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Apesar de serem romances muito diferentes, os livros de Stênio Gardel e Victor Vidal carregam ambos histórias de traumas cuja resolução está sempre à espreita, mas que exige muito das personagens
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Apesar de serem romances muito diferentes, os livros de Stênio Gardel e Victor Vidal carregam ambos histórias de traumas cuja resolução está sempre à espreita, mas que exige muito das personagens

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Apesar de serem romances muito diferentes, os livros de Stênio Gardel e Victor Vidal carregam ambos histórias de traumas cuja resolução está sempre à espreita, mas que exige muito das personagens

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Do Brasil, dois escritores premiados em sintonia: "Não há literatura sem empatia", dizem Stênio Gardel e Victor Vidal

Estiveram em Lisboa para apresentar um National Book Award e um Prémio Leya feitos de histórias de um Brasil violento e intolerante. Em entrevista, garantem: ainda há respostas nos livros.

Em primeiro lugar, as apresentações. Oriundo de Limoeiro do Norte, nas paisagens nordestinas do Ceará, Stênio Gardel tomou o campo literário de surpresa com A Palavra Que Resta, retrato impressionista de um homem homossexual que passou a vida agarrado a uma carta do rapaz com quem despertou para a sexualidade na adolescência. Já idoso, e após passar por privações e violências — da própria família, inclusive — após abandonar o seu meio rural e conservador, decide aprender a ler no seio de uma comunidade tão “marginal” quanto ele. A qualidade da escrita, aliada à da tradução, levou este romance a tornar-se no primeiro vencedor lusófono do National Book Award para melhor obra traduzida em 2023.

Do outro lado, Victor Vidal. Historiador de arte e académico ligado ao serviço educativo e à museologia, este carioca não é avesso às letras. Pelas suas próprias palavras, já tinha escrito 12 romances que ficaram na gaveta. Calha que o 13.º foi o primeiro a ver a luz do dia e foi o da sorte, tendo vencido o prémio LeYa quando concorreu na edição de 2023. Não Há Pássaros Aqui de seu nome, tem no cerne da narrativa uma jovem adulta, Ana, marcada pela infância e adolescência de abusos sofridos às mãos da mãe, Andrea, com quem cortou relações. O seu quotidiano é interrompido quando recebe uma chamada a avisar que a progenitora desapareceu, forçando-a a confrontar o passado — incluindo um episódio traumático e definitivo que para sempre marcou as duas.

Tanto um livro quanto o outro não são propriamente literatura ligeira para apreciar à sombra de um guarda-sol — ou talvez resultem ainda melhor pela envolvência das suas páginas como contraste à leveza das férias de verão. Apesar de serem romances muito diferentes, carregam ambos histórias de traumas cuja resolução está sempre à espreita, mas que exige muito das personagens. E também de falibilidade humana, de como os discriminados também discriminam, de como as vítimas de violência também a perpetuam — conscientemente ou não.

Tanto Stênio Gardel como Victor Vidal estiveram em Lisboa, com o Observador a apanhar os dois na livraria Buchholz para uma inusitada conversa a três.

Já tiveram a oportunidade de ler o livro um do outro? O que acharam?
Stênio Gardel (SG)
— Estou lendo o do Victor, saiu há pouquinho tempo, e até comentei com ele quanto à construção do suspense do livro, que é muito boa, e as transições de tempo também. Acho que ele traz questões muito relevantes de violência e de saúde mental, que podem ser discutidas a partir do livro. E estou doido para saber o mistério que é instaurado no começo da história.

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Victor Vidal (VV) — Eu já tinha lido o livro do Stênio perto da época do lançamento no Brasil e gostei muito da narrativa. O processo de aceitação pelo qual o personagem passa é muito interessante. A gente pensa nos nossos próprios processos de aceitação, seja eles quais forem, enquanto está lendo. E o final do livro do Stênio é assim… incrível.

Algo que acho interessante, apesar de serem duas narrativas completamente distintas, até mesmo na escrita, é que têm alguns pontos de contacto. Como a ideia do trauma. No caso de A Palavra que Resta, há a perda de um amor antigo, a violência homofóbica, a resolução que parece nunca chegar. Em Não há Pássaros Aqui, os maus-tratos infantis, a prisão mental que causam e as relações mantidas sob o signo dessa brutalidade. O que procuraram explorar com este tema?
SG — Acho que, no meu caso, com o processo de aceitação do Raimundo, ele meio que caminha em paralelo com a aprendizagem dele da língua escrita. Só que esse paralelo só vai até determinado ponto, não é? Porque ao conseguir aprender a ler e escrever, ele já poderia ler a carta, mas decide não fazê-lo — toma a escolha de não fazê-lo. E aí, esse sentimento de encerramento pode não ser percebido ou sentido pelo leitor, mas acredito que há uma conclusão para o Raimundo, porque houve ali uma mudança na relação dele com a carta. E para ele, ali, houve algum tipo de resolução.

A capa de "A Palavra que Resta", de Stênio Gardel, na edição Portuguesa da D. Quixote

No fundo, mais importante ou não do que saber qual o conteúdo da carta, que é um grande gancho, a decisão que ele toma sobre o que fazer com ela é o que importa no final, não é? De certa maneira, fecha todo este percurso de aceitação, como estava a dizer?
SG
— Sim, sim. É interessante como o não conhecimento da carta acaba sendo mais enriquecedor ou mais potente do que qualquer conteúdo que pudesse ser revelado. Ali o Raimundo realmente percebe o poder que a palavra tem, ele se sente emancipado, digamos assim, do analfabetismo, mas agora também está emancipado da carta. Não quer dizer que a carta não signifique mais nada para ele. Claro que significa, mas não da mesma forma como ela significava antes de ele saber ler e escrever. Essas duas emancipações são muito importantes, são constituintes de quem ele é. E uma coisa que percebi agora, falando de resolução, olha como a última palavra do livro é “começo”. Por mais paradoxal que possa ser, a resolução do livro termina com a palavra “começo”. Mas mesmo assim é uma resolução, e é muito potente.

E um fim é um começo de outra coisa a seguir.
SG
— Sim, sim, exato. Ele enxerga caminhos, possibilidades à frente.

VV — Porque não há nenhum começo sem resolução.

E no caso de Ana, estamos a falar de outro tipo de trauma e de tentativa de resolução. O que o motivou a explorar a própria relação que ela tem com a mãe?
VV — Primeiro, o que eu queria explorar era essa desconexão dela com a mãe, dela tentando dar um significado para on desaparecimento da mãe. Mas, por outro lado, enquanto estava escrevendo o livro, nunca vi ela tentando encontrar algum tipo de resolução, porque acho que, no fundo, ela sempre entendeu que nunca teria o que precisava. Perto do fim, o livro dá essa dica de que ela não encontra a resolução que busca, porque ela diz que nunca vai saber porque é que determinadas coisas aconteceram, porque é que as pessoas tomaram determinadas decisões. Enfatiza muito essa ideia de um vazio, de que talvez a resolução dela fosse aceitar o vazio.

É um pouco a ideia de, passo a expressão, aceitar a mão que se recebeu e a jogar com as cartas que se tem.
VV
— O final fica em aberto. Cada um vai ter a sua interpretação. Acho que a minha, embora eu tenha escrito a história, acaba soando como a interpretação oficial, mas é de que não há redenção para ela, não há resolução para ela.

Como o Stênio disse, a palavra escrita e a literatura são fulcrais em ambos os livros, de certa maneira. Para Raimundo, não saber ler priva-o de toda uma vida. Quanto a Ana, a ligação que ela cria com o amigo Benjamin, na infância, vem da leitura comum de Monte dos Vendavais, de Emily Brontë. A palavra é um esticador de horizontes, como o Stênio escreve?
SG
— Acredito que sim. Essa expressão é de um poema do Manoel de Barros, que está no livro como uma poesia estudada pelo Raimundo, ele tem de escrever um textinho sobre essa poesia. Desde o começo que eu sabia que tratar da palavra seria muito importante no livro. Tratar das várias formas de palavra: a unidade lexical é palavra, mas a gente pode ter toda uma crença como palavra, pode ter um livro como palavra, silêncios são palavras. Então, todas essas formas podem ser encontradas no livro. E também era importante refletir quanto à força que a linguagem tem. Você pode criar e você pode destruir só com palavras. O Raimundo reflete sobre isso quando ele fala que aguenta os braços do pai mas não aguenta as palavras da mãe. Então, isso põe peso sobre o que a Caetana diz e é um peso maior do que aquele que o Raimundo sente quando é açoitado pelo pai. E eu sabia disso desde o começo. Além, claro, do facto de eu trazer esse personagem que sonha com a palavra escrita, mas escrevo a sua história próxima à oralidade, Há aí também as diferenças com que nós nos expressamos e tudo isso estava desde o começo muito claro na minha cabeça. Óbvio que tem a parte espontânea, a parte da escrita palavra após palavra não dá para explicar muito. Mas eu sabia desde o começo que traria esses assuntos. E acredito, sim, que as palavras têm muita força, seja criativa ou destrutiva.

VV — No meu caso, acredito que é menos a palavra que tem esse papel. Num sentido geral, é mais a obra de arte que o ocupa. Eu acho que nesses dois personagens, tanto na Ana quanto no Benjamin, já existe ali uma busca pela beleza e muitas vezes converge em uma busca por arte. Então tem o livro [“Monte dos Vendavais”], tem as pinturas da mãe, tem as luzes que ela vê que saem da igreja, tem o parque… Existe ali uma busca deles por uma beleza, como se esta fosse resolver tudo, fosse responder a tudo. Em alguns momentos. ela é reconfortante, consegue expandir esses horizontes deles, mas em outros ela acaba se tornando sufocante — tanto que o final é como é, e a capa é a dica. É o que acontece, o que ela faz com a beleza.

"Os meus tipos de leitura preferidos são exatamente esses em que a linguagem chama um pouco de atenção sobre si mesma, em que uma combinação de palavras ou uma construção sintática é o que ilumina o texto. Tenho grande admiração por José Saramago e Valter Hugo Mãe, os brasileiros Raduan Nassar, Graciliano Ramos, Marcelino Freire, Maria Valéria Rezende, são todos mestres nessa arte."
Stênio Gardel

Um escape tem essa natureza dual — representa a fuga da nossa realidade visando algo melhor, mas essa fuga também significa que há coisas que ficam por resolver, não é?
VV — Sim, e afeta todos esses personagens até à geração antes deles. A mãe do Benjamin, por exemplo, depois passa uma temporada só visitando museus, tentando procurar uma resposta. E isso vem também muito da minha própria jornada. Embora eu não descreva exatamente os locais, quem me conhece e sabe da minha vida, consegue identificar quais locais no Rio de Janeiro que eu estou falando. O museu que eles frequentam é o Museu Nacional de Belas Artes, um museu incrível que tem no Rio de Janeiro e que eu ia muito no período da faculdade e, me sentindo sozinho e solitário, era onde eu ficava o dia inteiro passeando pelos corredores, porque está associado à universidade que eu frequentei e podia entrar sem pagar, podia passar o tempo que quisesse lá dentro. O livro traz também muita dessa minha experiência, dessa relação com a arte — que foi também um aspeto que eu gostei muito no livro do Stênio, que é como a palavra é o tema inteiro do livro; não é só a busca por entender a palavra, é a busca dela no geral.

Nas duas obras há maus-tratos verbais e discriminação. Dentro de uma bolha literária, tendemos a entender as palavras como salvíficas, mas elas têm também a capacidade de destruir e de maltratar.
SG — A gente aqui está falando de arte, de texto literário, mas podemos pensar as palavras em outros ambientes, em outras materialidades que podem ser destrutivas também. Aí eu penso, por exemplo, em textos legislativos, nas leis que determinam, que orientam o futuro não apenas de um leitor, mas de um país inteiro. O que está escrito ali pode causar discriminação, pode provocar violência, pode permitir corrupção. Então, com certeza, há consequências para o que se diz e para o que se escreve nos mais diferentes suportes.

Victor disse que o seu romance “não é um livro regionalista, pode ser qualquer local do Brasil, podia ser qualquer lugar do mundo”. Stênio, pelo contrário, tem um tom extremamente oral e regional neste livro, tanto no vocabulário empregue como na estrutura do texto, com quebras de parágrafo e pontuação mais atípica. Como chegaram ambos às vossas respetivas vozes narrativas?
VV — É muito difícil fazer o que o Stênio fez. Para você quebrar a linguagem, para subvertê-la — não que subverta, acho é que tentou transpor a oralidade para um texto físico — isso é muito difícil. No meu caso, queria algo que fosse direto ao ponto, que o que sobressaísse fossem as emoções das personagens. Acho que não conseguiria, no momento em que escrevi esse livro, fazer essa ambientação e tentar fazer esse mapeamento das emoções das personagens de outra forma que não fosse objetiva, até porque o livro tem essas quebras no tempo também — mas elas são completamente diferentes da maneira como o Stênio as faz, e para mim pareceu que era a forma mais ideal para essa narrativa.

SG — O texto do Victor tem muita clareza — e talvez no meu haja uma certa opacidade, não total, mas uma translucidez, digamos assim. O Victor fala que não encontrou outra forma de escrever esse texto naquela época e eu interpreto isso como vendo que cada história meio que tem o seu jeito de ser contada também. Então, a história do Raimundo, no período em que eu a escrevi, como eu a imaginei, era para ser contada desta maneira. Acho que há partes do processo em que consigo planear, consigo conscientemente racionalizar, mas há uma parte que é muito espontânea da criação, no momento que você está diante do computador para escrever e é imprevisível. Quanto à oralidade, sim, isso foi algo consciente. Sabia que o texto teria essa característica, principalmente a partir do momento em que decidi dar mais espaço e mais voz ao Raimundo.

Stênio Gardel: "Os meus medos e as minhas angústias durante a minha autoaceitação e a minha forma de encarar isso para as pessoas me ajudaram e estiveram em jogo na hora de escrever"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Como é que isso se deu?
SG
— Eu não escrevi nem na ordem cronológica dos eventos nem na ordem textual, fui escrevendo aleatoriamente, mas até chegar ao capítulo “Estrada”, a maior parte do texto era na terceira pessoa. E aí, quando fui escrever esse capítulo, me veio aquela primeira frase, “tanta estrada que já percorri na vida me afastando dessa aqui, agora é essa aqui que eu tenho que percorrer”, e ali ouvi o Raimundo falando e o texto cresceu, ganhou peso, e decidi dar mais voz para ele. Tive a hipótese de incluir mais ainda a oralidade, que já existia um pouco mesmo no narrador de terceira pessoa com alguns desvios de norma, por exemplo. Há essas duas perspetivas: algo mais consciente e algo mais espontâneo. Claro, no que diz respeito a essa espontaneidade, depois é preciso estabelecer algum tipo de controle, porque senão também o texto ficaria por demais aleatório e bagunçado [confuso], o que prejudicaria a leitura. Mas depois é preciso se estabelecerem algumas regras — por exemplo, a questão também de colocar uma fala rememorada com letra maiúscula depois de vírgula, dentro do fluxo de consciência do Raimundo, aquilo surgiu também durante o processo de escrita. Mas aí, no momento em que eu percebi o que estava sendo feito e que, da minha perspetiva de autor, estava funcionando e estava transmitindo, aí eu disse “não, OK, então agora quando estiver no fluxo de consciência do Raimundo as lembranças que ele tiver de falas de outros personagens vão ser colocadas dessa maneira”.

É interessante analisar a forma como ambos abordaram a escrita dos vossos respetivos romances recorrendo à metáfora da pintura: imagino o romance do Vítor mais como uma pintura do mestre renascentista, ou seja, os elementos todos delineados…
VV
— O meu seria o clássico, o dele o impressionista!

Era exatamente aí que queria chegar. Um tipo de escrita mais impressionista e um tipo de escrita mais formal — não que isso tenha algum tipo de conotação negativa. Concordam com esta interpretação?
VV
— Sim, porque o que eu queria era realmente que fosse uma linguagem clara, que não se abrisse para a interpretação. A história pode ficar aberta, é aberta a todo tipo de interpretação, mas queria que a linguagem fosse direta, porque o que me interessa muito são essas paisagens interiores dos personagens. Quando leio, gosto quando essas paisagens do interior das personagens estão medidas com clareza. São os textos que mais gosto de ler, que mais me capturam. No entanto, o mais difícil foi realmente esse jogo de saber o que dizer e o que esconder, porque eu tinha de passar informação, tinha de dizer alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, tinha de omitir sem que no final o leitor sentisse que eu o falseei. Não queria que chegasse ao final e pensasse “você me enganou”. Mas não, eu disse tudo, você só não viu as coisas por um outro lado, porque faltava uma única informação. E isso foi um pouco trabalhoso.

SG — O mesmo acontece comigo. Os meus tipos de leitura preferidos são exatamente esses em que a linguagem chama um pouco de atenção sobre si mesma, em que uma combinação de palavras ou uma construção sintática é o que ilumina o texto. Tenho grande admiração por José Saramago e Valter Hugo Mãe, os brasileiros Raduan Nassar, Graciliano Ramos, Marcelino Freire, Maria Valéria Rezende, são todos mestres nessa arte de fazer uma composição tal que a gente pensa “que inesperado” e que causa essa surpresa.

"Quando voltar para o Rio de Janeiro, vou ter de fazer uma mudança, vou mudar de endereço. E estou o tempo todo fantasiando que, quando chegar no novo lugar, vou morar, vou sentar e vou ler o livro que comprei aqui [em Lisboa]. Isso é também uma forma de buscar uma resposta na literatura."
Victor Vidal

O Stênio já afirmou em algumas entrevistas que ler O Cão dos Baskerville [de Arthur Conan Doyle] foi um importante marco. Ao mesmo tempo, no caso do romance do Vítor, com a Ana e a Andrea, o leitor passa o tempo todo a tentar descobrir qual é que foi o tal evento marcante que alterou a vida para sempre das duas. Há um pouco de literatura policial em cada um destes livros?
VV
— Acho que no meu isso é mais claro, ao mesmo tempo que considero que também não é um livro de suspense como esses livros costumam ser, os mais tradicionais. Mas tem muitos elementos, gosto de uma literatura que trata do mistério — não exatamente de um mistério de quem matou ou de qual é o segredo —, mas porque considero que a vida, a nossa realidade, é muito cheia de mistérios, de coisas que a gente não consegue entender. A minha experiência como indivíduo é estar sempre a tentar organizar os factos mentais, tentar procurar clareza, coerência. A vida mostra que não é assim o tempo todo, ela foge à coerência. São coisas distintas e gosto de uma literatura que faz isso, que apresenta essas fugas, a incoerência e os mistérios. E muitas vezes esse mistério é objetivo. No caso do meu livro, acho que tem um mistério objetivo do que aconteceu mas, ao mesmo tempo, se um leitor pega nesse livro achando que é um thriller, ele vai se frustrar, porque não tem os elementos essenciais.

É a viagem aqui que interessa, não a conclusão como acontece em muitos policiais.
VV
— Chega até ser um pouco insatisfatório se você está indo atrás dessa resolução de um mistério como um livro de suspense.

Mas como influência…
VV — Aí com certeza que sim! Aliás, quando não sei o que ler, o thriller, o suspense, é uma delícia de tentar montar o quebra-cabeça. E quando é um livro tradicional desses, o final é sempre satisfatório, não é? Porque você vê todas as peças no lugar. Interesso-me muito por esse género, mas como leitor.

SG — Também admiro muito, mas acho que não conseguiria escrever um livro de suspense clássico. Por exemplo, quando falei que o Victor constrói muito bem suspense, é a ideia de suspense no sentido mais amplo, a ideia de instaurar perguntas e de querer que a gente avance, mas não necessariamente no sentido de encaixar o livro no suspense policial. Adoraria, se o pudesse fazer, mas eu tenho a impressão que é muito cheio de regras e muito cheio de marcações sobre as quais acho que não teria controle. Nunca tentei escrever um assim. No caso de A Palavra Que Resta, a carta é, sim, um elemento de suspense, indubitavelmente. Mas também não acho que chegaria a chamá-lo um thriller. Porque, mais uma vez, a carta vai construindo suspense quando é mencionada, quando aparece, quando o Raimundo reflete sobre ela, mas não acredito que sejam elementos suficientes para sustentar a história como tal. Algumas pessoas se frustram quando leem o livro. Hoje mesmo, abri o meu Instagram e tinha uma mensagem de uma pessoa que disse que estava chateada comigo, que eu nem conheço. Não respondi ainda, não sei nem o que eu vou dizer, porque ela disse que estava chateada porque preparou todo um ambiente especial para ler o final do livro e que gostava de finais felizes… mas nem sempre a gente encontra o que a gente quer. Por outro lado, muitas outras pessoas adoram o final, acham-no certeiro para o livro — e eu também gosto.

Mas será suposto procurarmos respostas numa história?
VV
— Mas é comum, porque a gente não tem resposta para nada. As artes, de uma maneira ampla, parecem oferecer resposta o tempo todo. Uma música parece que se conecta com alguma coisa dentro da gente, que aquilo oferece uma resposta. Eu também já fui muitas vezes a um livro à procura de uma resposta. Quando voltar para o Rio de Janeiro, vou ter de fazer uma mudança, vou mudar de endereço. E estou o tempo todo fantasiando que, quando chegar no novo lugar, vou morar, vou sentar e vou ler o livro que comprei aqui [em Lisboa]. Isso é também uma forma de buscar uma resposta na literatura. É muito fácil acontecer. Espero que as pessoas também façam isso com o meu livro, que continuem fazendo isso, porque é um sinal de esperança a gente olhar para as coisas esperando que elas nos devolvam algo.

"Não Há Pássaros Aqui", de Victor Vidal, livro que venceu o Prémio Leya no ano passado

Mas podemos exigir isso?
VV
— A diferença é que se ela não me der uma resposta, eu aceito. Mas muitas vezes vou atrás de um livro ou de um filme esperando que aquilo me vai preencher num determinado momento.

SG — É, mas aí eu fico me perguntando se talvez esse “não preencher” e talvez essa frustração sejam algo mais significativo e mais importante do que você encontrar ali uma resposta pronta.

VV — Não é talvez, é mesmo isso! Sem sombra de dúvidas.

SG — Quanto a essa leitora, ela tinha as suas expectativas e todas as leituras são válidas, agradeço a ela por ter lido o livro. Infelizmente, as expectativas dela não foram atingidas da maneira que ela queria nesse livro, e ela tem todo o direito disso! Agora, talvez isso tenha sido positivo para ela, para ela perceber que há outros tipos de literatura, para ver como se posiciona diante da leitura dela. E é isso, é uma experiência que talvez valha mais a pena do que encontrar um final feliz.

Apesar de A Palavra Que Resta não ser uma obra autobiográfica, tem muitos pontos de contacto com a vida do Stênio, como o facto de ser homossexual, de ter crescido no mesmo ambiente rural e conservador do Nordeste brasileiro do protagonista; já o Vitor também revelou em entrevistas como os traumas de infância são recorrentes na sua escrita, mesmo até em obras e em textos que tem por publicar. Como é que se faz esta gestão criativa e emocional entre colocarmos parte de nós no que fazemos e distanciarmos dessa obra artística que criamos?
SG — Para mim, essa relação estava estabelecida desde o começo. Desde que tomei a decisão de que o relacionamento do livro seria homoafetivo, sabia que muita da minha experiência estaria envolvida no processo criativo. Então, os meus medos e as minhas angústias durante a minha autoaceitação e a minha forma de encarar isso para as pessoas me ajudaram e estiveram em jogo na hora de escrever os medos, as angústias e também a aceitação do Raimundo e a posição dele no mundo. Da mesma forma, a relação com as palavras também é algo que a gente tem em comum: ele desejando aprender a ler e escrever e eu com esse desejo de escrever para conversar com as pessoas. Mas aí entram em cena também diferenças, porque a partir das diferenças também é possível construir isso. Nunca sofri as violências que o Raimundo sofre, nunca fui rejeitado pela minha família, sempre fui acolhido. Nunca agredi ninguém como ele agride a Suzzanny.

Daí a minha pergunta quanto a essa gestão. Sentirmos que estamos quase a destilar parte de nós no que estamos a criar, não é?
SG
— Sim, às vezes os próprios leitores veem coisas que a gente não tinha conhecimento conscientemente. E muita coisa está lá talvez por se descobrir ainda, não é? Há uma parte mesmo que eu sabia que traria das minhas próprias vivências para construir o Raimundo, com base no que a gente compartilhava e no que se diferenciava. Mas se uma parte disso é com certeza consciente, talvez esse lado mais misterioso esteja na construção dos outros personagens, que eu acredito que também tenham algo de mim, mas com os quais não consigo ver com tanta clareza, sabe? Mas que está lá, está, com certeza, de alguma maneira.

VV — É impossível no processo criativo você excluir o indivíduo que está criando. Então, mesmo que o meu livro não tenha elementos autobiográficos — talvez tenha menos elementos do que o do Stênio tem no dele —, ao mesmo tempo, as paisagens são as paisagens da minha vida, o museu é semelhante ao que eu frequentei, a adoração deles pelo Monte dos Vendavais é a minha adoração, a relação com a arte que aparece é a minha. Mesmo que não tenha vivido isso, aparece. Está presente no livro do início ao fim. É impossível fazer essa separação, não tem como, porque é o criador e a criatura: a criatura vai ter muito do criador. Talvez fosse mais difícil se fosse declaradamente um trabalho biográfico. Se eu assumisse e falasse, aí eu enfrentaria isso. Mas dizendo que é tudo “de mentirinha”, acho que é mais fácil.

"Há uma ingenuidade de achar que uma experiência literária, que um único livro, vai ser capaz de englobar todo o tipo de experiência que, no caso de Não Há Pássaros Aqui, uma mulher viveria. Não sou uma mulher, mas também não estou falando de todas as mulheres. Aliás, não estou falando de nenhuma mulher, estou falando de uma personagem."
Victor Vidal

Sobre uma das grandes discussões à volta da produção literária, e não só: perante a ideia do lugar da fala, podemos comunicar através de uma personagem que não somos nós? Até que ponto tenho o direito de escrever uma personagem gay ou uma mulher sendo um homem cis e heterossexual? Onde e quando é que uma pessoa se coloca perante este enigma?
SG
— Acho que não tem como fazer literatura sem empatia, sem alteridade, sem essa relação com o outro, sem se colocar no lugar do outro. Se todas as minhas histórias fossem sobre ser um homem cis homossexual, não haveria material para tanta história; pior ainda, tentar fazer histórias interessantes para a leitura. Tenho muita convicção, por exemplo, de que o livro, “A Palavra Que Resta”, deve muito à personagem Suzzanny, que é uma travesti. Eu não sou travesti, mas construí uma personagem assim, que é muito diferente de mim, mas, mais uma vez, acredito que ela tem alguma coisa de mim também. Agora, quando nos colocamos nessa nessa posição de estar no lugar do outro, acho que isso também não deve ser feito de forma leviana. Deve haver algum tipo de responsabilidade sobre o que está sendo construído. E foi isso que busquei na hora de, por exemplo, colocar a Suzzanny sendo agredida pelo Raimundo. Estava trazendo ali um ato transfóbico, que é um assunto extremamente sensível, que vai além até sobre o que perguntou sobre o lugar de fala, traz outras problemáticas, mas procurei fazer isso trazendo um equilíbrio, para que o leitor conseguisse aceder às camadas do texto e percebesse o verdadeiro objetivo do que estava sendo tratado.

VV — Há uma ingenuidade de achar que uma experiência literária, que um único livro, vai ser capaz de englobar todo o tipo de experiência que, no caso de Não Há Pássaros Aqui, uma mulher viveria. Não sou uma mulher, mas também não estou falando de todas as mulheres. Aliás, não estou falando de nenhuma mulher, estou falando de uma personagem, que não existe e que, na verdade, existe mais para mim do que para qualquer outra pessoa. Então, quanto a isso eu me sinto muito livre, porque não estou tentando dizer “olha, isso é o que significa ser mulher no mundo contemporâneo, no Brasil”. Isso é impossível. Acho que nem uma mulher é capaz de fazer isso porque existem muitos tipos de mulheres.

Ambos namoraram a carreira literária antes de, de facto, tornarem-se autores publicados. Como é que foi esse percurso sinuoso até chegarem a este ponto?
SG
— No meu caso, publiquei alguns contos, foram auto-publicações, junto com colegas e amigos dos cursos de escrita criativa nos quais eu participei. E os cursos de escrita criativa foram outra etapa muito importante, não apenas do ponto de vista de aprendizagem mesmo de escrita literária, mas de um ponto de vista pessoal, de ganhar a coragem de expor os textos, de estar aberto a críticas e de finalmente tomar a decisão de escrever, de perceber que aquele era o momento, que não podia passar dali. Houve os contos e os cursos — no Brasil também faço parte de um coletivo de escritoras e escritoras, o coletivo Delirantes, e também fazemos publicações de contos, mas aí algumas delas já foram depois da publicação do livro. E recentemente publiquei um livro ilustrado pela Companhia das Letrinhas, o Bento Vento Tempo.

VV — A carreira literária sempre foi uma fantasia, algo que eu ficava imaginando, desejando, mas nunca achei que seria possível. É realmente a realização de um sonho.

É difícil escrever quando se sente que já tudo foi escrito ou quando se é tão autocrítico que não se sabe se o que se escreveu é meritório de publicação? Quando é que se dá este clique?
VV — Para mim, pensava sempre na segunda opção. Não era que tudo já foi escrito, porque tudo realmente já foi escrito, mas nunca achei que teria a capacidade de escrever algo que interessasse a alguém. Me interessava porque era eu que estava fazendo, mas eu não achava que seria o suficiente para interessar alguém. E a virada [viragem] para mim, o clique, foi realmente eu ter me conectado à narrativa. Ao escrever, eu me senti conectado àqueles personagens, àqueles ambientes, e achei que valeria a pena mostrar. Então, partiu muito da minha conexão com o livro. Gosto muito de tudo que eu já escrevi até agora, mas é mais um prazer porque fui eu que fiz em determinada época da minha vida, não porque acho que tem algum mérito em si.

SG — Para mim, acho que o clique veio da Socorro Acioli. Ela fala uma coisa que é o seguinte, “conte a história que só você pode contar”. Isso para mim foi meio libertador, porque eu interpretei isso como “só você pode contar suas histórias, com as suas memórias, com as suas marcas. Ninguém é igual a você, então as suas histórias vão ser assim”. Além disso, também tirou dos meus ombros o peso das comparações. Eu busco antes inspirações, adoro William Faulkner, adoro Raduan Nassar, adoro Graciliano Ramos, adoro Guimarães Rosa, mas não procuro copiar esses autores. Eles já escreveram sobre tudo, mas o meu texto vai ser o meu texto com as minhas características. Então, quando eu percebi isso, eu me senti muito mais livre para acreditar no que eu estava escrevendo.

Victor Vidalo: "Quando me falam que recebi a distinção no primeiro livro, eu penso 'não é o primeiro, tive que escrever um monte de coisa ruim antes para chegar aqui!'"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Estes foram, tanto para o Stênio como para o Victor, os primeiros romances publicados, e ambos receberam distinções logo na estreia. O Stênio recebeu o National Book Award e o Victor o Prémio LeYa. Como é que avaliam a experiência — principalmente por ocorrer logo ao primeiro livro publicado? E que tipo de pressão é que isso gera para o futuro?
VV — É o primeiro livro publicado, mas tenho mais de 12 romances escritos. Quando as pessoas me perguntam isso, me falam que recebi a distinção no primeiro livro, eu penso “não é o primeiro, tive que escrever um monte de coisa ruim antes para chegar aqui!” É um trabalho invisível, é o icebergue e o livro que foi lançado é a pontinha; existe todo um resto que está submerso e é assim que me sinto em relação a isso. Então, quando me perguntam sobre pressão ou medo, penso muito nesse icebergue. Porque se escrevi mais de 12 romances antes, isso significa que consigo lidar com a frustração de estar na frente do computador e ver que o texto não está andando e que não estou paralisado pelo medo do segundo romance. Já atravessei esses momentos, me sinto sem pressão nenhuma. Acho que vai ser até interessante se ouvir alguém dizer que quer ler mais alguma coisa minha, vou achar ótimo!

SG — No meu caso, talvez haja já um pouco de pressão, mas estou tentando não pensar muito nela. Já tenho algumas ideias e uma parte de um texto escrito, mas não sei se vai ser o meu segundo romance, está descansando por um tempo. A Palavra Que Resta tem proporcionado ainda muita coisa e estou vivendo o livro ainda. Publiquei recentemente um outro livro de um outro género e isso também está sendo muito bacana, quero ver como esse livro vai chegar a um público mais jovem e essa experiência também é toda muito nova para mim. Acredito muito nisso, no tempo do livro. Com A Palavra Que Resta, tentei não acelerar o processo. Concluí a primeira versão em 2017 e o livro foi publicado em 2021, mas tenho anotações do livro de 2013.

Foi burilando a escrita.
SG — Exato, não ficava escrevendo para a editora a perguntar “vocês vão publicar ou não vão?” Depois de já estar na editora, não ficava perguntando “cadê a prova para eu ver?” O livro seguiu um tempo, sabe? Tanto que carrego até hoje uma consequência disso muito marcante para mim e que às vezes me arrependo, outras vezes não — é que minha mãe não chegou a ver o livro publicado, por apenas três meses. E às vezes fico perguntando “será que se eu tivesse pressionado um pouquinho, mamãe teria visto o livro?” Mas ela não viu e eu espero que ela me entenda, onde quer que ela esteja. E aí tem outras questões, já que o livro saiu no meio da pandemia, saiu também no meio do governo de direita lá no Brasil, e se não tivesse saído naquele momento, talvez não tivesse chegado onde está chegando hoje. É misterioso também, mas acredito um pouco nesse tempo da literatura.

 
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