“É melhor perguntar porque é que durante a campanha eleitoral a própria CAP aconselhou os eleitores a não votar no Partido Socialista”. Foi com estas palavras, proferidas esta quarta-feira no Morgado da Torre, em Portimão, que a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, deu o puxão que faltava para partir uma corda que já estava no limite. A resposta da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) não se fez esperar. Em comunicado, a CAP classificou as declarações de Maria do Céu Antunes como “bullying político” e pediu explicações. A corda partiu, e a CAP admite sair à rua. A acontecer, estará longe de ser inédito.
“Quando se parte para uma manifestação é porque todas as outras formas de diálogo foram esgotadas. É o fim da linha. Esperamos não ter de chegar a esse ponto mas, se as coisas se alterarem, não haverá outra solução. Tentaremos evitar que isso aconteça”, declara ao Observador Luís Mira, secretário-geral da Confederação.
A reação da ministra surge oito meses depois de, em plena campanha eleitoral, a CAP ter apelado “à rejeição de voto no PS e de todos os partidos que tivessem a intenção de coligar-se com o PAN ou com todos os partidos anti-agricultura e anti mundo rural”. Na visão da organização, “foi um apelo efetuado num contexto político próprio, que não visou o PS em exclusivo, mas sim todos os partidos políticos que abrissem a possibilidade de diálogo pós-eleitoral, tendo em vista soluções de governo, com partidos que são contra a agricultura”.
Não terá sido esse o entendimento da ministra, com quem a Confederação já vinha batendo de frente nos últimos meses, devido aos atrasos nos pagamentos dos apoios prometidos aos agricultores. “Faltou à palavra dada pela primeira vez quando, no final de maio, mais de um mês após o anúncio desta garantia, falhou o prazo para fazer chegar o dinheiro prometido e devido aos agricultores. Faltou à palavra dada pela segunda vez hoje, mais 30 dias decorridos sobre a data de fim de maio. Junho chegou ao fim, os pagamentos prometidos não chegaram e os agricultores esperam… e desesperam!”, lia-se num comunicado de 30 de junho.
Ao Observador, Luís Mira reitera, e reforça, as acusações. “Criticámos a ministra por falhas na anterior legislatura e estamos a fazê-lo agora pelas mesmas razões. A seca começou no ano passado. Houve muitas promessas e muitos anúncios de milhões, mas ninguém recebeu um euro. Nem relativamente à seca nem à crise na Ucrânia”, justifica. Para compensar os agricultores pelos impactos do conflito, foi ativado o mecanismo europeu de crises. “Mas nem esse. Ninguém recebeu nada. Isso não é aceitável. A seca tem um impacto brutal e o Governo não pode alegar que tem falta de verbas, porque não tem. O governo arrecadou em impostos, em três meses, o mesmo que o Alqueva custou em 25 anos. A seca é um problema estrutural. Não há capacidade para agir, só para anunciar e fazer propaganda”, atira.
No comunicado no qual pedem satisfações à ministra, os responsáveis da CAP deixam no ar uma pergunta. “Estará Maria do Céu Antunes, com este ataque gratuito e extemporâneo, à altura dessa responsabilidade?”. A questão tem sido proferida múltiplas vezes proferida pela Confederação ao longo das últimas décadas, só mudando o nome do protagonista.
O ministro manifestante
Corria o primeiro Governo de António Guterres, entre 1995 e 1998, quando se deu um dos maiores choques entre o poder do Terreiro do Paço e os representantes dos agricultores. A tutela era ocupada por Fernando Gomes da Silva. Quem conhece de perto o setor lembra que o engenheiro agrónomo tinha sido consultor da CAP, e que havia por isso alguma expectativa em relação a uma boa relação entre as duas partes. Mas o que aconteceu foi um pico de tensão. Gomes da Silva ficou célebre por, durante a crise das vacas loucas dos anos 90, comer mioleira no Luxemburgo, para tentar mostrar que “em situações isentas de doença não havia qualquer risco”.
Mas há outro caso que na altura deu que falar. Em 1996, os agricultores fizeram uma manifestação na Baixa lisboeta, “para protestar contra uma medida europeia, no âmbito da Política Agrícola Comum (PAC)”, lembra Francisco Seixas da Costa no seu blog. A meio da marcha, Gomes da Silva saiu do seu gabinete no Terreiro do Paço e juntou-se ao protesto promovido pela CAP. Fez o trajeto da rua Augusta até ao Terreiro do Paço com os manifestantes que protestavam contra ele, lembra uma fonte do setor, que recorda a surpresa da CAP e dos jornalistas com a decisão. A tensão não aliviou completamente.
“Portugal tinha-se batido em Bruxelas, sob a sua orientação, para que a medida tomada, lesiva dos nossos interesses, não fosse adotada. Infelizmente, numa votação para a qual não havíamos conseguido, com outros países, gerar uma minoria de bloqueio suficiente, os ventos não correram a nosso favor. Fernando Gomes da Silva achou então adequado – e eu também achei! – sair para a rua e prestar a sua solidariedade aos nossos agricultores, por quem ele sempre se batera, e bem! Ora foi o bom e o bonito! ‘Ridículo’, ‘insensato’ e outros epítetos bem piores foi o mínimo com que foi qualificado nos dias seguintes”, escreve o embaixador.
Outros poderes. CAP: a confederação dos agricultores e dos subsídios
Antes de Gomes da Silva, também Arlindo Cunha, ministro de Cavaco Silva, tinha travado duras batalhas com os agricultores. “Recebeu muitas críticas que contribuíram para a sua queda”, refere a mesma fonte. Luís Mira recorda que foi a reforma da PAC, em 1992, que espoletou a contestação. “A confederação foi contra o texto da primeira reforma” e os protestos não se fizeram esperar, conta o secretário-geral da Confederação.
A guerra aberta contra Jaime Silva
Mas os “momentos mais complicados” entre as duas forças tiveram lugar quando o setor foi tutelado por Jaime Silva, ministro de José Sócrates entre 2005 e 2009. “Os agricultores fizeram uma candidatura a uma ajuda agroambiental durante os meses de fevereiro, março e abril. Era preciso dinheiro do Orçamento do Estado para pagar essas medidas, que posteriormente são reembolsadas por Bruxelas”, recorda Luís Mira.
Então, “o presidente do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) pede esse dinheiro e o ministro diz que não”, porque o Governo estava “apertado de dinheiro”. O braço de ferro fez com que o presidente do IFAP pedisse a demissão. “Era Eurico Cabral da Fonseca, que tinha estado 10 anos em Bruxelas, pertencia ao Partido Socialista”, conta Luís Mira. “O ministro, passados dois dias, foi ao IFAP pedir para ele continuar e ele disse que só podia ser presidente do IFAP com um ministro forte, ‘e o senhor é um ministro fraco’, disse-lhe. E demitiu-se”.
Acabou por ser substituído por um responsável da Casa da Moeda, “que estava a cumprir tempo até chegar à idade da reforma e percebia pouco daquilo”. A tensão não diminuiu. Acontece que o chamado ano FEOGA, relativo ao Fundo Europeu de Garantia Agrícola, que paga as ajudas, termina em outubro.
“Eles deixaram passar outubro e ele veio propor pagar em dezembro. Quando chega dezembro dizem que afinal será no orçamento do ano seguinte, porque o ano anterior já passou. Aquilo não tinha solução. Ele ainda nos diz que vai arranjar uma solução para pagar, mas depois chegou fevereiro e disse-nos que os contratos que tinham sido celebrados com os agricultores estavam errados. E não pagou”, recorda Luís Mira. “Aquilo envolveu dezenas de milhares de pessoas, que ficaram sem receber o dinheiro, e isso despertou muita tensão”. Foram convocadas mais de 30 manifestações em todo o país, e Jaime Silva acabou por não ser reconduzido no governo seguinte. “Aí houve um corte total de relações, terá sido a altura mais tensa”, defende o secretário-geral da CAP.
Os pontos de fricção com Jaime Silva eram vários. O título “CAP e Jaime Silva em guerra aberta” era frequente nos jornais. O então presidente da CAP, João Machado, chegou a comparar o ministro da Agricultura a um cata-vento por ter mudado de opinião sobre o setor do leite, que na altura enfrentava uma acentuada baixa de preços. “Foi este ministro que não considerou o leite estratégico no [programa] Proder e como não foi considerada uma fileira estratégica todas as outras [fileiras] lhe passam a frente. Agora já diz que [o leite] é estratégico. Mas também votou a favor da abolição das cotas em 2005 e agora diz que as cotas fazem falta para regular o mercado. É um cata-vento, é um ministro que não faz a menor ideia do que é fazer política e tomar opções políticas”, declarou João Machado, à Lusa, citado pela RTP.
A Jaime Silva seguiu-se António Serrano, que veio “apaziguar” o setor. Mas, revelam fontes conhecedoras do meio, a ministra com quem a CAP teve mais proximidade e com a qual houve total simbiose foi Assunção Cristas. O “momento áureo” da CAP foi quando a coligação Portugal à Frente (PaF), que juntava PSD e CDS, esteve no Governo. Além de Assunção Cristas, o próprio Paulo Portas, vice-primeiro-ministro, participaria nas reuniões com a CAP. A Confederação nunca teve uma influência tão grande no ministério como nessa altura, revelam os mesmos protagonistas.
Com o ministro socialista que pegou na pasta a seguir, o repetente (já tinha estado no Ministério com Guterres) Capoulas Santos, no primeiro Governo de António Costa, houve sempre “cordialidade e respeito”, diz Luís Mira. E elogios públicos. O antecessor de Maria do Céu Antunes “entendia o setor, sabia gerir politicamente as coisas e é uma pessoa de trato fácil”. Ainda assim, existiram momentos de conflito, nomeadamente sobre a execução de fundos comunitários e a seca, em 2018.
O presidente da CAP, Eduardo Oliveira e Sousa, afirmou na altura que as ajudas criadas para apoiar os agricultores na sequência da seca foram lançadas “fora de prazo, muito tarde” e implicavam “dificuldade burocrática”. Mas o clima entre as duas partes nunca azedou. Maria do Céu Antunes não poderá dizer o mesmo.
Agricultores justificam pouca utilização de ajudas à seca com burocracia e atrasos