Índice
Índice
“Odeio-os. São bastardos e degenerados. Desejam a nossa a morte, a morte da Rússia. Enquanto for vivo, tudo farei para que desapareçam.” Esta é uma das frases fortes que Dmitry Medvedev proferiu nos últimos meses e que o tem colocado de novo nas manchetes dos jornais, o que não acontecia há muito tempo. O ex-Presidente russo não tem poupado nas críticas: “Não há sequer rasto de figuras políticas ao nível de Helmut Kohl, Jacques Chirac ou Margaret Thatcher na Europa” foi outra das frases polémicas recentes. Bem como o aviso de que “os quatro cavaleiros do Apocalipse estão a caminho”.
Após a invasão russa da Ucrânia, Medvedev surgiu na dianteira como um dos porta-vozes mais agressivos do Kremlin. Uma postura que contrasta em muito com a imagem que tinha dos tempos em que ocupou a presidência (2008-2012) e em que foi primeiro-ministro (2012-2020). Caracterizado como um dos representantes da ala mais liberal do Kremlin, Dmitry sempre foi para muitos russos o pequeno “Dimon”, uma alcunha pejorativa baseada na sua baixa estatura e que ilustrava a sua falta de peso político. “Olá a todos, agora estou no Twitter e esta é a minha6 primeira mensagem”, escreveu Medvedev no primeiro tweet que enviou — gralha incluída —, a partir da sede da empresa, em Sillicon Valley. O momento foi ridicularizado por muitos russos na internet.
O “pequeno Dimon”, contudo, parece ter crescido. Agora, é o primeiro a reforçar a retórica dura do Presidente Vladimir Putin contra a Ucrânia e o Ocidente e as suas posições mais liberais parecem ter ficado na gaveta. O que aconteceu para explicar a transformação de um homem que, acreditavam muitos no Ocidente, poderia reformar a Rússia? Quem é, realmente, Dmitry Medvedev e que lugar ocupa no Kremlin?
O “rececionista” que trabalhava ao lado de Vladimir Putin
Dmitry pode ser Dimon para alguns, mas para Vladimir Putin sempre foi “Dima”. O diminutivo informal ilustra bem a proximidade entre os dois, que se conhecem desde 1990. Isto apesar de serem muito diferentes. Putin é um antigo agente do KGB, que passou a infância envolvido em lutas de rua. Medvedev sempre foi um bom aluno, calmo, estudioso, que passava os tempos livres a ler livros e a ouvir música (Pink Floyd e Deep Purple, influências ocidentais nada bem vistas dentro da União Soviética).
“Os rapazes geralmente querem ser pilotos de avião ou de carros. Ele queria ser advogado. Raramente o víamos a brincar com outros rapazes na rua”, chegou a recordar a sua primeira professora, Vera Smirnova.
Dmitry tornou-se de facto advogado, depois de anos como estudante a tirar excelentes notas. Em 1990, o seu antigo professor e à altura líder do governo camarário de Leningrado (atual São Petersburgo), Anatoly Sobchak, convidou-o para trabalhar no seu gabinete. Um mês depois, Putin era também convidado.
Os dois homens rapidamente se tornaram amigos, com Medvedev a passar “vários fins-de-semana na dacha de família de Putin”, segundo conta o jornalista Marc Bennetts no livro Kicking the Kremlin (sem edição em português). Mas os dois rapidamente tiveram percursos profissionais muito diferentes: enquanto Sobchak promovia Putin, que passou a liderar o Comité de Relações Externas da cidade, Medvedev mantinha-se quase invisível. “Ninguém lhe prestava muita atenção. Tinha 25 anos e o trabalho dele era atender as chamadas de Sobchak”, descreveu em tempos ao Le Monde Boris Vychnevski, da oposição.
Ideia confirmada ao Observador por Vladimir Geldman, professor de Ciência Política na Universidade de Helsínquia que, à altura, estava envolvido nos movimentos de oposição a Sobchak em São Petersburgo: “Medvedev começou a sua carreira política como um rececionista no gabinete de Anatoly Sobchak. De certa forma, ele continua a ser apenas um rececionista e penso que muitos russos consideram precisamente que é esse o seu papel.”
Oleg Ignatov, analista do Crisis Group em Moscovo, destaca, porém, outro ponto sobre esses tempos: “Putin conheceu Medvedev e percebeu que ele era um empregado leal. Trabalharam juntos e Putin percebe o que pode esperar dele. Conhece as suas forças e as suas fraquezas”, conta ao Observador. Uma das suas forças para Putin era precisamente a tal lealdade. Essa ficou expressa pelo trabalho legal de Medvedev para proteger Sobchak de uma acusação de desvio de fundos levantada pelo parlamento local.
Trabalho feito sempre de forma discreta e na sombra, nunca impressionando nem perdendo a imagem de “porteiro”. Quando Vladimir Putin chegou à presidência da Rússia, no ano 2000, levou Medvedev consigo para a sua equipa. Aí, não impressionou os colegas: o conselheiro económico Andrei Illarionov comentou com o jornalista Marc Bennetts que, desses tempos, não se lembra de uma única vez em que Medvedev tenha expressado uma opinião sobre “qualquer ideia, qualquer projeto, qualquer movimento, qualquer ação”.
Ideia reforçada por Mikhail Zygar, experiente jornalista político russo, que, no livro All The Kremlin’s Men (sem edição em português), volta a destacar a “lealdade” do político: “Medvedev parece um aluno diligente. Quando o dever lhe exige que diga coisas com as quais não concorda, ele profere as palavras como se as tivesse decorado para um exame. Até se consegue expandir sobre um tópico que ache profundamente desagradável.”
Hambúrgueres com Obama e divergências sobre a Líbia. Um Presidente liberal?
Em 2008, Dmitry Medvedev teve a primeira grande oportunidade para brilhar. Com o segundo mandato presidencial de Putin a chegar ao fim, o antigo agente do KGB estava constitucionalmente impedido de se recandidatar. Foi então que Dima foi apresentado como candidato do partido Rússia Unida à presidência. Putin passou a assumir o cargo de primeiro-ministro.
Para muitos russos e até alguns líderes ocidentais, este representava um possível momento charneira. Medvedev era considerado um dos membros mais liberais do Kremlin e, quando assumiu a candidatura, tomou várias ações que pareciam indiciar isso mesmo. “A liberdade é melhor que a não-liberdade”, disse logo na apresentação do seu projeto. Medvedev defendia a economia de mercado e a independência judicial.
Já no poder, deu sinais de aproximação ao Presidente norte-americano, deixando-se fotografar em amena cavaqueira com Barack Obama a comer um hambúrguer na sua visita aos Estados Unidos. Os Estados Unidos resumiram o encontro falando em “excelentes discussões” e descrevendo Medvedev como um indivíduo “de olhos no futuro”.
O otimismo norte-americano não passava, porém, de “uma ilusão e de um mal-entendido”, resume Vladimir Geldman. A aproximação ao Ocidente teimava em não se confirmar e as reformas internas pouco avançavam. Na Rússia, consolidava-se a ideia de que Medvedev até podia ocupar o cargo de Presidente, mas na verdade não passava de um fantoche nas mãos de Putin. Uma piada passou a circular: “Medvedev senta-se no lugar de condutor de um carro novo e olha em volta. Não há volante. Vira-se para Putin, intrigado, e pergunta ‘Onde está o volante?’ Putin tira um comando à distância do bolso e diz ‘Dima, não sabias? Eu é que vou a conduzir’”.
O exemplo máximo de que Medvedev não tenciona levantar ondas nem ir contra Putin surgiu em 2003, com o julgamento do oligarca caído em desgraça Mikhail Khodorkovsky: o fundador da petrolífera Yukos acabou condenado a uma pena de prisão num campo na Sibéria, por alegada corrupção, depois de ter ousado envolver-se na política. A independência judicial que Medvedev tanto desejava não parecia ainda ter chegado.
Para Geldman, este e outros casos demonstram que Medvedev nunca foi independente de Putin, embora tivesse tido a oportunidade de ouro para cortar com o líder. “Ele tinha poderes constitucionais amplos, podia ter demitido Putin a qualquer altura. Mas nunca o fez. Manteve-se leal e essa lealdade foi recompensada”, afirma. Não por acaso, diplomatas norte-americanos descreviam à altura Medvedev como Robin, enquanto Putin permanecia o verdadeiro Batman.
Mas como reconciliar essa postura com as diferenças ideológicas que pareciam separar os dois homens? Para Oleg Ignatov, isso explica-se pelo facto de as convicções de Medvedev não serem profundas: “Vladislav Surkov, o homem responsável pela política interna russa à altura, ajudou Medvedev a criar uma identidade diferente da de Putin. Era a identidade de que ele precisava para se afirmar como Presidente: um político moderno, com ideias liberais para os padrões russos. Mas não era real. Era uma imagem artificial.”
Apesar disso, à medida que o mandato se aproximava do fim, o político ia tentando demonstrar que tinha algum distanciamento do seu primeiro-ministro. Após a morte de Muammar Khadafi, Medvedev mostrou-se favorável à intervenção ocidental na Líbia, ao contrário de Vladimir Putin. No ano seguinte, defendeu a libertação dos membros da Pussy Riot. Contudo, não passavam de tentativas para, segundo Oleg Ignatov, construir a tal “imagem artificial diferente da de Putin”. E em particular, no caso da Líbia, para “provar a Putin que conseguia obter resultados com os norte-americanos e que, por isso, merecia um segundo mandato”.
A estratégia falhou. Ainda antes do final do mandato, Vladimir Putin anunciou que seria a sua vez de regressar à presidência. O momento ficou marcado pelas vaias do público.
Não porque Medvedev fosse extremamente popular. Na verdade, ao Presidente faltava uma gravitas como a de que Putin gozava. Na internet, as piadas com o Presidente repetiam-se, como a alcunha homofóbica de “iPedik”, a propósito do iPad que Medvedev usava habitualmente. As gaffes recorrentes — como quando sugeriu aos professores que deixassem o ensino e abrissem negócios para poderem ganhar mais — não ajudavam. Mas muitos russos estavam dispostos a fechar os olhos a esses problemas se Medvedev ousasse fazer frente a Putin. O facto de ter acatado a decisão e aceitado ceder o lugar só fez com que passasse a ser ainda mais desrespeitado. “As pessoas passaram a vê-lo como fraco e os russos gostam de se rir de líderes fracos. Hoje em dia, ninguém leva Medvedev a sério”, aponta Ignatov.
Por outro lado, com essa decisão, Medvedev assegurou a sua sobrevivência. “Abdicar do poder é a maior forma de lealdade na Rússia”, acrescenta o analista do Crisis Group. “É difícil esquecer isso.” Putin não esqueceu. Mas isso também não significa que tenha recompensado amplamente o amigo Dima daí para a frente.
A nova retórica agressiva: um instrumento para sobreviver — e prosperar — dentro do Kremlin
Até chegar à presidência, ninguém sabia que Dmitry Medvedev era um homem de fé. “Ninguém lhe tinha ouvido qualquer palavra sobre a religião. Sempre esteve muito longe disso”, confessou à edição russa da BBC um antigo colaborador. “Não falava sobre isso, nem sequer de um ponto de vista espiritual ou cultural”, acrescentou outro. Com a subida ao poder, porém, começou a abordar o tema, contando que tinha sido batizado em adulto, aos 23 anos. “Marcou o início de uma nova vida para mim”, revelou numa entrevista em 2008.
Num país onde a Igreja Ortodoxa tem assumido cada vez mais relevo e está intrinsecamente ligada ao poder político, Dmitry Medvedev não teve problemas em subitamente abraçar o tema da religião. Da mesma forma que, o homem que em tempos defendia uma aproximação ao Ocidente, hoje ataca sem reservas os líderes europeus. Sinais que para Oleg Ignatov ilustram bem o seu caráter: “Basta olhar para as coisas que Medvedev diz hoje em dia para perceber que ele é um conformista”.
As declarações de Medvedev alinhadas com a lógica de Putin face à Ucrânia não são exatamente novas. Em 2014, aquando da Revolução da Maidan, Medvedev defendeu a legitimidade do Presidente Viktor Yanukovich e alertou que o processo iria resultar “em derramamento de sangue”. Já em 2021, não teve problemas em invocar as origens judias de Volodymyr Zelensky para dizer que só tornavam pior as posições “nazis” adotadas pelo Presidente ucraniano.
Agora, após o início da guerra em fevereiro deste ano, Medvedev subiu ainda mais a parada. Uma atitude clara de “sobrevivência política”, diz Vladimir Geldman: “Medvedev está a tentar ser mais radical do que os radicais do Kremlin, mais papista que o Papa”.
Uma atitude ainda mais necessária para reafirmar a sua lealdade a Putin num momento em que surgem declarações anti-guerra como as de Arkady Dvorkovich, seu antigo conselheiro. E em que o próprio Medvedev está relegado para um lugar secundário, como vice-presidente do Conselho de Segurança Nacional, não tendo sequer sido autorizado a concorrer nas eleições legislativas como deputado — apesar de formalmente ser o líder do Rússia Unida, o partido de Putin.
O objetivo é, como no passado, a sobrevivência política. E com cada declaração bombástica que reverbera nos media internacionais, Medvedev mostra ao Kremlin que é leal e que tem capacidades. “É um homem ambicioso e acredita que tem capacidade de competir pelo poder”, resume Oleg Ignatov. “Medvedev quer mostrar a Putin que continua a ser parte da equipa e que ainda é útil. Nem que para isso tenha de se colar totalmente às políticas de Putin.”