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A falta de espaço na área dedicada aos doentes suspeitos de Covid-19 do Hospital de Garcia de Orta, em Almada, não permite que todos os utentes que precisem de se deitar o possam fazer. De acordo com a unidade hospitalar, esta área tem 16 divisões, para manter os doentes e casos suspeitos isolados: há oito “unidades individuais para macas”, em que é dada prioridade aos doentes “de acordo com a gravidade clínica”, e as restantes têm cadeiras, “tal como aliás acontece nos restante serviços do hospital onde os utentes aguardam por consultas e/ou exames”. Na última semana, continua o hospital, houve “períodos” em que esteve lotada, em particular ao final do dia e durante a noite.
Uma doente relata ao Observador que teve de se deitar no chão por não ter onde se deitar. Apesar de assegurar de que nunca foi dada essa indicação à utente, o Garcia de Orta assume que, nessa noite, as unidades com macas estavam todas ocupadas e que o gabinete onde a doente estava não tinha espaço para uma maca.
O caso aconteceu no dia 16 de julho. Segundo a utente, que não quis ser identificada, nessa quinta-feira começou de repente a ter dificuldade em respirar e dores no peito. Ligou para a linha SNS24 e foi aconselhada a ir para o hospital de Almada. À chegada, por volta das 15h, foi para a triagem, onde foi descartada a hipótese de infeção pelo novo coronavírus.
Ao Observador, o HGO confirma a chegada da utente ao serviço de Urgência às 15h29 e que, após avaliação pelo chefe de equipa, foi encaminhada para o “circuito não Covid da Urgência Geral, por não ter critério clínico para encaminhamento para circuito Covid“.
“Mandaram-me lá para fora, para as tendas — estavam 40º graus nesse dia —, mas estava a piorar de minuto a minuto”, descreve a doente ao Observador. Voltou para o interior do hospital e pediu para ser novamente observada, porque “não estava a conseguir respirar e sentia imensas dores”, mas foi-lhe dito que teria de aguardar. Nessa altura, de acordo com a doente, foi chamada para fazer um eletrocardiograma e, uma vez feito o exame, voltou para o exterior.
Como continuava desconfortável, a utente relata que foi mais duas vezes para o interior do edifício dizer que se sentia cada vez pior, mas de todas as vezes lhe disseram que teria de aguardar. Foi então que, perto das 18h, decidiu ir para a CUF Almada. “O meu pai teve de ir a 10km/h para a CUF, porque as dores que tinha no peito eram tão fortes que os solavancos do carro tiravam o pouco ar que tinha.” O HGO acrescenta que a doente já não estava no hospital quando foi chamada, “por ter voluntariamente abandonado” a unidade.
Uma vez no hospital privado, foi novamente vista na triagem e relatou o que se tinha passado no Garcia de Orta. “Passaram-me logo para uma médica, que tentou que eu me deitasse para me fazer o toque a nível abdominal, mas eu não conseguia estar deitada. Saltámos essa parte e passei para uma enfermaria.” Aí fez análises, um “novo eletrocardiograma” e foi medicada para as dores no peito.
“Assim que a medicação começou a fazer efeito, comecei a respirar melhor e mandaram-me aguardar”, conta a doente ao Observador. “Quando chegaram as análises, a médica disse que estava com os valores muito alterados e que era melhor fazer um raio-x.” Além deste exame, fez também uma TAC de tórax e mais análises, porque “começaram a pensar que podia ser uma pneumonia”, ainda que sem relação com a Covid-19.
Com os resultados destes dois últimos exames, a utente foi isolada e ter-lhe-ão dito que estava infetada com o novo coronavírus. “Explicaram-me que era Covid e que eu não podia ficar naquela unidade, nem em nenhuma privada mesmo tendo seguro, porque os privados não têm acordos para doentes Covid.” A CUF contactou o Hospital Garcia de Orta e deram à doente uma carta para entregar quando chegasse ao hospital, onde constava o diagnóstico: pneumonia derivada de coronavírus.
“Um buraco escuro” com uma cadeira de plástico
O Garcia de Orta confirma a chamada da CUF Almada para transferência da utente “com suspeita de pneumonia a Covid”, mas diz que ela se recusou a fazer o teste de despiste. Ao Observador, a doente nega que se tenha recusado a fazer o teste. “Eles iam fazer, mas como tinham falado com o hospital não valia a pena. Se eu fizesse na CUF, tinha de pagar 100 euros e chegando ao Garcia ia fazer na mesma.”
No hospital, fez uma nova triagem pelas 21h45, onde lhe mediram a temperatura e os níveis de oxigénio. Apesar de os valores estarem normais, a utente foi encaminhada para a área dedicada Covid-19, esclarece ainda o hospital. A doente conta que entrou neste local, passou por um corredor com várias cortinas, até que lhe abriram uma e lhe disseram: “este é o seu espaço e não pode sair daqui.”. A utente descreve-o como “um buraco escuro, que tinha cadeira de plástico” e diz que não lhe foi dada qualquer explicação. “Aquilo era a antiga sala de espera da urgência geral, onde puseram umas paredes falsas a dividir o espaço, mas o teto era comum.”
O hospital, por sua vez, refere que a doente foi colocada “numa divisão individual, com uma cadeira, tal como exigem as regras de prevenção e distanciamento na área dedicada à Covid”.
Passado algum tempo, pediu ajuda por estar com dores — “a medicação que deram na CUF deixou de fazer efeito” — e com frio. Uma enfermeira foi ter com a utente, disse-lhe que estavam na passagem de turno e deixou-lhe “uma caixa com um sumo, uma sandes e umas bolachas” e ainda um cobertor, mas não lhe deu nada para as dores. “A enfermeira dizia-me para eu me sentar e cheguei a explicar-lhe que ficava com mais dores”, conta a doente, acrescentando que esteve naquele espaço “de pé”, sem ninguém lá ir, até à chegada do médico por volta da meia-noite.
“O médico pediu para me sentar e eu disse-lhe que já tinha explicado que não me conseguia sentar, porque ficava com mais dores”, relata a utente ao Observador. “Aí já estava nervosa e só chorava. Só queria sair dali. Deram-me um diazepam e um paracetamol qualquer para as dores e o médico disse que ia ter de fazer mais exames e análises.” Foi pelo seu próprio pé, enrolada à sua manta, fazer uma angio-TAC. Fez ainda um novo raio-x, análises e um teste de rastreio à Covid-19.
O Garcia de Orta explica que foram feitas análises ao sangue, além de uma angio-tac “para exclusão de tromboembolismo pulmonar, embora muito pouco provável”. “Foi revista a TAC que trazia da CUF e considerado que não era sugestiva de pneumonia a Covid e também não evidenciava tromboembolismo pulmonar, de acordo com o angio TC efetuado no nosso hospital.”
“Jamais foi dada a indicação à utente para se deitar no chão”
Uma vez feitos os exames, a utente regressou ao gabinete onde tinha sido colocada. “Aí eu estava muito confusa, porque já me tinham dado um diazepam na CUF [além do que tomou no Garcia de Orta] e comecei a não conseguir ficar em pé.” Nessa altura, pediu uma cama para se poder deitar, ao que, segundo a sua versão, contrariada pelo hospital, a enfermeira terá respondido que não havia camas disponíveis. “Disse-me: ‘estão aqui 15 pessoas, só há três camas, portanto, se quiser, deite-se no chão‘”, conta a utente, referindo que a enfermeira ainda lhe disse que, se quisesse, que fosse reclamar à receção. “E eu acabei por dormir no chão. A medicação já era mais forte que o meu corpo.”
Situação que o Garcia de Orta nega. Numa primeira fase, em resposta ao Observador, o hospital garantiu que em nenhum momento a doente esteve deitada no chão. Confrontado com as fotografias tiradas pela própria, no chão e com uma manta, o hospital respondeu que a ordem ou sugestão para o fazer nunca foi dada. “Jamais foi dada a indicação à utente para se deitar no chão, nem qualquer membro da equipa hospitalar tomou conhecimento de que isso tivesse ocorrido”. Ao Observador, o hospital explica que foi dito à doente que no gabinete onde se encontrava “não cabia uma maca” — na área dedicada Covid a doente só teria possibilidade de se deitar numa maca — e que “se vagasse uma box com capacidade para alocar uma maca, tal seria feito”.
Fotografias tiradas pela utente mostram-na no chão, com uma manta, no gabinete de isolamento onde foi colocada. Foi lá que terá ficado a dormitar até lhe dizerem que iria alta, porque “estava em condições de recuperar em casa sozinha” — segundo a doente isso ocorreu perto das 5h.
De acordo com o Garcia de Orta, a “alta para domicílio” foi decidida pelas 4h e a doente saiu meia hora depois, sendo que iria “aguardar o resultado do teste Covid (com muito baixa probabilidade de ser positivo)“. A utente foi ainda encaminhada para uma consulta de Pneumologia, por se tratar de uma doente fumadora, medicada com antibióticos “pela suspeita de infeção respiratória, embora com parâmetros de infeção baixos” e ainda teve indicação de que, se surgissem “sinais de alarme”, deveria regressar à urgência.
O HGO refere ainda que foi dito à doente que “teria de contactar a sua equipa de família” para saber resultado do teste à Covid-19. De acordo com o hospital, é um “procedimento transversal” a todo o Serviço Nacional de Saúde, em casos suspeitos de Covid sem critérios para internamento, uma vez que a urgência “não tem capacidade para informar os utentes do resultado dos testes, [que] são dezenas ou centenas diariamente“. “O programa Trace Covid com os Cuidados de Saúde Primários serve exatamente este propósito.”
Já a doente conta que lhe foi dito que seria contactada no dia seguinte com o resultado, mas, como isso não aconteceu, decidiu ligar no sábado, altura em que lhe disseram não poderiam dizer-lhe o resultado do teste e que teria de ser a médica de família a fazê-lo na segunda-feira seguinte.
O resultado do teste à Covid-19 acabaria por ser negativo. “A explicação que me deram foi que, pelas análises, efetivamente foi [um quadro] derivado da Covid, mas que eu tive o vírus ativo num espaço temporal que não conseguem explicar, porque o teste deu negativo e mandaram-me ficar em isolamento até sexta-feira.”
“A experiência de vários meses desta patologia já nos vai permitindo ter a experiência suficiente para abordarmos o encaminhamento correto dos utentes e de facto esta doente foi orientada para a área não Covid da primeira vez e de forma totalmente correta“, considera o HGO, acrescentando que a suspeita levantada pela CUF obrigou o hospital “à abordagem da doente na área dedicada Covid (mesmo sem suspeita forte de infeção)”.