Encostado à parede, com os olhos vendados, esperou a morte. O silêncio em vez do disparo trouxe-lhe o momento decisivo da sua existência. Tinha 25 anos e costuma dizer à família que, depois disso, a sua vida “é um bónus acrescido”. Nunca soube porque é que a arma se calou. Não foi assunto que lhe prendesse o tempo. Hoje, como não se cansa de repetir aos seus alunos no Instituto Superior Técnico, onde é professor catedrático, sabe que uma ideia simples pode mudar o mundo. O das energias, mas também o outro.
O caderno de encargos de António Costa Silva é tudo menos simples: o desenho do Plano de Recuperação Económica do país pós-Covid. Convidado por António Costa para essa tarefa a 24 de abril, escreveu em dois dias o roteiro principal, com o Estado como protagonista. Nada que surpreenda quem trabalhou com o gestor. “É uma pessoa brilhante, muito especial”, diz sem reservas o ex-ministro da Educação, Eduardo Marçal Grilo, que o acompanhou durante 15 anos na petrolífera Partex. Sempre foi “metódico, organizado e inteligente”, recorda Mário Paiva, jornalista angolano que esteve na prisão em Angola com o gestor. Mas já lá vamos.
Uma das maiores autoridades mundiais em energia, particularmente na área do petróleo e do gás, reconhecido pela sua visão geopolítica, António Costa Silva não será um “paraministro”. E não negociará, nem com partidos — alguns, como o Bloco de Esquerda ou o PSD, já fizeram saber em voz alta que não o aceitarão como interlocutor — nem com parceiros sociais. Também não está nas boxes de partida para vir a substituir Siza Vieira na cadeira da Economia, que por seu turno poderia ir ocupar uma eventual vaga deixada por Mário Centeno na pasta das Finanças. Essas são “especulações sem fundamento”, garantiu ao jornal Eco.
Mas quem é este independente, que António Costa atirou para o centro do palco político há três dias? Dizer que é o presidente da petrolífera Partex é acrescentar pouca coisa. Traçamos aqui o perfil deste homem em três pinceladas: Angola, a sua raiz determinante; o petróleo, a sua essência profissional; e a poesia, o seu “descanso do espírito”.
Angola: dos filmes à prisão, do fuzilamento simulado à greve de fome de 28 dias
António Costa Silva nasceu em 1952 na cidade que se chamou Nova Sintra em tempos coloniais e agora é Catabola, na província do Bié, no planalto central de Angola. Ficou desde então com “o cheiro da terra, a força da luz e os grandes espaços” dentro da pele: “Angola faz parte de mim”, disse numa entrevista a António José Teixeira, na SIC, em 2015. Começou a estudar engenharia de minas na Universidade de Luanda e foi aí que se iniciou na intervenção política. Fez parte dos Comités Amilcar Cabral (CAC), que desde o início dos anos 70 apoiavam a independência de Angola, um destino “escrito nas estrelas”.
No movimento associativo, dedicou-se a organizar ciclos de cinema — mostrou filmes italianos, franceses ou mesmo norte-americanos, Alain Resnais ou Kubrick, por exemplo, no Centro Cultural Independente — até chegar à contestação aberta do colonialismo. Depois passou para a OCA, Organização Comunista de Angola. O maoista Costa Silva seguia o figurino da época: de cabelo grande e barba farta, aplaudiu Agostinho Neto, na praça Primeiro de Maio. O primeiro Presidente de Angola declarou a independência do país a 11 de novembro de 1975 com a banda sonora da guerra civil: o som dos morteiros que caíam em Kifangondo (perto de Luanda) chegavam ao comício.
Dois anos depois, Costa Silva foi preso, a 22 de dezembro de 1977. “Não consistiu numa surpresa”, diz Mário Paiva. Avisado de que isso iria acontecer, Xíbias — assim é conhecido desde sempre em Angola (talvez por abusar da expressão angolana “xíbias”, usada nos meios mais bem educados em circunstâncias que mereciam vernáculo) — tinha passado à clandestinidade (estatuto difícil, pois sobravam pouquíssimos brancos em Luanda). O seu grupo político, que contestava a linha mais social-democratizante do MPLA, foi apanhado na onda de repressão brutal, que assassinou adversários políticos, depois do golpe de Estado falhado de Nito Alves, a 27 de maio desse ano, apesar de não ter nada a ver com os chamados “fraccionistas”.
Interrogado pelo terrível Onambwe, que queria saber “as amizades do jovem finalista de minas”, só deu uma resposta: “Não tem nada que saber quem são os meus amigos e quais são as minhas ideias políticas”. A cena é contada por Américo Cardoso Botelho no livro Holocausto em Angola. Seguiu-se a reação habitual na cadeia de São Paulo: “O espancamento, as chicotadas com o cavalo-marinho ou com fios de eletricidade, golpes de moca”, os chamados “faz-falar”.
Durante “vários dias e várias noites”, foi vítima da “máquina de tortura”, descreve Cardoso Botelho. “Nu e algemado, para que a agressão fosse também humilhação”, vê “abater-se sobre si uma violência histérica feita de pontapés, golpes com tudo o que estivesse à mão, cadeiras, mesas, bancos… não falando do terrível n’Guelelo”, instrumento que era colocado à volta da cabeça e que depois ia sendo apertado.
Esteve preso três anos, um em isolamento, sujeito aos maus tratos infligidos pela polícia política, a DISA. Cardoso Botelho relata uma conversa que teve com Xíbias no dia 5 de junho de 1978: sabia os nomes de todos os agentes que o agrediam, em particular o do “capitão Carlos Jorge, que lhe bateu com uma arma nos testículos”. Em abril de 1978 foi levado “à presença de Vale para fazer o ‘testamento’ pois o fuzilamento estava para breve”.
Algemado, foi conduzido para o “carro do cubano” de madrugada, até que mais tarde o devolveram à sua cela, inundada de um cheiro pestilento — pois nem sequer postigo para entrar a comida tinha — no chamado “corredor da morte”, no piso térreo da cadeia. Quando tentava recuperar “de oito meses de privação de luz solar”, o soldado Papo-Seco fechou-o na cela na companhia de uma multidão de piolhos.
Esse foi também um tempo de muitas leituras e há um livro de Dostoiévski que nunca mais esquecerá: Cadernos do Subterrâneo, escrito quando esteve preso na Sibéria. O hoje gestor guarda uma frase : “O homem é um animal que se habitua a tudo”. “Nós nunca entenderemos porque é que temos tanta capacidade de aguentar mesmo as experiências limite e isso é marcante para a vida”, recordou na entrevista à SIC.
Este momento traumático insere-se aí: um dia de 1978, transportaram-no numa ambulância para fora da cadeia, colocaram-lhe uma venda nos olhos e encostaram-no a uma parede. Ouviu o barulho das culatras e pensou que era o fim. Mas, depois, a arma não disparou. “Nunca soube porquê”, contou Costa e Silva nessa entrevista.
Sabia que a polícia política queria que assinasse uma declaração a dizer que era um espião da CIA, coisa que se recusou a fazer, por não ser verdade e porque então é que “estaria morto para sempre e mais valia então uma execução sumária”. Ainda hoje acredita que simularam um fuzilamento para o obrigar a assinar.
Dois dos seus poemas, escritos na prisão de São Paulo, falam desse instante crucial:
À procura de conforto
Sobre a laje da minha cela
o meu corpo dança
com a dor
Tudo é escuro
como no princípio
não há estrelas
não há tempo
Quando o cadeado roda
à meia-noite
sei que chegou a minha vez
Tantos antes de mim
tantos depois de mim
Cruzo o pátio
com as mãos algemadas
batem-me pela última vez
Quando me vendam o rosto
sei que chegou a minha hora
sorrio para mim próprio
Na noite cega
adquiri um peso maior.
Estou sozinho
com a minha vida
descem-me da ambulância
como um náufrago
ouço um rumor de gatilhos
o tiquetaque anunciado
Estou espantosamente calmo
Eu sabia
Eu sabia
Digo a mim próprio
—”Eu não tenho medo da morte”!
Será por isso que eles me pouparam?
Amo a vida
como a uma irmã
o importante é não perder
nenhum dos dias que sobram.”
(in Jacarandá e Mulemba, que assina com Nicolau Santos, em 2008)
Pensamento-morte
Penso muitas vezes na morte
Depois daquela noite.
Revejo as algemas na carne
O corpo contra a parede
O riso dos carrascos
Embevecidos com o cheiro do sangue.
Revejo a venda nos olhos
Os olhos prontos para o fim.
Revejo o som das culatras
A simulação dos estampidos
Antes do grande estampido.
Depois,
Bem, depois as armas não dispararam.
Nunca soube porquê.
Sou uma sobra do instante falhado.
Sinto que estou vivo por acaso.
Celebro a vida em cada dia que passa
A morte dorme comigo
Todos os dias
Dorme como uma pergunta sem resposta
Um adiamento um bónus de vida.
O pior que não chegou a acontecer
Transporto esta morte falhada
Que me concede vida a crédito
Nesta teia de relações misteriosas
Entre o tempo o acaso e o ser.
(in Fotografias Lentas do Diabo na Cama, livro escrito com Nicolau Santos em 2013)
Xíbias não foi fuzilado mas não saiu da prisão. Continuou a ser torturado e agredido. Em Fevereiro de 1979, percebeu que a sua falta de visão era galopante, pediu ajuda, conseguiu que o levassem para o posto de socorro e enquanto esperava para ser atendido foi novamente espancado e atirado escadas abaixo. Depois de duas greves de fome, recorda Mário Paiva, uma delas durante 28 dias, e a pressão de um movimento internacional de apoio ( Portugal incluído) que envolveu a Amnistia Internacional e a Comissão dos Direitos Humanos, os presos políticos acabaram por ser libertados.
Alguns foram enviados para Portugal. A mãe de Xíbias nasceu em Angola, deixavam-no ficar se ele quisesse. E ele quis.
Petróleo: da Sonangol à Gulbenkian, do fato de Tintim no mar do Norte às polainas anti-cobra no Brasil
Costa Silva permaneceu em Luanda depois de libertado e ingressou em 1980 na Sonangol, interrompendo a sua formação universitária. Foi aí que se começou a interessar pelos petróleos, domínio onde “é um dos mais reputados experts mundiais”, sublinha o ex-ministro da Educação e antigo administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, Eduardo Marçal Grilo, que durante década e meia teve o pelouro dos petróleos e da Partex.
Por motivos de saúde, teve de viajar para Portugal e depois para Espanha: o problema nos olhos, sequela do que passou na prisão, mantinha-se. Quase não via de um dos olhos. Os pais, que já estavam em Lisboa, não o deixaram regressar a Angola. Entrou então para o Instituto Superior Técnico, onde se licenciou em Engenharia de Minas, antes de partir novamente com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para o conhecido Imperial College, em Londres, onde fez o mestrado em Engenharia de Petróleos.
Acabou por se doutorar no Instituto Superior Técnico e no Imperial College, com uma tese sobre “O Desenvolvimento de Modelos Estocásticos aplicados aos Reservatórios Petrolíferos” e por fazer a agregação em Planeamento e Gestão Integrada de Recursos Energéticos no Técnico.
Entre 1998 e 2001 foi diretor executivo da empresa francesa Compagnie Générale de Geophysique (CGG) em Lisboa, antes de voar para Paris: esperava-o o importante Instituto Francês do Petróleo (IFP), onde assumiu as funções de diretor de engenharia de reservatórios e diretor de operações durante dois anos.
Marçal Grilo lembra como Costa Silva se destacou como árbitro internacional, dando como exemplo a sua intervenção num grande processo na Sibéria. Foi ao IFP que Rui Vilar, então presidente da Fundação Calouste Gulbenkian e o ex-ministro da Educação o foram buscar, depois de aguardarem algum tempo. Quando o convidaram pela primeira vez, Costa Silva estava há pouco tempo no Instituto e disse que não podia sair, havia que esperar. E a Gulbenkian esperou.
E não se arrependeu. Está na Partex há quase vinte anos, mantendo-se mesmo depois de a petrolífera ter sido vendida a uma empresa tailandesa no final do ano passado. “Claro que ficou como presidente, Costa Silva é ele próprio um ativo valioso da empresa“, sublinha Marçal Grilo ao frisar o papel fundamental que o luso-angolano teve neste negócio com a PTTEP, mas também em todos os acordos de concessão assinados pela Partex.
Profundo conhecedor do mundo das energias e do xadrez internacional, especializou-se na exploração e prospeção de petróleo e gás, tendo trabalhado em países como Abu Dhabi, Omã, Argélia, México, Brasil, Cazaquistão, Estados Unidos, Irão, Angola e Portugal.
Marçal Grilo ainda sorri quando se lembra das muitas viagens que fizeram juntos (ele ferrenho sportinguista, e Costa Silva indefectível benfiquista). Como a da visita à plataforma Dan Field, no mar do Norte, a uns 210 quilómetros de Esbjerg, na Dinamarca. “Fomos naqueles helicópteros Mersk e tivemos de vestir uns fatos especiais, extraordinários, completamente estanques, que se parecem com os do Tintim nas suas aventuras à Lua”. Vestiam-se “por cima de uns calções e parte de cima todos acolchoados, para manter a temperatura e flutuar em caso de queda na água”. A plataforma, impressionante, tinha capacidade para 105 pessoas e geria mais de 160 poços. “O diretor dizia que era um heliporto em cima de um hotel assente numa unidade fabril que tinha por baixo uma bomba”.
Ou como quando Costa Silva teve de vestir umas polainas para se proteger das cobras no Brasil ao observar um dos fascínios do gestor: uma sísmica 3D (simulação de uma explosão e análise das camadas geológicas através da propagação das ondas pelo solo). Um cenário completamente diferente do de Aktan, cidade no Cazaquistão junto do mar Cáspio, “onde comemos um caviar inesquecível ao pequeno almoço”. No tempo da União Soviética as regras de segurança eram tão apertadas — o complexo envolvia uma central nuclear e uma de enriquecimento de plutónio — que precisaram de um passaporte específico para entrar.
Ou ainda como quando Costa Silva, numa festa da poderosa Oman Oil Company, em Muscat, com representantes de todos os países onde tinham interesses, não deu tréguas a Marçal Grilo — o espectáculo de bailado e orquestra era ao ar livre e o administrador da Gulbenkian decidiu colocar um guardanapo nas costas para se proteger do frio. O agora conselheiro pro-bono de António Costa “esteve o tempo todo a gozar”: “Olhe que o guardanapo se vê, olhe que o guardanapo está a sair do casaco”. Não era verdade.
Estes pequenos episódios servem a Marçal Grilo para sublinhar o bom humor de Costa Silva, homem com “grande conhecimento do mundo, particularmente do Médio Oriente. “Tem um espírito muito aberto, é inteligentíssimo, muito versátil, diria mesmo politemático. António Costa está de parabéns pela decisão”, enfatiza. Costa Silva é “independente, sem qualquer tipo de condicionalismo na sua reflexão” e com uma cultura vasta, com um leque de interesses de espectro largo, desde a história à ficção, da geopolítica ao cinema, passando pela poesia”. O “primeiro-ministro não podia ter escolhido melhor”.
Poesia: o descanso do espírito, o astronauta de Novalis e Angola
Enquanto esteve na prisão em Angola, Costa Silva leu muito, “como sempre o vi fazer”, refere Mário Paiva. E escreveu. Fez dois romances, sob o pseudónimo de António Valis, manuel muhongo ou a queda do pescador (assim mesmo, em minúsculas) e desconseguiram Angola.
E fez poemas. A poesia é uma constante na sua vida. Nos livros, já publicou quatro, escritos a meias com o jornalista e amigo Nicolau Santos, presidente do Conselho de Administração da Agência Lusa — Jacarandá e Mulemba (Guimarães Editores, 2008); Aroma de pitangas num país que não existe (Arcádia 2011), Fotografias Lentas do Diabo na Cama (Arcádia, 2014); No interior da pele a geografia dos poemas (edição de autores 2018); — e no dia a dia. Por exemplo: não há festa de aniversário da mulher, sobretudo em datas redondas, que Costa Silva não lhe escreva e ofereça publicamente um dos seus poemas. “Nos seus discursos ou poemas, metade da sala chora e outra metade queixa-se aos maridos por não receberem palavras assim”, comenta um amigo.
Para o executivo petrolífero, não há nada de estranho nesta sua paixão. Numa entrevista ao Dinheiro Vivo e à TSF explicava assim no ano passado a presença da poesia nos seus dias: “A vida tem múltiplas dimensões e é evidente que a poesia é uma espécie de descanso do espírito”. Aliás, vai buscar ao romantismo alemão, a Novalis, a melhor definição do que é um engenheiro de minas: um astronauta ao contrário. “Quando se começa a olhar para a geologia do planeta, estudá-la é crucial porque percebemos a partir daí que vivemos não só num planeta extraordinário, mas que causa — do ponto de vista da beleza — inúmeros assombros“, explicou Costa Silva nessa entrevista.
Na sua poesia, que escreve onde calha, numa viagem de avião ou na sua casa em Sobral da Lagoa, em Óbidos, são vários os temas que se cruzam. O amor e as mulheres, claro, mas é Angola a omnipresente: O chão, sempre o chão a chamar-me, do fundo do tempo, confessa no poema “Bié-chão”.