A carta chegou a 60 trabalhadores em meados de agosto: a “crise” que atravessa o setor têxtil estará a levar à “diminuição da procura dos bens e serviços” e “obriga” à redução dos custos operacionais, logo, dos postos de trabalho. A Be Stitch, uma empresa de têxteis para o lar situada em Guimarães — e que não respondeu às perguntas colocadas pelo Observador — não prevê uma melhoria nos próximos tempos que justifique manter os empregos “cujo custo se torna demasiado oneroso em face dos resultados expectáveis”, segundo a carta divulgada pelo Bloco de Esquerda. A decisão foi, por isso, um despedimento coletivo.
Este é apenas um exemplo de uma empresa que está a sentir na pele a retração da procura externa e a contribuir para os números negativos, divulgados pelo INE e outras entidades nas últimas semanas, que dão conta de uma contração nas exportações de bens. No segundo trimestre, Portugal exportou menos 4,8% do que no mesmo trimestre de 2022; só em julho, a redução foi de 10,6%. A realidade é muito diferente entre os setores, mas no têxtil, onde a Be Stitch se inclui, as perspetivas não são positivas. Segundo o INE, só em julho, o segmento “matérias têxteis e suas obras” viu as vendas para o exterior cair 17,1%. No vestuário, a tendência também foi de quebra.
Ao Observador, fontes do setor do têxtil e do vestuário reconhecem uma contração nos últimos meses e há já quem antecipe quebras de 10% no total do ano. O número é de César Araújo, presidente da Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confecção (ANIVEC), que adianta que as quebras nas exportações começaram a notar-se, sobretudo, a partir de junho. Um sinal da “retração do consumo por parte das famílias“, que se intensifica. “As pessoas estão mais focadas em pagar a sua casa, há custos, a educação. O vestuário e outros componentes ficam para consumir mais tarde, não são prioridade“, reconhece. Uma “retração” que não apanhou o setor de surpresa e que se estende às geografias para onde o setor exporta — da Europa ao Canadá, EUA, Japão e Coreia do Sul.
Depois da crise da falta das matérias-primas e da procura motivada pela pandemia, o setor que recuperava volta agora a contrair. Se para empresas como a Be Stitch, os despedimentos são a solução, outras, diz César Araújo, estão a aproveitar este período de maior arrefecimento para dar formação aos trabalhadores. O Qualifica Indústria, que chegou ao terreno na semana passada, foi criado para essas situações de decréscimo da atividade devido às condições de mercado. Mas “há algumas lacunas” e “travões”, critica, como a quebra de faturação exigida (25% num trimestre) ou o tecto máximo de 100 trabalhadores que podem ser abrangidos por empresa.
O setor também já vê as consequências das alterações climáticas. Em países do norte e centro europeu, onde noutros anos já estaria mais frio, os termómetros passavam, ainda não há muito tempo, os 30 graus. “Como estamos a colocar estações de inverno nas lojas, não estou a ver ninguém com vontade de ir comprar um sobretudo. A mudança climática também afeta o consumo de vestuário“, afirma. Os dados do INE corroboram esta visão: só em julho, as exportações da rubrica “vestuário e seus acessórios, de malha” caíram 20% face ao mesmo mês do ano passado, e no “vestuário e seus acessórios, exceto de malha” também houve quebras, embora menos expressivas, de 4,6%.
Nos têxteis do lar e outros têxteis confecionados também houve quebras significativas (-25%). Entre os destinos que mais caíram na globalidade do setor estão os principais destinos de exportação nacionais: Espanha, EUA, Itália, França, Alemanha e Reino Unido, segundo a Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP). Em termos acumulados, até julho, as exportações caíram 5% em valor e menos 12,5% em quantidade (toneladas).
Mário Jorge Machado, presidente da ATP, sublinha que a redução não é apanágio de Portugal e serve-se do indicador das importações da UE, que caíram à volta de 11%, para referir que, lá fora, há quem esteja pior. “O ponto menos negativo é que os outros estão piores do que Portugal. Se os outros estivessem a aumentar as exportações e nós não, significava que não estávamos a fazer algo bem. Mas os outros estão a diminuir mais as exportações. Estamos a fazer bem. O mercado é que está com um comportamento de retração“, avalia.
O setor ainda vê um “reajustamento das cadeias de abastecimento com o pós-Covid” e um “arrefecimento” do consumo por causa da subida das taxas de juro e a perda de poder de compra. Também houve empresas que, receando quebras de stock, fizeram encomendas a mais com receio de que um fornecedor lhes falhasse e acumularam nos armazéns, estando ainda a tentar esvaziá-los. Além de que, na China, “toda a gente estava à espera que, com a eliminação das restrições da Covid, houvesse um ressurgimento das exportações e do crescimento económico. E isso não aconteceu”. Conclusão: “Ainda estamos num mundo que está a absorver os choques da Covid e da inflação“.
Empresas mais pessimistas
Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), as exportações recuaram 4,9% no segundo trimestre do ano face a período homólogo. Dados mais finos enviados ao Observador, por tipo de produto, revelam realidades muitos díspares. Entre os setores que, em termos percentuais, mais viram as exportações derrapar neste período estão o das “sementes e frutos oleaginosos; grãos, sementes e frutos diversos; plantas industriais ou medicinais; palhas e forragens” (-38%); “produtos químicos orgânicos” (-49%); e “adubos (fertilizantes)” (-50%).
Se tivermos também em conta o peso que os produtos têm no bolo das exportações, há ainda a destacar o setor dos “combustíveis minerais, óleos minerais e produtos da sua destilação; matérias betuminosas; ceras minerais” (-33%, num setor que movimentou, no segundo trimestre, 2,6 mil milhões de euros); os “produtos farmacêuticos” (-32%, tendo exportado 1,2 mil milhões); ou o “papel e cartão; obras de pasta de celulose, papel ou cartão” (-26%, num setor que vendeu 1,1 mil milhões).
Os números refletem-se num maior pessimismo. O mais recente inquérito sobre as perspetivas de exportação de bens do INE, divulgado em julho mas realizado em maio, revela que as empresas estavam, na altura, menos otimistas sobre a evolução das suas vendas ao exterior, revendo a perspetiva 0,6 pontos percentuais em baixa face à previsão de dezembro. “O desempenho menos positivo do que o esperado nos mercados de destino das suas exportações” é o principal motivo para que olhem menos sorridentes para o futuro. Nalguns casos, porém, segundo o INE, são esperados aumentos nas exportações mas em resultado da subida dos preços e não necessariamente das quantidades.
Há, também, situações em que é esperada uma redução, devido à “previsão de contração da procura e de paragens programadas ou descontinuidade de linhas de produção, em resposta às condições de mercado, a potenciais disrupções nas cadeias de valor global e a aumentos dos custos dos fatores de produção”, indica o INE.
Mas desde o inquérito, realizado em maio, que as taxas de juro continuaram a subir, o INE revelou uma estagnação no segundo trimestre do ano e da Alemanha não vêm bons ventos. Em alguns setores ouvidos pelo Observador, o sentimento é de preocupação e cautela (muita cautela) com os próximos meses. Rafael Campos Pereira, vice-presidente executivo da Associação dos Industriais Metalúrgicos, Metalomecânicos e Afins de Portugal (AIMMAP), dá um exemplo de um sinal que costuma ser um barómetro importante para avaliar a confiança das empresas: a compra de máquinas, que está a diminuir.
E porque é relevante? “As encomendas estão a baixar a partir de julho. Quem é que compra máquinas? Quem quer investir. Se baixa a compra de máquinas, quer dizer que está a baixar o investimento. Se baixa o investimento, há motivos de apreensão“.
O caso dos talheres e a “gripe” alemã
David Ribeiro nunca viu uma feira de cutelaria tão vazia como a que visitou em Paris, França, no início do mês, destinada ao retalho e à hotelaria. “Já expomos há vários anos e nunca vi uma feira com tão poucos visitantes como esta”, conta, ao Observador, o diretor de vendas da Cutipol, uma marca de cutelaria de Guimarães fundada nos anos 60.
A empresa continua a vender tudo o que produz, exporta mais de 90% da produção, maioritariamente para o Extremo Oriente e os EUA, atualmente está com vendas cerca de 5% acima do ano passado. Mas nem tudo brilha. A Cutipol sente, desde junho, um abrandamento das encomendas, sobretudo da Europa, embora este mercado não seja particularmente significativo para o portefólio da marca. A situação “não é dramática”, mas no setor, David Ribeiro sabe de empresas, noutros segmentos — médio e médio baixo —, a queixar-se de quebras “com bastante peso” nas encomendas. Depois do “boom” de vendas sentido durante a pandemia, em que os consumidores investiram nos produtos para a casa, onde foram obrigados a ‘fechar-se’, o setor vê agora sinais de alarme.
Há uma “panóplia” de motivos que ajudam a explicar e, tal como no têxtil, a perda de poder de compra e a subida das taxas de juro podem estar a ajudar a explicar. “Tudo isso pesa na decisão das pessoas“, observa. Para o segmento médio alto e alto, onde a Cutipol se posiciona, o canal dos restaurantes e hotéis dá um bom fôlego que compensa as quebras nos particulares. “Tem vindo a aumentar as encomendas, o que está a colmatar a descida do retalho”, adianta. Mesmo apesar da subida dos preços, um passo “inevitável” para a empresa perante a subida dos custos de produção.
Rafael Campos Pereira, da AIMMAP, traça o mesmo cenário de arrefecimento no setor. “Produtos para consumo doméstico, como loiça metálica, tachos, panelas, facas de cozinha, de mesa, talheres, forma, embalagens metálicas… são segmentos que estão a cair“, aponta, em declarações ao Observador. Segundo o INE, em julho, as exportações na categoria “ferramentas, artefactos de cutelaria e talheres, e suas partes, de metais comuns” — que não é significativa no bolso do setor da metalurgia e da metalomecânica — caíram quase 7% face ao mesmo mês de 2022.
Esta é, porém, uma exceção à regra do setor, que teve nos primeiros seis meses do ano “o melhor primeiro semestre de sempre”, com um salto de 10% face ao ano anterior, nos produtos acabados. Em julho, a situação já foi mais tremida, mas ainda assim positiva — nas contas do também membro da Comissão Executiva da CIP, o crescimento foi de 0,4% face a período homólogo.
Não é por isso que deixa de haver cautela no setor. Os ventos que sopram parecem frios e possivelmente determinados a sacudir a economia. Na metalúrgica e metalomecânica há essa sensação também. “Temos a noção de que, eventualmente, agora a partir de agosto ou setembro, já se vai refletir a quebra de encomendas que sentimos. Estamos apreensivos relativamente ao segundo semestre“, admite.
É que há subsetores onde “as encomendas estão a começar a cair”, num efeito dominó provocado pela crise na Alemanha. “Temos muitos fabricantes de moldes e peças técnicas para a indústria automóvel que estão expostos à indústria automóvel alemã. E o cluster automóvel alemão está em queda profunda”, afirma. Para Rafael Campos Pereira, “estando a Alemanha em quebra, não é só uma constipação, na Alemanha o que está a acontecer é uma gripe que tem impacto no resto da Europa“. O setor de metalurgia e da metalomecânica queria crescer 10% este ano, mas “eventualmente com o segundo semestre menos bom vai ser difícil”, admite.
Campos Pereira diz que, apesar disso, as empresas ainda têm perspetivas de contratação. Mas os números gerais das indústrias transformadoras — que incluem outros setores além da metalomecânica e metalurgia — revelam que os despedimentos coletivos estão a subir. Segundo os dados da Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT), no segundo trimestre do ano, as indústrias transformadoras foram as que mais dispensaram trabalhadores no âmbito de despedimentos coletivos (396), acima dos 208 do primeiro trimestre.
Em termos globais, incluindo todos os setores de atividade, o número de despedimentos coletivos está ligeiramente acima (31) do que no mesmo período de 2022 (30) e de 2021 (28).
Papel com níveis “historicamente baixos” de encomendas
O setor do papel também já viu melhores dias (aliás, como mostram os dados do INE) e, hoje, alguns segmentos estão a braços com quebras ou abrandamento na procura. É esse o diagnóstico da autoria da Navigator na divulgação de resultados relativa ao primeiro semestre apresentada em julho e com a qual responde às perguntas colocadas pelo Observador. O “abrandamento da procura” por papel fruto da “desaceleração económica na maior parte dos mercados” onde a empresa opera amplificou o processo de “destocking” (tentativa de reduzir o stock) em toda a cadeia de abastecimento. Igualmente contactada, a Renova, do mesmo setor, não respondeu em tempo útil às perguntas do Observador.
Especificamente no caso dos papéis de impressão e escrita, a Navigator diz que ao longo do primeiro semestre procedeu à redução dos stocks acumulados, num processo que já tinha começado na segunda metade do ano passado mas que está a ser mais lento do que o esperado. Na Europa, os níveis de entrada de encomendas deste segmento estão “historicamente baixos“, uma situação que se prolongou na primavera. Como consequência, a Navigator ajustou os ritmos de produção. No caso do papel UWF (papel de impressão não revestido), a procura europeia caiu 20% no primeiro semestre, acima dos 10% de quebra registada pelos EUA. Apesar disso, este tipo de papel continuou a ser “o mais resiliente”.
Mas foi no segmento de “packaging” onde “mais cedo a empresa sentiu o abrandamento da procura“. Na pasta de papel também se verificou uma redução da procura global face ao período homólogo, em particular na Europa, o que, a par do aumento de stock já no final de 2022, levou à redução dos preços.
A exceção tem sido o chamado segmento “tissue” (que inclui papel higiénico, guardanapos ou lenços de papel), que cresceu no mercado ibérico (em Espanha, subiu 1% nos primeiros quatro meses do ano), apesar da “contração” sentida na Europa ocidental, de 1%. Já o volume de vendas, nos primeiros seis meses, subiu 20% face ao período homólogo — fruto, também, da integração de uma nova fábrica que trouxe novos clientes —, o que, acompanhado pela “evolução favorável de preços”, levou a um crescimento do valor das vendas em cerca de 50%.
Ao contrário dos outros setores contactados pelo Observador, a Navigator espera que o efeito de “restocking” leve a um aumento “moderado” das encomendas no segundo semestre, particularmente a partir de setembro.
Há menos sementes para germinar
Pedro Dias, presidente da Associação Nacional dos Produtores e Comerciantes de Sementes (Anseme), também ainda não sabe dizer se o ano será de quebras ou não: é que a quantidade produzida está a cair — aliás, está a 25% do que o habitual nesta altura do ano — mas os preços das sementes estão a subir. Por isso, “se calhar chegaremos ao mesmo valor [de exportações] com menos quantidade”, hipotetiza.
Segundo o INE, o segmento dos cereais viu as exportações cair 38% no segundo trimestre face ao período homólogo, um reflexo essencialmente da seca, diz Pedro Dias. Este ano, a seca foi particularmente danosa e mesmo a chuva, quando a houve, trocou-lhes as voltas. “Quando era para fazermos as sementeiras de cereais para produção estava a chover, depois até meados de abril não caiu uma gota, depois quando cresceu começou a chover e deitou abaixo o pouco que tínhamos”, explica. Além dos cereais, o setor representa as hortícolas, leguminosas, forragens, arroz e batata.
Menos produção significa menos exportações até porque, segundo diz, a prioridade é dada ao mercado nacional em situações de aperto como a que se vive. Além disso, adianta que há agricultores a desistir do setor pela baixa rentabilidade e elevados custos de produção, incluindo de combustíveis. Pedro Dias também aponta o dedo ao Governo: “A política agrícola não tem ajudado porque dizem que há milhões, mas nunca chegam na altura certa”, queixa-se.
É que Pedro Dias critica o que considera ser uma deficiente gestão dos recursos hídricos. “Houve enchentes aqui no Norte, se tivéssemos capacidade de gerir este excesso de água para caudais e bacias, teríamos água suficiente para a agricultura”, exemplifica.
Pedro Dias dá outro exemplo de como a produção agrícola já viu melhores dias: o tomate para indústria. “Era indispensável, até meio de agosto, que a campanha superasse a do ano passado. Neste momento, posso dizer que há algumas organizações de produtores que não vão preencher a quota contratada com as fábricas“, lamenta.
Em contraciclo está a cultura do arroz, uma oportunidade de crescimento até porque países como Espanha passaram por uma seca mais grave do que a portuguesa. Este ano, o crescimento das vendas ao exterior é ainda “diminuto”, mas no próximo “se calhar temos possibilidade de crescer mais porque os mercados internacionais estão com problemas de seca e de capacidade produtiva”. Mas isso, lá está, “se fizermos uma boa gestão da água“. Nas sementes de girassol, Portugal também tem espaço para crescer pelos mesmos motivos. “Este ano conseguimos crescer cerca de 300 hectares na produção e podemos crescer mais alguma coisa”, antevê.
Os dados do INE revelam que também os fertilizantes levaram uma talhada nas exportações — menos 50% face ao segundo trimestre do ano passado, uma evolução que Luís Mira, secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), justifica com “uma maior escassez, ou aumento dos preços, das matérias-primas que entram na sua composição”. Estas duas forças têm, em grande parte, origem na guerra em dois grandes fornecedores de matéria-prima necessária à produção: a Rússia e a Ucrânia.
Ainda assim, Luís Mira traça um contributo positivo do setor. “Em todo o caso, o mais importante no panorama global é que Portugal continua a ter nas exportações de bens do setor agro um motor de crescimento económico, apesar da perda gradual de competitividade derivada de falta de empenho, visão e determinação políticas”, critica.
Mas como no estado do tempo e na agricultura, também nos dados da economia para o resto do ano há muita incerteza associada. É isso que apontam os vários agentes dos setores contactados pelo Observador e que Rafael Campos Pereira, da metalurgia e metalomecânica, resume: “Neste momento, há alguma instabilidade, há uma guerra, um aumento substancial das taxas de juro, uma conjuntura de inflação. Estamos a pagar isso tudo. O investimento baixa, o consumo baixa e é aquilo que algumas pessoas andavam a falar da tempestade perfeita. Espero que não seja, mas há alguma apreensão.”