Era grande a expectativa para ouvir a secretária do antigo secretário de Estado da Saúde Lacerda — a pessoa que contactou o Hospital de Santa Maria para marcar a consulta para as gémeas luso-brasileiras. Na audição desta sexta-feira, Carla Silva procurou desmontar a tese do ex-governante de que não tinha dado indicação à secretária para que a consulta fosse marcada. Em diversos momentos da audição, a ex-secretária de Lacerda Sales foi taxativa a sublinhar a ideia de que nunca agiu — nem poderia ter agido — por iniciativa própria: “Não fiz nada que o senhor secretário de Estado da Saúde não soubesse ou não me tivesse pedido.”
Durante duas horas e meia, Carla Silva visou o antigo secretário de Estado de forma direta, acusando Lacerda Sales de estar a fazer dela “um bode expiatório” no caso e de levantar “suspeitas” sobre a atuação dela no processo. Depois de a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde ter concluído que foi Lacerda Sales a instruir a secretária para marcar a consulta, na audição desta sexta-feira, Carla Silva veio reiterar essa versão dos factos — as contradições entre as duas versões foram de tal ordem que ainda a audição ia a meio e já o Chega anunciava que iria forçar uma segunda ida à CPI do ex-secretário de Estado.
Estas são as cinco frases que marcaram a audição e que poderão ter comprometido ainda mais a posição de Lacerda Sales em todo este caso.
“[Sinto-me] um bode expiatório. Temos um ex-secretário de Estado da Saúde a negar qualquer intervenção neste caso e a levantar suspeições em relação a mim.”
Foi já no final da primeira ronda de perguntas que a deputada do Bloco de Esquerda Joana Mortágua perguntou a Carla Silva se esta se sentia um bode expiatório no caso. Carla Silva concordou, acusando Lacerda Sales de levantar suspeições sobre si. “Temos um ex-secretário de Estado da Saúde a negar qualquer intervenção neste caso e a levantar suspeições em relação a mim, que era secretária do gabinete, supostamente de confiança. Sim, possivelmente [sou] bode expiatório”, respondeu.
Em causa estão as versões contraditórias dos dois intervenientes sobre de quem partiu a iniciativa de pedir ao Hospital de Santa Maria a marcação da consulta de Neuropediatria para as gémeas luso-brasileiras. Aos inspetores da IGAS, e agora no Parlamento, Carla Silva garantiu que foi Lacerda Sales a pedir-lhe que contactasse o hospital para marcar a consulta, algo que o ex-secretário de Estado negou quando foi ouvido pela IGAS, lembrando que Carla Silva já tinha trabalhado no departamento de Pediatria do Santa Maria — o que poderia justificar, segundo Lacerda Sales, que a ex-secretária já tivesse tido conhecimento do caso antes de ele chegar à secretaria de Estado.
“Sublinhe-se que foi a própria Diretora do Departamento de Pediatria que, no seu depoimento, referiu conhecer o percurso profissional da secretária, tendo esta exercido funções no seu departamento de Pediatria, bem como na Direção Clínica [do Santa Maria]. Não é questionável que a secretária pudesse ter qualquer conhecimento prévio sobre o caso?”, questionou Lacerda Sales, citado no relatório da IGAS. O ex-secretário de Estado sugere ainda que haveria uma intimidade entre Ana Isabel Lopes, a diretora de Pediatria daquele hospital, e Carla Silva.
“Atente-se na forma como a secretária se dirige à Diretora do Departamento de Pediatria, diga-se, ‘Cara Prof. Ana Isabel Lopes’, ou ‘Mais uma vez muito agradeço a sua preciosa ajuda!’. Qual o grau de intimidade entre as intervenientes? Já se conheciam anteriormente?”, questionou o ex-governante, deixando críticas à própria IGAS por esta entidade ter concluído que Carla Silva não tinha autonomia para proceder, por sua única e própria iniciativa, à marcação da consulta. “Qual o motivo para a Inspeção-Geral dar mais credibilidade ao depoimento da Secretária Pessoal que ao depoimento do Secretário de Estado da Saúde?”, perguntou ainda Lacerda Sales.
Já em junho, quando foi ouvido na CPI, o ex-governante voltou a descartar responsabilidades no caso. “A minha conduta não é suscetível de merecer qualquer tipo de censura”, afirmou. Terá sido a todas estas declarações que Carla Silva se referia quando disse sentir-se o “bode expiatório” no caso — uma expressão que, curiosamente, Lacerda Sales também utilizou na CPI, quando afirmou não “estar disponível para servir de bode expiatório num processo político e mediático”.
“Não fiz nada que o senhor secretário de Estado não soubesse ou não me tivesse pedido”
Uma ideia que Carla Silva tentou transmitir durante toda a audição foi a de não tomou qualquer iniciativa relacionada com o caso das gémeas Maîte e Lorena sem que António Lacerda Sales lhe tivesse pedido as diligências que fez — ou, pelo menos, e numa leitura que a ex-secretária procurou afastar, que este tivesse tido conhecimento das mesmas. Aqui, estão em causa essencialmente duas situações: o contacto com Nuno Rebelo de Sousa, de modo a recolher os dados das crianças, e o pedido de marcação da consulta feito junto do serviço de Pediatria do Santa Maria.
Carla Silva reafirmou na audição desta sexta-feira (que decorreu sem a presença da imprensa e sem captação da imagem da depoente, ainda que esta tivesse sido mostrada por breves dois segundos) que foi Lacerda Sales a fornecer-lhe o número telefónico de Nuno Rebelo de Sousa e a pedir-lhe para contactar o filho do Presidente da República, de modo a recolher junto deste os dados das crianças (como a identidade, a data de nascimento e o diagnóstico clínico), algo que fez. Segundo a ex-secretária pessoal de Lacerda Sales, o pedido surgiu logo depois da reunião entre o ex-governante e Nuno Rebelo de Sousa.
Mais uma vez, as versões são contraditórias. À IGAS, Lacerda Sales tinha garantido não ter pedido a intervenção de Nuno Rebelo de Sousa. Questionou mesmo a credibilidade do testemunho da ex-secretária, argumentando que não foi encontrado nenhum email em que Nuno Rebelo de Sousa forneça os dados pedidos sobre as crianças. “Nesse suposto email, existe alguma menção ao secretário de Estado da Saúde ou a algum pedido deste?”, questionou.
Já quanto ao contacto com o Hospital de Santa Maria, Carla Silva disse que foi também o ex-secretário de Estado a solicitar-lhe que contactasse aquela unidade hospitalar, com o intuito de marcar uma consulta para as gémeas, tendo Lacerda Sales tido conhecimento de que Carla Silva iria falar com a diretora do Departamento de Pediatria, Ana Isabel Lopes.
“Perante a ordem que recebi do senhor secretário de Estado, nunca me passou pela cabeça que houvesse alguma irregularidade”
Esta foi uma ideia repetida pelo menos três vezes durante a audição. Carla Silva garantiu que não se apercebeu na altura que as diligências que tomou para dar seguimento ao que diz ter sido “uma ordem” de Lacerda Sales pudessem configurar alguma irregularidade, uma vez que também estava no Ministério da Saúde há pouco tempo. “Estava no gabinete há 15 dias apenas, estava a perceber como funcionava um gabinete ministerial”, contou aos deputados.
A ex-secretária admitiu que, se fosse hoje, procederia de forma diferente, tendo em conta o que diz ser todo o contexto do caso. “Faria de forma diferente, sem dúvida, porque hoje tenho uma visão geral de tudo o que está envolvido neste processo”, sublinhou.
“Uma secretária não tem autonomia para fazer qualquer contacto sem conhecimento do secretário de estado”
Esta é uma questão central no caso. Teria a secretária pessoal de um gabinete ministerial (neste caso, o do secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales) autonomia suficiente para marcar uma consulta num hospital do SNS — fazendo tábua rasa das regras de marcação de uma primeira consulta hospitalar — sem o conhecimento ou autorização do secretário de Estado? À partida, não. Até porque é isso mesmo que reconhece o próprio secretário de Estado da Saúde, em resposta à IGAS.
“Uma secretária pessoal não dispõe de autonomia para a realização deste tipo de contactos, sem indicação superior nesse sentido”, afirmou. Tanto Lacerda Sales como a própria secretaria de Estado garantiram à IGAS que Carla Silva só teria essa autonomia se a mesma lha tivesse sido concedida, o que, dizem, não aconteceu.
Na audição desta sexta-feira, Carla Silva insistiu na mesma ideia: não tinha autonomia para pedir dados a Nuno Rebelo de Sousa nem para marcar a consulta no Santa Maria.
As versões de Lacerda Sales e de Carla Silva são contraditórias também neste ponto. Mantém-se, por isso a dúvida: terá Carla Silva agido à revelia ou a mando de Lacerda Sales?
“[Lacerda Sales] pretendia encontrar-se comigo. Não sei se no âmbito deste caso”
Uma das poucas novidades trazidas pela audição foi a de um encontro — que nunca chegou a ocorrer —, mas que terá sido pedido por Lacerda Sales a Carla Silva depois da divulgação pública do caso do alegado favorecimento às gémeas luso-brasileiras. Questionada sobre se sofreu algum tipo de pressão relacionado com a presença na comissão de inquérito, Carla Silva negou que tal tivesse acontecido.
E também em resposta à deputada da Iniciativa Liberal Joana Cordeiro, Carla Silva revelou que Lacerda Sales a contactou, “em novembro ou dezembro do ano passado” — já depois de o caso ser conhecido publicamente —, a propor-lhe um encontro. “Pretendia encontrar-se comigo para me fazer uma pergunta. Não sei se era no âmbito deste caso”, realçou. No entanto, esse encontro nunca aconteceu. “Eu tinha horários muito complicados, estava num gabinete ministerial, transmiti ao dr. Lacerda Sales que poderia ser no ministério, eu poderia descer e falávamos.”
Na resposta, o antigo governante disse que “já não era necessário” falarem. “Não sei qual era a questão que dr. Lacerda Sales me queria colocar, mas foi o único caso em que disse que queria falar comigo.”
No final, e visivelmente emocionada, Carla Silva agradeceu a todos os que acreditaram na sua versão dos acontecimentos e deixou uma garantia: “A verdade vence sempre.”