O som da porta daquele sótão a fechar e, depois, a trancar ainda hoje permanece na memória de Ana, de apenas 13 anos. Tinha ainda 12 quando tudo aquilo aconteceu. Lembra-se de estar num canto daquele espaço escuro com móveis velhos e a debater-se porque tinha aceitado subir até lá quando o colega de escola André, na altura ainda com 15 anos, se colocou atrás dela e João, ainda com 17, à frente. Sentiu tanto medo que só queria sair dali. Foi abusada por um e por outro, mesmo repetindo várias vezes para pararem. Foi ainda violada por um terceiro suspeito, de 16 anos, que acabara de fazer o mesmo a uma amiga no extremo oposto do sótão. Assim que abriram a porta só quis fugir dali e não contar a ninguém. Achava que assim esqueceria. Mas, semanas depois, voltaria a reviver tudo, ao perceber que tinha sido filmada e que os vídeos andavam a circular entre colegas de escola, via redes sociais e em grupos de WhatsApp.
Tinham passados dois meses daquele dia, era 28 de março de 2022. O ano letivo corria com normalidade, depois dos confinamentos determinados pela pandemia de Covid-19, e Ana não suportou mais. Ela e a amiga já não dormiam bem, tinham pesadelos e os pais nem sequer sabiam o que se estava a passar com elas. Era um segredo demasiado grave para manter longe do conhecimento dos adultos. Disse à amiga Mariana, da mesma idade, que tinham que falar com a psicóloga da escola e contar o que lhes tinha acontecido.
A psicóloga ouviu-as e comunicou o caso imediatamente à Direção da Escola, no concelho de Vila Franca de Xira. Não era a primeira vez que havia queixas daqueles alunos, algumas delas dentro da própria escola. Tinham que chamar a PSP, que perante a gravidade da denúncia comunicou logo com a PJ.
Assim que a inspetora da PJ colocou os nomes dos suspeitos na base de dados do Ministério da Justiça apareceram outros inquéritos do ano anterior por abuso sexual e coação. Nenhum deles tinha ainda chegado ao conhecimento da Judiciária — o órgão de polícia criminal responsável pela investigação de crimes sexuais. Estava aberta a caixa de pandora.
Um email enviado pela Direção da Escola a 28 de março de 2022 corroborava-se os antecedentes dos suspeitos. Nessa comunicação à PJ, o diretor da escola mostrava-se preocupado por se estarem a esgotar os dias de suspensão daqueles alunos e lembrava que já tinham sido suspensos antes por comportamentos impróprios. Temia o que podia acontecer caso eles regressassem ao espaço escolar, onde estavam as suas vítimas.
Comissão vai propor medidas para reduzir delinquência juvenil e criminalidade violenta
Segundo o último Relatório Anual de Segurança Interna, ainda relativo a 2021, a delinquência e a criminalidade entre os jovens está a aumentar. Naquele ano registou-se um aumento de 7,3% o que correspondeu a 1120 crimes praticados por menores, quando no ano anterior tinham sido 1044. Os números levaram mesmo o Governo a criar uma “Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta”, cujo trabalho deverá ser conhecido em junho.
Os amigos dos amigos
Ana e Mariana, à data com 12 anos, conheceram-se no início daquele ano letivo na mesma turma e ficaram logo amigas. Por intermédio de amigos de Mariana conheceram José, João e André que frequentavam um curso profissional na mesma escola e eram mais velhos. Dias antes daquele episódio no sótão do prédio de José, os três já tinham revelado comportamentos suspeitos. Mas os 12 anos de Ana e Mariana impediram-nas de avaliar os riscos.
Um dia, na escola, José obrigou Mariana a entrar na cabine de uma casa de banho dos rapazes. Encurralou-a e pediu-lhe que lhe fizesse sexo oral. Ela pontapeou-o tanto que conseguiu libertar-se. Ao mesmo tempo, na casa de banho das meninas, João e André tentavam fazer o mesmo à sua amiga Ana, que também conseguiu resistir.
Num outro dia, como não tinham aulas, estavam todos numas mesas junto ao campo de futebol quando João sugeriu a Ana que o acompanhasse para a zona de mato. Ali colocou-lhe a mão por baixo da roupa, nas zonas íntimas, indiferente ao pedido de Ana para que parasse porque estava a magoá-la. José chegou depois e repetiu o que amigo fazia, após ter tentado fazer o mesmo a Mariana.
Em finais de janeiro, no dia em que os três fecharam as duas amigas de apenas 12 anos no sótão, tinham-nas abordado na paragem de autocarro. Perguntaram-lhes se elas queriam esperar antes na paragem seguinte, que tinha um banco, e elas concordaram e seguiram-nos. A paragem, porém, era mesmo em frente à casa de José, que sugeriu depois esperarem os minutos que faltavam nas escadas do prédio dele.
Segundo relatou Mariana às autoridades, e de acordo com o processo no tribunal de Loures consultado pelo Observador, já estavam todos nas escadas quando José disse que precisava ir a casa buscar uma coisa. Os amigos seguiram-no, depois elas, movidas pela curiosidade, subiram as escadas até ao cimo. Quando deram por isso estavam no sótão do edifício. José retirou a chave do esconderijo (um quadro elétrico) e disse-lhes que não tivessem medo. Elas estavam curiosas com o que estaria por detrás da porta. Só no momento em que ouviu a porta fechar-se e trancar-se é que Ana percebeu que não devia ter subido as escadas daquele prédio. Ficou em pânico.
Quando ali entraram, Ana foi encaminhada para um canto por João e André. Estava tão tomada pelo medo que nem atentou na amiga, que estaria no extremo oposto a resistir à investida de José para lhe fazer sexo oral. Mariana só pensava que tinha a porta fechada e que a mochila estava do lado de fora. E que se não fizesse nada podia acontecer-lhe algo pior. Não conseguiu resistir e acabou por ser violada por José, que de seguida fez o mesmo a Ana.
Mal lhes abriram a porta, as duas raparigas saíram dali a pensar que se guardassem em segredo o que viveram, que iriam conseguir apagar tudo. Até ao dia em que começaram a ouvir piadas na escolas e perguntas indiscretas e perceberam que tinham sido filmadas por João, que divulgara os vídeos. Foi o gatilho para denunciarem o que tinham vivido.
Mariana e Ana não eram, afinal, caso único
Quando a Polícia Judiciária começou a ouvir testemunhas e pediu pormenores sobre os inquéritos abertos em nome daqueles suspeitos para obter mais informações encontrou mais quatro vítimas — três delas da mesma escola. Os restantes processos, que nunca tinham andado para a frente, acabaram por ser juntos aos de Ana e Mariana. Ainda hoje, segundo uma fonte ligada à investigação, a PJ tem dúvidas se não houve outras crianças que foram vítimas e que guardaram o que passaram num segredo perpétuo.
Um dos processos que nunca andou para a frente referia-se a Beatriz e Cátia, que tinham à data 14 anos quando começaram a ser abordadas por André e um amigo deste da mesma idade, José e João. Chegaram a ser cercadas pelos quatro e apalpadas no corpo todo. Um dia fugiram mesmo de um restaurante onde iam almoçar, depois de terem sido abordadas com o mesmo comportamento. Só quando estavam na rua e começaram a gritar é que eles as largaram. Outro dia na escola, Beatriz foi mesmo abordada por José que a enfiou na casa de banho – como faria mais tarde com Mariana. Mas Beatriz gritou tanto por socorro que ele a largou. Ficou tão assustada que nunca mais foi ao recreio, com medo de encontrar os suspeitos.
Dois rapazes detidos por violação e abuso sexual de colegas de escola entre os 12 e os 15 anos
Uma destas vítimas, nas declarações que prestou ao juiz de instrução criminal, disse que os funcionários da escola estavam a par do comportamento dos suspeitos e chegaram mesmo a intervir.
A Polícia Judiciária encontrou ainda o caso de Sofia, também de 14 anos e do mesmo curso dos suspeitos. Em finais de junho de 2021 estava na paragem de autocarro quando o colega José a chamou para subir à casa onde vivia com os tios. Quando ali chegou Sofia deparou-se com mais dois rapazes que nunca conseguiu identificar. Obrigaram-na a deitar-se no sofá, despiram-na e taparam-lhe a cara. Entre gritos e lágrimas, Sofia conseguiu ver que era José quem a violava. Só depois a deixou ir embora. Nos quatro meses que se seguiram Sofia teve pesadelos, sofreu de ansiedade, chorou muito. E só depois conseguiu denunciar o caso à polícia.
Andreia, uma quinta vítima que a PJ encontrou, tinha 14 anos quando conheceu João pelas redes sociais ainda no ano de 2021. A estudar numa outra escola do concelho, acabaria por conhecê-lo pessoalmente entre amigos. O que se passou a seguir acabaria descrito num auto da polícia como um crime de coação sexual. Assim que se encontrou a sós com ela num jardim, João arrancou-lhe a máscara da cara e beijou-a à força. Depois obrigou a sentar-se no colo dele e a colocar-lhe as mãos nas zonas íntimas. Andreia conseguiu resistir e fugir, tendo encontrado o pai nas proximidades e contado tudo. O pai e a mãe procuravam-na nas ruas da cidade por perceberem que se tinha atrasado. A mãe ainda confrontou João com o que tinha feito à filha, mas ele negou tudo.
Andreia ainda hoje tem a cicatriz do aranhão que João lhe fez quando ela se tentava libertar. Soube depois que não tinha sido a única vítima de João e, por isso, decidiu denunciar.
Dois suspeitos presos em casa e um menor institucionalizado
A investigação da PJ não chegou a estender-se por dois meses. A 20 de abril de 2022 José era detido na escola e João em casa, na presença do pai e da única advogada oficiosa que aceitou acompanhar a diligência.
Na casa de João, a PJ encontrou um computador e um telemóvel onde estavam os três vídeos, dois de Mariana e um de Ana, que circularam nas redes sociais. Havia ainda um quarto vídeo cujos protagonistas nunca foram descobertos. Na casa de José foi apreendida apenas a manta que cobria o sofá onde Sofia fora violada. O processo de André foi entregue ao Tribunal de Família e Menores. Por ser menor, foi alvo de um processo tutelar educativo.
José e João ficaram presos preventivamente no estabelecimento prisional destinado a jovens, em Leiria, até terem condições para ficarem presos em casa. A cada três meses pedem para ser libertados, mas até agora nenhum juiz de instrução lhes alterou as medidas, alegando que as provas recolhidas e os crimes que terão cometido são demasiado graves para serem libertados antes do período máximo da medida de coação.
Mariana e Ana chegaram a ser ameaçadas por colegas da escola já depois da detenção dos suspeitos. Nunca tiveram paz.
Os dois foram acusados em outubro e aguardam agora a data de julgamento. José responderá por um crime de violação, três de importunação sexual, dois de coação sexual agravada e um crime de ameaça agravada. Já João responde por três crimes de abuso sexual de criança (porque Ana e Mariana tinham apenas 12 anos), dois crimes de pornografia de menores e um de importunação sexual. Os dois arguidos, que têm agora 17 e 18 anos, são ainda acusados em coautoria de três crimes de violação agravadas e dois crimes de abuso sexual de criança na forma tentada.
André foi acolhido numa instituição enquanto decorre o processo. O seu amigo, da mesma idade, suspeito nos crimes contra Cátia e Beatriz, também foi alvo de um processo educativo.
Ana, Mariana, Andreia, Cátia, Beatriz e Sofia foram ouvidas em depoimentos agravados para memória futura. Foram sujeitas a uma perícia psicológica que concluiu que não estavam a mentir e que todas elas deviam ter acompanhamento psicológico por causa do que viveram. Continuam a ter momentos de grande ansiedade.
* os nomes usados são todos fictícios