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Contratos de exploração sem estudo de impacto ambiental, suspeitas de irregularidades e populações em pé-de-guerra contra uma atividade mineira que está a dar os primeiros passos na Europa e na qual Portugal ambiciona estar na primeira linha. Ingredientes de um debate aceso que alastrou à política, sobretudo pela mão do PSD, e que levou já o Governo a uma estratégia de comunicação centrada na figura central da história, o secretário de Estado da Energia, João Galamba.
O verdadeiro protagonista desta história é um minério há muito conhecido, mas que só recentemente ganhou relevância com o apetite da indústria de telemóveis e dos automóveis pelas baterias. As baterias são, para já, a única forma de armazenar a eletricidade, que se anuncia como a energia do futuro mundo descarbonizado. De produto usado na indústria cerâmica, o lítio passou a ser descrito como o “ouro branco”, com a procura a subir, as cotações a disparar e o número de projetos de exploração a multitiplicar-se.
Em Portugal, a corrida ao ouro branco arrancou ainda com o Governo de Passos Coelho e com a atribuição de vários contratos de prospeção, incluindo o que se situa no concelho de Montalegre, assinado em 2012, e que deu, na argumentação do Governo, direitos adquiridos à empresa concessionária para a exploração. Mas se o caso da Lusorcursos é o mais polémico, não é o mais avançado no terreno, nem sequer o maior.
No meio de tanto ruído, o Observador foi procurar respostas para ajudar a perceber o que está em causa e o que pode afinal significar o lítio para Portugal.
Como o lítio se tornou o primeiro embaraço político do Governo
A contestação popular às minas de lítio previstas para várias zonas do interior, algumas inseridas em áreas de reserva natural ou paisagem protegida, não é de agora. Os protestos, os boicotes eleitorais e os conflitos judiciais entre os acionistas da concessionária de Montalegre já existiam desde 2017, quando a empresa australiana Dakota – que fez a prospeção e descobriu as reservas de lítio em Sepeda – pôs em tribunal os sócios portugueses da Lusorecursos para conseguir os direitos de exploração.
O ponto de partida para a polémica atual é a atribuição destes direitos feita no final de março deste ano por um despacho de assinado por João Galamba, secretário de Estado da Energia que tem a tutela do setor mineiro. Os contornos deste processo já tinham sido objeto de peças jornalísticas do programa Sexta às Nove da RTP antes das eleições, tendo sido noticiado o envolvimento dos sócios da Lusorecursos num mega-inquérito sobre fraudes com fundos comunitários ligado à associação industrial AIminho. Os dois sócios originais da Lusorecursos, incluindo o ex-presidente da Aiminho, António Marques, estão na longa lista de acusados pelo Ministério Público.
António Marques entretanto processou o antigo sócio na Lusorecursos, que o terá afastado da empresa detentora da valiosa licença, e as histórias sobre o processo continuaram a ser divulgadas. O atraso na anunciada retoma das emissões do programa da RTP, apresentado por Sandra Felgueiras, que foi adiada para depois das eleições, suscitou mais suspeitas, sobretudo quando o primeiro programa exibido após as legislativas apresentava duas potenciais “bombas” para o Governo de António Costa. Uma sobre o lítio e outra sobre o conflito entre o Ministério do Ambiente, que também tutela as minas, e o regulador dos resíduos.
O programa insistiu no tema, revelando que Jorge Costa Oliveira, antigo secretário de Estado da Internacionalização – que teve de se demitir por causa do Galpgate –, tinha sido contratado como consultor da Lusorecursos poucos meses antes da atribuição da licença. No episódio seguinte, João Galamba esteve em direto a exercer o direito de resposta, mas também a atacar as peças feitas no programa.
O programa Sexta à Nove tem-se dedicada à desinformação sobre a concessão mineira atribuída à empresa Lusorecursos. Foi várias vezes explicado ao Sexta à Nove o enquadramento legal aplicável, mas teimam em não… https://t.co/sYQ92YHFN4
— Joao Galamba (@Joaogalamba) October 12, 2019
Entretanto, já Rui Rio tinha questionado os motivos que levaram a RTP a suspender o programa mais tempo que o previsto, levantando a suspeita de interferência política. O PSD voltou à carga com o tema que marcou o regresso do líder do partido aos debates parlamentares durante a apresentação do programa do Governo e já esta semana anunciou a intenção de pedir as audições do presidente da RTP, Gonçalo Reis, e da jornalista Sandra Felgueiras. O secretário de Estado da Energia e o ministro do Ambiente também foram chamados ao Parlamento.
A resposta do Governo, que começou com a ida de João Galamba ao Sexta às nove, subiu de intensidade esta semana.
Depois das imagens dos populares revoltados em Boticas a rodear o carro do secretário de Estado da Energia, João Galamba esteve no programa Prós e Contras da RTP, acompanhado de especialistas, alguns que trabalham em entidades na dependência do seu ministério, como o LNEG (Laboratório Nacional de Engenharia e Geologia), e onde ouviu e respondeu aos críticos do lítio.
Na quarta-feira, o governante foi ao programa Negócios da Semana na SIC Notícias dar mais explicações sobre o tema e deu uma entrevista ao Expresso, parte da qual foi já divulgada — a parte que fala do lítio — e onde acusa o PSD de fazer um ataque “demagógico” e “ignorante” porque esqueceu os contratos que assinou e os direitos adquiridos que concedeu enquanto esteve no Governo.
Portugal tem das maiores reservas na Europa?
A ideia de que Portugal tem das maiores reservas de lítio, pelo menos da Europa, tem sido repetida, sem que se perceba bem a fonte desta informação. Pela informação recolhida pelo Observador, não parece existir uma fonte independente internacional que tenha um grau de conhecimento exaustivo das reservas. A prospeção em grande escala tem sido relativamente recente, sobretudo no caso do lítio que existe na Europa.
Há países que não revelam as suas reservas, por exemplo, a Sérvia onde se acredita que pode estar o maior depósito, e a informação existente depende de anúncios feitos por empresas que ainda não estão a explorar. Uma das fontes é o U.S. Geological Survey Minerals Yearbook, no qual Portugal surge entre as dez maiores reservas, sobretudo na Europa.
Outro dado que reforçou esta tese foi o anúncio, feito em 2018, pela empresa australiana Savannah Resources, que tem um concessão no concelho de Boticas da descoberta do maior depósito na Europa de espomudena — minério do qual se extrai lítio — com um potencial para quase 30 milhões de toneladas e uma produção de 175 mil toneladas por ano.
Os anúncios das descobertas dos maiores depósitos não se limitam a Portugal. Em Espanha, perto de Cáceres, outra empresa australiana, a Infinity, anunciou ter identificado o segundo maior depósito na Europa. Numa apresentação desta empresa, a maior reserva europeia está na República Checa.
A nível mundial, os maiores produtores estão na América Latina — Chile, Bolívia e Argentina — onde a produção é feita sobretudo a partir de salmoura, um processo que é mais fácil e barato. Mas foram, entretanto, descobertos depósitos importantes do tipo pegmatito, uma rocha onde existem minerais de lítio como e espodumena em países como a Austrália, a China, Brasil, Estados Unidos e Portugal.
Em 2017, a Dakota Minerals, empresa que fez a prospeção da Lusorecursos, tinha anunciado a identificação do maior recurso em Sepeda, concelho de Montalegre. É esta área que foi concessionada para exploração à Lusorecursos, o contrato que tem sido um dos epicentros da polémica do lítio.
Onde existe lítio em Portugal?
O relatório do grupo de trabalho do lítio aprovado no final de 2016 identificava nove áreas geográficas no centro e norte do país:
- Serra de Arga
- Barroso — Alvão
- Seixoso — Vieiros
- Almendra
- Barca de Alva — Escalhão
- Massueime − Guarda (incluindo Seixo Amarelo – Gonçalo, Gouveia, Sabugal, Bendada e Mangualde)
- Argemela
- Segura
Os contratos de prospeção já atribuídos e os pedidos em análise concentram-se nestas áreas geográficas. Em 2016, existiam 30 pedidos de prospeção de minerais que incluíam o lítio, mas tendo este minério como substância principal estava apenas sinalizados um contratos de prospeção e outro de concessão.
Desde então entraram novos pedidos, alguns de raiz e outros no sentido de incluir o lítio nos minérios autorizados ou de expandir a área envolvida. O Observador pediu dados atualizados ao Ministério do Ambiente que tutela a entidade licenciadora, a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), mas a resposta ainda não chegou. Com contratos de concessão para exploração são conhecidos dois, mas com contornos distintos.
O da Lusorecursos para a mina de Romano em Sepeda (Montalegre) que foi atribuído no final de março deste ano por despacho de João Galamba. E o da Savannah Resources na Mina do Barroso em Boticas onde o contrato já tem atribuída a exploração de minérios, mas não tem a dimensão de área que permitiria viabilizar o que a empresa descreve com o que pode vir a ser o primeiro grande projeto de exploração de lítio na Europa.
Mas de que lítio estamos a falar?
Portugal já tinha várias minas onde existia exploração deste minério que estava a ser utilizado na indústria cerâmica cerâmica ou vidreira. Mas este não é o lítio que o mundo quer e pelo qual está a disposto a pagar até 30 vezes mais do que o mero concentrado, que é o primeiro produto que resulta do processamento das rochas após a extração. É este fator que encarece a produção, na medida em que estamos a falar de passar de um primeiro nível de processamento industrial – que é a lavaria onde é produzido o concentrado de lítio, um pó facilmente transportável, mas cujo valor não é assim tão interessante – para o nível seguinte.
O que acontece agora é que este concentrado é praticamente todo exportado para a China, país onde existem as unidades industriais que permitem dar o salto na cadeia de valor que todos querem: a produção do carbonato de lítio e do hidróxido de lítio que são usados para fabrico das baterias elétricas. Este é o elo mais valioso na cadeia de valor de lítio que a Europa quer reter no seu território, numa estratégia que está a ser promovida pela União Europeia e na qual Portugal ambiciona conseguir um lugar de destaque.
Só que isso implica passar para o nível industrial, o que ainda não é feito em grande dimensão – pelo menos na Europa – e envolve o processamento químico e a construção de uma hidro-metalúrgica que pode usar no seu processo produtivo substâncias que normalmente despertam a desconfiança das pessoas, como é o ácido sulfúrico. Ainda que existam alternativas menos agressivas.
Qual é o projeto mais avançado na exploração de lítio?
Nos dois projetos mais avançados, o de Montalegre inclui uma unidade de processamento industrial, o que eleva o investimento previsto para 350 milhões de euros, mas há dúvidas sobre a existência de reservas que justifiquem a viabilidade económica de um projeto desta dimensão. Por outro lado, poucos acreditam que os promotores da Lusorecursos, empresa lançada por empresários do Norte e que está envolvida em conflitos acionistas, tenham a capacidade financeira e técnica para avançar sozinhos.
A alguns quilómetros para sudeste, no concelho de Boticas, a Savannah Resources, empresa australiana com uma dimensão ainda reduzida, mas com experiência internacional, apresenta um projeto mais credível. O arranque da exploração aguarda a luz verde ambiental e o sim final da Direção-Geral de Energia e Geologia para poder concretizar a oportunidade, sinalizada no site, de se tornar no primeiro produtor de lítio no quadro da estratégia da União Europeia para o setor.
Em declarações escritas ao Observador, o presidente executivo da Savannah Resources, David Archer, diz que o estudo elaborado por consultores independentes prevê a produção do lítio a partir da espodumena para quatro das nove áreas mineiras a céu aberto que existem na mina do Barroso. O estudo, acrescenta, terá o contributo das comunidades e autoridades locais e apresentará um projeto “que irá preencher os requisitos ambientais de Portugal e da União Europeia”. A expetativa da Savannah, condicionada às autorizações, é a de que possa iniciar operações em 2021.
A mina do Barroso representa um investimento de mais de 100 milhões de euros e promete a criação de até 300 postos de trabalho, numa primeira fase.
No entanto, não está prevista a construção de uma unidade hidro-metalúrgica que permitiria levar o lítio para o patamar mais alto que o Governo pretende. O projeto envolve uma lavaria para produzir concentrado de lítio, que seria depois transportado por camião para o porto de Leixões a partir do qual seria exportado para a China.
Mas o Executivo tem outra ambição. O secretário de Estado da Energia revelou no programa Prós e Contras que existem negociações com uma empresa europeia para instalar toda a cadeia de baterias em Portugal, incluindo a componente industrial. Essa unidade poderia ficar em Leixões e receber o concentrado de lítio de várias explorações mineiras. As contas do projeto da Savannah apontam para uma produção de 1,3 milhões de toneladas de pegamatito, a rocha onde tudo começa, por ano que pode alimentar mais de 600 mil veículos elétricos.
Governo e AICEP em negociações para desenvolver baterias de lítio
Porque é que as minas de lítio assustam tanto os locais
Portugal tem uma tradição de exploração mineira desleixada e pouco controlada pelas autoridades no passado. Há ainda várias minas que foram abandonadas após o fim da exploração sem medidas de compensação e que ainda são atentados ambientais. Tem havido também alguma dificuldade ou até negligência na comunicação por parte das empresas prospetoras junto das populações locais.
No recente programa Prós e Contras da RTP, emitido esta segunda-feira, os testemunhos das populações residentes em zonas de prospeção denunciaram abates aparentemente descontrolados de árvores para abrir caminhos para as máquinas pesadas, furos feitos para prospeção que secaram poços e nascentes e sacos de plástico com resíduos dos trabalhos deixados para trás, sem que as autoridades fiscalizem ou obriguem a intervir. Ainda que algumas destas descrições possam pecar por excesso, ajudam a explicar a desconfiança. Mas há outras razões.
O processo de licenciamento de direitos de prospeção em Portugal, e de concessão de exploração, tem um enquadramento jurídico antigo, do início dos anos 90 do século passado, que não é o mais adequado face às exigências ambientais e de salvaguarda de património atuais.
O Governo do PSD/CDS deixou uma lei quadro em 2015 para o aproveitamento dos recursos geológicos, mas não regulamentou. Nos seus primeiros quatro anos o governo de António Costa também não. Só agora está a ser regulamentado. E há decisões que têm sido tomadas ao abrigo da legislação com quase 20 anos, como foi o caso da Lusorecursos, pela qual não há necessidade de realização de estudo de impacte ambiental prévio à concessão de direitos de exploração, neste caso por 20 anos, ainda que o projeto concreto de extração tenha ainda de passar no crivo das autoridades ambientais.
O que é certo é que os ânimos se exaltaram quando o secretário de Estado da Energia fez uma visita a Boticas, concelho onde fica a mina do Barroso, imagens que voltaram a colocar o lítio e João Galamba no centro da agenda mediática.
João Galamba recebido com protestos contra lítio em visita prevista a Boticas
A concessão de Montalegre podia ser atribuída sem estudo de impacte ambiental?
É uma das fragilidades apontadas ao contrato assinado entre o Estado e a Lusorecursos para a mina Romando em Montalegre. No programa da RTP, sexta às nove, o antigo diretor-geral da Energia, defendeu qie esta concessão só devia ter sido dada após o estudo de impacte ambiental. Contactado pelo Observador, Mário Guedes afirmou não ter nada a acrescentar em relação às afirmações já feitas.
Diretor-geral até outubro de 2018, afastado por decisão do então novo secretário de Estado da Energia, João Galamba, Mário Guedes conhece bem o dossiê da Lusorecursos, já que foi enquanto esteve no cargo que a empresa fez o pedido, em abril de 2018, para a concessão da exploração. Mas o processo só ficou pronto para decisão dentro dos serviços da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) depois da sua saída em novembro de 2018.
Nessa avaliação, e na ausência de regulamentação da lei de 2015, os serviços da DGEG seguiram a legislação que define as regras para a atividade mineira, diplomas de 1990 que não estabelecem a obrigatoriedade de uma autorização ambiental prévia. O que é definido é a necessidade de a entidade concessionária realizar um estudo de ambiental para explorações com uma área superior a 5 hectares (a dimensão atual é de 15 hectares).
Mas esse passo é adotado depois de conseguida a concessão para exploração e mediante a entrega de um plano de lavra que identifique de forma concreta a dimensão da área a trabalhar e a natureza dos trabalhos que se pretende fazer. Isto porque a área abrangida pela concessão é muito extensa, mais de 800 hectares, e nem toda ela vai ser objeto de intervenção.
A exploração no terreno pode avançar sem estudo de impacte ambiental?
Não. O contrato de concessão estabelece duas condições principais que têm de ser cumpridas nos primeiros dois anos da sua vigência.
- Elaborar e obter o estudo de impacte ambiental para a extração na área identificada.
- Elaborar o estudo de viabilidade técnica e económica da exploração.
Se estas condições não forem cumpridas até abril de 2021, o Estado fica com o direito de rescindir o contrato com a Lusorecursos, ainda que haja poucos casos de rescisões por incumprimentos de calendário. A empresa terá de iniciar a exploração num prazo máximo de cinco anos.
A mesma restrição é colocada em relação ao outro projeto de exploração de lítio na mina do Barroso. Aqui a concessionária, que foi adquirida pela empresa australiana Savannah, já tinha um contrato para exploração de feldspato e quartzo, com o respetivo estudo de impacte ambiental, mas entretanto apresentou um pedido à Direção-Geral de Energia e Geologia para avançar para a exploração da espodumena, o tal minério que contém lítio, e também para aumentar a área abrangida pela prospeção para mais de 500 hectares. O pedido foi feito em julho de 2019. Este projeto envolve uma componente industrial, neste caso a construção de uma lavaria no local, e só receberá luz verde da DGEG depois de a Agência Portuguesa do Ambiente se pronunciar.
O Governo era obrigado a entregar a concessão à Lusorecursos?
O argumento tem sido repetido desde abril por João Galamba quando foi pela primeira confrontado com a pergunta. Há dois fundamentos legais para esta afirmação.
Primeiro: o contrato de prospeção assinado em dezembro pelo Governo de Pedro Passos Coelho com a então Lusorecursos lda. E este prevê:
O Estado, observado o estabelecido na alínea c) do Artigo 15 do Decreto-lei 90/90, atribuirá à Lusorecursos o direito de exploração de depósitos minerais de volfrâmio e estanho, desde que aquela os requeira dentro do período de validade do presente contrato nos terrenos do artigo 16 do Decreto-lei de 88/90.
Segundo: estes dois diplomas que estabelecem os direitos adquiridos de uma empresa concessionária.
O primeiro diploma diz que, com a outorga do contrato para prospeção e pesquisa, compete ao Estado garantir os seguintes direitos da concessionária: Obter a concessão de exploração de recursos revelados, desde que preenchidas as condições constantes das normais legais e contratuais aplicáveis. E estão fixadas no diploma 88/90, no artigo 16. Entre eles constam um plano de lavra com a descrição das instalações mineralúrgicas e das medidas de antipoluição e de recuperação de terrenos a adotar, quando for caso disso (não refere um estudo de impacte ambiental, mas há quem admita que pode abrir a porta), e um Estudo de pré-viabilidade da exploração.
A avaliação destes requisitos realizada dentro da DGEG, concluiu que a Lusorecursos cumpriu. O processo consultado pelo Observador envolve a aprovação por quatro níveis de hierarquia dentro da direção-geral, a começar pelo técnico, passando pelo diretor do serviço, pela subdiretora-geral de energia e pelo diretor-geral de energia. Quando chegou ao gabinete de João Galamba no início de 2019, já tinha os avales destas entidades.
Mas para tal, foi necessário que tivesse ocorrido uma alteração do contrato de prospeção inicial para passar a incluir o lítio e feldspato nos minérios a pesquisar. O pedido foi feito em dezembro de 2016 e a adenda foi autorizada em julho de 2017, por despacho do então secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches. Sem esta alteração, a Lusorecursos, ao abrigo do contrato assinado pelo governo PSD/CDS, não poderia ter direitos adquiridos para explorar lítio. No entanto, esta alteração é vista como normal e quase automática, sempre que uma empresa encontra na fase de prospeção um minério que não estava coberto no contrato inicial.
Dito isto, não é inédito, nem sequer raro, que um Governo não reconheça direitos adquiridos reclamados ao abrigo de contratos feitos pelo anterior Executivo. O primeiro Governo socialista anulou as subconcessões de transportes, ainda que invocando irregularidades. E o anterior secretário de Estado da Energia rescindiu um contrato de prospeção de petróleo assinado pelo seu antecessor com uma empresa de Sousa Cintra para o Algarve, invocando incumprimento de condições contratuais. Ainda que nos dois casos tenham sido usados argumentos jurídicos e contratuais, foram também decisões políticas.
O Governo cumpriu a lei, mas a lei é a adequada e atualizada?
Não. Em 2015 foi publicada a lei que estabelece as bases do regime jurídico de revelação a aproveitamento dos recursos geológicos existentes no território e mar nacionais. Um dos artigos prevê que a atribuição de concessões de prospeção e exploração “não dispensam o cumprimento das demais exigências ou requisitos legais aplicáveis, bem como da prévia obtenção das licenças ou autorizações exigíveis, designadamente, em matéria de ambiente e ordenamento do território, nos termos legalmente previstos”.
Em causa estão a prospeção a céu aberto com a construção de escombreiras em zonas altamente sensíveis do ponto de vista do património natural e comunitário. E a pressão vai aumentar. Já se sabe que uma das empresas mais conceituadas do setor, a australiana Fortescue, entregou pedidos para prospeção e exploração que envolvem áreas classificadas dentro do património mundial do Alto Douro Vinhateiro.
Mas esta lei só agora está a ser regulamentada com regras que vão ser mais exigentes do ponto de vista ambiental, em particular logo na fase de prospeção. Algumas dessas exigência foram antecipadas num despacho do secretário de Estado da Energia de abril de 2019, já depois de ter dado luz verde ao contrato em Montalegre.
Uma das novas condições é a de que a DGEG, antes de dar o parecer sobre sobre o plano anual para os trabalhos de prospeção numa área concreta, passe a ter de pedir a apreciação prévia das autoridades competentes para os impactos previstos, nomeadamente no que toca a condicionantes ambientais e de ordenamento do território. Entidades como a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) ou o ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e Florestas) serão assim chamadas a emitir pareceres na fase de prospeção, que podem assinalar condicionantes impeditivas de uma eventual exploração dos recursos. ainda que se mantenha a dispensa de estudo de impacte ambiental.
Fica ainda consagrado que cada novo plano de atividades anual de prospeção, trabalhos que envolvem a realização de furos para sondagens, só pode avançar se for feita a reposição inicial dos terrenos já intervencionados em fases anteriores. A nova legislação também irá impor a realização de avaliação de impacte ambiental prévios ao arranque de explorações mineiras que tenham uma dimensão inferior a 15 hectares, que antes ficavam ao critério da DGEG.
Estas condições serão também aplicadas ao concurso nacional para prospeção e exploração de lítio que o Governo tenciona lançar e onde também vai procurar assegurar a criação de uma fileira industrial que segure em Portugal as atividades de maior valor acrescentado neste negócio.
E as outras suspeitas em redor do contrato da Lusorecursos?
A atribuição de concessão para exploração sem estudo de impacte ambiental aprovado é uma das dúvidas deste processo, mas não é a única. A guerra jurídica movida por um dos acionistas, que foi afastado da empresa Lusorecursos e que pede a anulação da concessão, trouxe ao de cima outras circunstâncias que deixaram no ar um clima de suspeições.
Uma delas é o facto de o Estado ter assinado um contrato de concessão com uma empresa diferente da que tinha os direitos de prospeção, a Lusorecursos Lithium, que foi criada três dias antes deste ato formal. A dúvida não virá tanto por aí, até porque o quadro legal permite à empresa concessionária indicar outra para assumir os direitos de exploração. Mas um detalhe divulgado no programa Sexta às Nove suscitou dúvidas sobre a transparência do processo dentro da máquina administrativa da DGEG.
Neste caso, um mail de Ricardo Pinheiro, o sócio que se mantém na Lusorecursos, para os serviços da Direção-Geral de Energia e Geologia a indicar que a empresa que iria assinar o contrato teria uma nova designação. Este email é de data posterior a documentos da DGEG que fazem parte do processo de avaliação do pedido e onde surge já novo nome, a Lusorecursos Lithium, ou seja, antes do promotor indicar formalmente qual seria a designação.
Em esclarecimento enviado entretanto ao Observador, fonte do gabinete do secretário de Estado da Energia indica todas as datas relevantes no processo de concessão da exploração de lítio à Lusorecursos que passou pela Direção-Geral de Energia e Geologia. Incluindo a data em que foi emitido o despacho do diretor de serviços, favorável ao pedido da empresa, que foi 11 de dezembro de 2018, já depois do mail a indicar o nome da empresa que viria a ser concessionária.
Esta questão das datas foi um dos detalhes que mais acendeu a troca de argumentos entre a jornalista Sandra Felgueiras e João Galamba.
Na mesma investigação, o programa da RTP diz que o Governo foi avisado da existência de ilegalidades antes da assinatura do contrato, indicando que existia uma investigação da Procuradoria-Geral da República. Questionada pelo Observador sobre os contornos deste inquérito, a PGR ainda não respondeu.
Quem descobriu a espodumena?
A espodumena, a rocha que é a principal fonte de lítio em Portugal, foi descoberta por mineralista luso-brasileiro no século XIX. Mas a história de José Bonifácio de Andrada e Silva não fica por aqui.
Para além de cientista, era também poeta e teve um papel determinante na declaração de independência do Brasil. Originário e uma família aristocrática portuguesa, nasceu no Brasil no século XVIII, mas vem para Portugal estudar na Universidade de Coimbra.
Prosseguiu carreira de cientista e distinguiu-se como mineralista e especialista em história natural. Na última década do século XVIII iniciou uma excursão científica pela Europa patrocinada pela corôa portuguesa e a revolução francesa apanha-o em Paris. Regressou ao Brasil onde esteve envolvido no movimento que levou à declaração de independência do Brasil em 1822, tendo sido membro do primeiro Governo independente.
Atualizado com informação recebida sobre datas do processo de avaliação da concessão da Lusorecursos pela Direção-Geral de Energia e Geologia.