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Do final de "Fleabag" ao recomeço de "Killing Eve": razões para amar Phoebe Waller-Bridge

Uma é escrita e interpretada pela atriz-argumentista; a outra não existia se não fosse ela. Phoebe Waller-Bridge é um prodígio da televisão contemporânea. João Bonifácio explica porquê.

“Os seres humanos erram e é por isso que há borrachas numa das extremidades dos lápis”: isto é uma piada sobre um homem condenado por sexo com animais, uma piada que ouvimos em “Fleabag”, a comédia de Phoebe Waller-Bridge que nos deixa aterrados com a sua violência emocional; por outro lado, “Killing Eve” é um drama sobre uma psicopata assassina – e faz-nos rir, graças ao humor deadpan da sua autora – que por acaso se chama Phoebe Waller-Bridge. “Fleabag” termina esta segunda-feira, dia 8 de abril, enquanto “Killing Eve” recomeçou no fim de semana, e o que retiramos destas combinações de riso e choro e terror é que Waller-Bridge merece o nosso amor (e alguma ajuda psiquiátrica).

Posto isto, uma correção: a segunda temporada de “Killing Eve” (disponível através da HBO Portugal) já não conta com Waller-Bridge – foi ela que adaptou para televisão Codename Villanelle, um conjunto de e-books de Luke Jennings, acerca de uma agente do MI5 que persegue uma assassina, encarregada de terminar pessoas poderosas. Phoebe escreveu a primeira temporada mas já não embarcou na segunda, porque precisou de tempo para criar a segunda e última temporada de “Fleabag” – a primeira pode ser vista em Portugal no Amazon Prime Video, que deverá disponibilizar a segunda em breve.

Curiosamente, foi “Fleabag” que valeu a Waller-Bridge o convite para adaptar Codename Villanelle para televisão – mais corretamente, foi a peça de teatro “Fleabag” que lhe valeu o convite. Inicialmente, “Fleabag” era para ser um sketch de stand-up, com cerca de dez minutos; mas em 2013 ela transformou-a numa peça com uma só personagem, que lhe valeu o Fringe First Award; três anos volvidos, “Fleabag” tornou-se uma série de televisão em que a personagem (Fleabag) fala (e confessa-se) para a câmara.

[o trailer da nova temporada de “Killing Eve”:]

https://www.youtube.com/watch?v=TLq2BDkCzyA

“Fleabag” – que é uma série extraordinária – não foi a única série que Waller-Bridge criou em 2016: esse foi também o ano de “Crashing”, uma comédia aparentemente sobre um grupo de nascidos na década de 1980 que, perante a dificuldade em encontrar casa própria, partilha um antigo hospital entretanto abandonado (e a cair de podre), que funciona como uma espécie de pensão.

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É lá que Waller-Bridge reencontra o seu melhor amigo, que vive com a companheira, uma mulher considerada por todos controladora e retentiva. A relação da personagem de Waller-Bridge com o seu amigo é de desafio, provocação constante e tensão sexual. Descascando a superfície, “Crashing” revela-se uma série sobre a incapacidade de uma geração de jovens adultos se tornarem os adultos que imaginaram vir a ser, de terem um emprego digno desse nome, uma casa sua, uma relação funcional.

Soa quase caricato dizer isto, mas, à beira de “Crashing”, “Fleabag” faz figura de série adulta; não que a personagem principal, desempenhada por Waller-Bridge, saiba o que quer, como o alcançar e viva em paz consigo mesma – desconfio que se esse fosse o caso então não seria uma personagem de Waller-Bridge. Mas os seus problemas têm outro peso; há menos comic relief; a dor – que em “Crashing” era apenas enunciada e carpida em grupo – é agora explícita, individual e tem pathos.

Estas são mulheres que pensam coisas horríveis, dizem coisas horríveis e têm atitudes horríveis (e raramente aceitam um não). O que significa que apesar das diferenças entre as séries, há uma linguagem comum, uma marca de Waller-Bridge – que apesar de ser uma menina bem educada, nascida na classe média muito alta, tem um talento inato para o escabroso.

“Fleabag” (a série) é sobre Fleabag, a mulher nos seus trintas que logo no primeiro episódio perde o seu namorado e está a carpir a morte de Boo, a sua amiga e co-proprietária do café que é dona, embora não saiba por quanto tempo (o negócio não corre bem). O tom da série vai enegrecendo à medida que esta se desenrola: se quase a abrir ela fala para a câmara em tom sassy enquanto é sodomizada, o desenrolar dos episódios é quase um assomar das coisas que Fleabag tem por resolver e das quais não consegue falar: ela vai correr todos os dias para o cemitério em que a mãe está enterrada, usa o sexo como não-comic relief, tem uma relação conturbada com o pai (que se vai casar novamente), uma péssima relação com a futura mulher do pai, uma relação esquisitíssima com a irmã (que é constrangida e excessivamente séria e casada com um traste).

E no entanto, em “Fleabag” há afeto e empatia humana como não havia em “Crashing” e quase não há em “Eve”. Há reconhecimento dos defeitos. Há uma procura de fugir à condenação que é esse estado de petrificação numa adolescência retardada. Há a consciência de que o sexo não resolve nada (o sexo nunca resolve nada, meninas e meninos). E há pecado e culpa tremenda que é tratada com pinças e pudor e uma enorme sabedoria narrativa. (Porque – e acho que estava a esquecer-me de dizer isto – Phoebe Waller-Bridge não é apenas uma ótima comediante e uma extraordinária argumentista – é uma enormíssima atriz.)

Phoebe Waller-Bridge

Nada em “Fleabag” se resolve em plot twists, embora haja revelações (em particular uma espécie de pecado, feio, que Fleabag cometeu e pela qual se pune e entra numa espiral destrutiva). Antes há pequenos acontecimentos, como almoços de família, aniversários, que espoletam reações incomuns em Fleabag, como roubar uma estatueta criada pela namorada do pai – o que por sua vez desencadeia uma série de outras reações na família, o que por sua vez, etc.

Em suma: “Fleabag” é assoberbada por uma avalanche de emoções contraditórias, o chão fugiu-lhe desde que a mãe morreu, não se revê na família, sente-se à parte de toda a gente, é promíscua, foge a sete pés de qualquer tipo de vínculo emocional porque, como tem medo de depender emocionalmente dos outros, confunde independência com crueldade e solidão, é tremendamente infantil e não consegue perceber quando deve parar de gozar com as pessoas, tem dificuldade em lidar com a hipocrisia social e as obrigações sociais – mas ao mesmo tempo percebemos que o humor (cruel) é uma forma de lidar com a sua sensibilidade, a sua solidão, que a leva a cometer atos verdadeiramente reprováveis.

[o trailer da segunda temporada de “Fleabag”:]

E tudo isto é, por entre as gargalhadas, tremendamente sério, tremendamente real, tremendamente complexo, numa série que mostra o universo feminino com uma brutalidade que é rara em televisão.

De certa maneira, pode dizer-se isso sobre “Killing Eve”, que se debruça sobre uma agente do MI5 (Eve, desempenhada pela extraordinária Sandra Oh, que conhecemos de “Anatomia de Grey”) que persegue uma assassina psicopata (Jodie Comer): se já é raro vermos uma personagem feminina assim em televisão, quanto mais duas – com humor negro, escassa empatia e uma desmedida vontade de levar a sua avante, dê lá por onde der. Ou seja: características que antes víamos nos heróis masculinos das séries – e que hoje as mulheres já podem assumir.

Por exemplo: numa cena de “Fleabag” vemos Phoebe na cama com o namorado, que dorme; ela masturba-se, enquanto assiste a um discurso de Barak Obama; numa cena de “Killing Eve”, Eve está a olhar para fotos de vítimas da psicopata e faz uma incisão na sua perna, de modo a estudar o ângulo do ataque à perna; de seguida pergunta ao companheiro (que é um paz de alma) como é que ele a mataria (a ela, Eve), sendo que a resposta dele é muito menos convincente do que a dela (que claramente passou algum tempo a pensar como mataria o seu rapaz).

Estas são mulheres que pensam coisas horríveis, dizem coisas horríveis e têm atitudes horríveis (e raramente aceitam um não). O que significa que apesar das diferenças entre as séries, há uma linguagem comum, uma marca de Waller-Bridge – que apesar de ser uma menina bem educada, nascida na classe média muito alta, tem um talento inato para o escabroso, o socialmente errado e para a arquitetura de palavrões capazes de deixar um carroceiro envergonhado.

O que retiramos de tudo isto é que Waller-Bridge – uma das heroínas do nosso tempo – merece todo o amor que tiverem para lhe dar, isso se sobreviverem ao susto (porque, e deixemo-nos de tretas, ver as mulheres de Phoebe assusta um pouco qualquer homem).

E é assim que chegamos a este ponto: Villanelle (a assassina psicopata) vai matar um mafioso vestida com calções de ganga, botas altas e a arma do crime no carrapito e o tempo todo não estamos a pensar que o ato é horrível e revela uma total falta de empatia humana, antes pensamos que ela é sexy pra xuxu – isto enquanto ela põe o neto do futuro assassinado a brincar às escondidas, mata o mafioso e desaparece da cena ligeiramente antes do neto regressar e dar com o avô morto.

Há mais detalhes em comum, em que se percebe o toque de Phoebe, em particular em questões de corpo: em “Fleabag”, um amante da protagonista adora os seus seios pequenos; em “Killing Eve”, uma das primeiras coisas que sabemos é que a assassina tem seios pequenos. Em Fleabag, a protagonista diz, a dada altura, “Tenho a certeza que se tivesse mamas maiores não seria tão feminista”, e como não bater palmas a esta magnífica e despudorada lata? Tal como Flea, Villanelle tem sexo pelo sexo, de forma absolutamente destituída de amor ou sequer carinho pelo parceiro sexual; numa cena hilariante, o chefe de Villanelle acorda-a – e aos dois rapazes com quem ela está; sendo que ela havia matado no dia anterior. Mas, hey, se Bond pode, porque é que ela não pode?

[o trailer da primeira temporada de “Killing Eve”:]

Outro pormenor une as séries e esse é a tremenda habilidade de Waller-Bridge para nos agarrar graças ao sentido do ritmo e do impacto de uma cena: “Fleabag” abre com a protagonista a comentar para a câmara os seus pensamentos sobre a vida, enquanto é sodomizada? OK, então “Killing Eve” abre com Villanelle a ver uma criança a comer um gelado, aproximar-se dela e derrubar o gelado sobre ela, com uma elegância de movimentos mais apropriada a uma ginasta. Isto é saber como agarrar um espectador desde a primeira cena – e isto revela muito talento.

O êxito de “Fleabag”, que começou como série de culto e acabou por tornar-se figura da época, arrastou-se para “Killing Eve”, que de repente se viu na posição de competir com mastronços como “Game of Thrones” – mas “Killing Eve” é todo um feito de escrita, diálogos, desenho de personagens e puro ludismo (a sério: o entertainment nasceu para produzir séries assim). E mesmo sem Waller-Bridge não baixa a fasquia.

O que me vale, como remate final, ao início: o que retiramos de tudo isto é que Waller-Bridge – uma das heroínas do nosso tempo – merece todo o amor que tiverem para lhe dar, isso se sobreviverem ao susto (porque, e deixemo-nos de tretas, ver as mulheres de Phoebe assusta um pouco qualquer homem).

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