, por necessárias, ao desenvolvimento da sua atividade profissional” e à “integração social no seu meio de pertença”. E não está “minimamente motivada” para continuar na escola, lia-se na decisão em que a magistrada afirmava mesmo que “o desenvolvimento da personalidade e capacidades dos jovens, atualmente, para o prosseguimento de uma vida digna, adequada às regras sociais e jurídicas, se molda, por vezes, por caminhos diversos e igualmente recompensadores que não simplesmente a frequência da escolaridade até à maioridade, como precisamente sucede neste caso”.
O Observador falou com o Ministério da Educação, que disse não ter intervenção no processo de proteção dos menores, tendo apenas no processo administrativo. Já a Comissão da Proteção de Menores, também em resposta por e-mail, diz apenas que o caso está nas mãos do Ministério Público.