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Em duas sessões, o coletivo de juízes ouviu João Carreira, que está acusado de dois crimes — um de terrorismo e outro de detenção de arma proibida — e 12 testemunhas. E, esta sexta-feira, na presença dos pais de João Carreira — que estiveram sempre presentes durante as três sessões de julgamento –, o Ministério Público (MP) precisou de pouco mais de 10 minutos para pedir e justificar uma pena de prisão efetiva de, pelo menos, três anos, numa prisão com acompanhamento psiquiátrico.
A sentença do processo que envolve um jovem de 19 anos, que está a ser julgado por planear um ataque à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), será conhecida a 19 de dezembro. Há ainda várias dúvidas que ficaram das últimas três sessões. As explicações de João foram, por vezes, confusas e pouco pormenorizadas e não são totalmente claras sobre as motivações e objetivos que teria para fazer este ataque.
No entanto, há uma certeza, reconhecida quer pela defesa quer pelo Ministério Público: além da perturbação do espetro do autismo, João sofria de depressão na altura em que planeou o ataque. E os meios para tratamento da saúde mental em Portugal são ainda “precários”, como referiu o MP. Aliás, João Carreira teve acompanhamento psicológico até aos 17 anos — idade em que teve alta –, e entre os nove e os 17 anos teve apenas uma consulta por ano.
As dúvidas de João: “Sinto que era péssima a minha ideia, porque moralmente é errado matar uma pessoa”
Logo na primeira sessão, ficaram algumas dúvidas sobre as respostas que João deu ao coletivo de juízes. Afinal, o jovem de 19 anos queria, ou não, colocar em prática o plano que delineou? Esta pergunta foi colocada várias vezes, mas nem por isso teve respostas esclarecedoras, ou sequer muito detalhadas. Aliás, João falou sempre muito pouco, respondendo, várias vezes, apenas de forma positiva ou negativa, sem longas explicações.
Por um lado, João Carreira explicou que o seu objetivo era matar, no mínimo, três pessoas, porque “só a partir daí é que é considerado assassinato em massa”. É que, “como disse Andy Warhol, ‘todos terão os seus quinze minutos de fama'”, acrescentou. Além disso, este interesse por assassinatos em massa começou em 2018, quando ainda estava na escola secundária.
Mas as certezas começaram a diluir-se à medida que as perguntas avançavam, sobretudo quando João começou a explicar como é que delineou o plano, como é que teve esta ideia e onde é que conseguiu arranjar as armas necessárias para o ataque na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
O plano começou a ser construído em janeiro deste ano, a pouco mais de um mês da sua detenção pela Polícia Judiciária (PJ). Os motivos são vagos: “Diria que era o facto da pressão, o facto de estar em Lisboa, de querer a atenção das pessoas da comunidade“, procurou justificar. Esta comunidade, que foi mencionada várias vezes por João, era a plataforma Discord, onde João terá, aliás, partilhado o seu plano.
E não existia nenhum alvo específico. “Não pretendia atingir ninguém em especial”, sublinhou. As respostas continuaram vagas ao longo do depoimento que foi prestando em tribunal; e, pelas poucas palavras de João, o seu plano não estaria delineado ao pormenor. A ideia, contou, “seria levar as armas para a faculdade, depois ir à casa de banho preparar-me e, depois, fazer o ataque durante cinco minutos“.
Quando foi detido, João tinha garrafas no seu quarto, que serviriam para fazer cocktails molotov. Mas aqui, mais uma vez, as respostas foram vagas, nomeadamente quando o coletivo de juízes quis saber o que ia fazer exatamente dentro do auditório que constava do plano: “Não pensei muito bem nisso. Talvez entrar no auditório, atirar cocktails molotov, atirar setas, esfaquear pessoas.”
No meio de tantas dúvidas, o coletivo de juízes insistiu também num ponto muito específico. João adiou o seu plano quatro vezes. O ataque estava, inicialmente, planeado para o dia 3 de fevereiro. Depois, foi adiado para o dia seguinte; a seguir, para dia 7; e, mais tarde, para dia 9. Finalmente, o dia decisivo seria 11 de fevereiro. “Acho que se não fosse no dia 11, não iria fazer”, justificou o jovem.
Acho que não tinha coragem para matar uma pessoa. Sinto que era péssima a minha ideia, porque moralmente é errado matar uma pessoa.”
Muitos dos pontos que constavam do plano de João eram uma imitação de videojogos — como a ideia de um ataque como o que quereria concretizar dever durar, precisamente, cinco minutos, por exemplo. E o fim que João planeava para si também era uma inspiração desses jogos, tal como disse ao juiz:
— Que fim é que imaginava para si?
— Cometer suicídio.
— Como é que pensava suicidar-se?
— Esfaquear-me na barriga.
— Como é que teve essa ideia?
— Foi num videojogo, em que ele começou a esfaquear-se na barriga e morre.
Há ainda um pormenor importante, relacionado com o momento em que a PJ já estaria a monitorizar João. O jovem confirmou que soube que estava a ser seguido por inspetores, quando entrou na loja onde já tinha ido comprar material para fazer as armas que iria utilizar no ataque. Terá sido avisado por um trabalhador e, nesse momento, saiu da loja sem comprar o resto do material. No entanto, João não terá desistido nesse momento, apesar de, alegadamente, ter percebido que o seu plano tinha sido descoberto pelas autoridades.
As testemunhas-chave. “Ele conseguia discernir o certo do errado”
Pelo julgamento passaram, pelo menos, quatro testemunhas-chave: dois inspetores e um perito da Polícia Judiciária e, ainda, uma amiga de João. Por um lado, as declarações dos membros da PJ permitiram traçar um perfil de João e perceber de que forma o seu estado de saúde mental influenciou, ou não, o plano que o levou a tribunal; e, por outro lado, o testemunho da amiga do jovem permitiu perceber que sinais é que este deu sobre o que pretendia fazer na Faculdade de Ciências.
“Desde que saiu de casa dos pais, e cá em Lisboa, é muito introvertido, muito cabisbaixo, sem qualquer interação. Quando chegou à faculdade, não interagiu com qualquer colega. Na sala de espera (antes de um exame), não interagiu com qualquer pessoa, tinha os fones nos ouvidos e trazia um capuz na cabeça”, descreveu o inspetor-chefe da PJ, Arménio Pontes. Esta análise é fruto da monitorização que as autoridades fizeram desde o momento em que receberam a informação do FBI, no dia 4 de fevereiro.
Aliás, a descrição feita pelo inspetor-chefe foi possível graças à monitorização que os inspetores fizeram no dia 7 desse mês. E, no mesmo dia, assistiram ao exame que João realizou. Já no anfiteatro, João “entrou e ficou na segunda ou terceira fila de cadeiras. Terminou o exame, já várias tinham saído e várias estavam a comentar as respostas cá fora. E ele não.”
Estes são, indicou Arménio Pontes, “um conjunto de pormenores de baixa autoestima, em que algo se passa a nível comportamental e que faria sentido, pelo que tínhamos recolhido, que estaria para acontecer.”
Também com o foco na questão comportamental, o testemunho do inspetor da PJ Luís Simas Miranda veio acrescentar mais dúvidas ao depoimento feito por João Carreia. É que, segundo este inspetor, o jovem terá feito um desabafo no dia da detenção, já acompanhado pelas autoridades. “Fogo, eu já devia ter feito isto na segunda-feira”, terá dito, em tom de frustração. “Ele estava a pensar alto, deixou passar isto, falou alto”, acrescentou o inspetor.
A questão da saúde mental do jovem foi abordada diversas vezes, quer pelo seu advogado quer pelos inspetores da Polícia Judiciária e até pelo Ministério Público. O perito da PJ Bruno Trancas deu também o seu parecer. Para o especialista, João “estava afeto de uma perturbação depressiva, que influencia as escolhas, mas esta não era de tal forma grave que o impedisse de agir de outra forma“.
Ou seja, além da já diagnosticada perturbação do espectro do autismo, o jovem de 19 anos sofria também de uma depressão, mas estas perturbações “não lhe toldavam uma distorção daquilo que era certo ou errado”, de acordo com os testemunhos prestados em tribunal.
Apesar de ter a vontade, foi adiando. Parece-me que é uma evidência, que ele conseguia discernir o certo do errado”, acrescentou.
E foi neste contexto que o perito da PJ disse ao coletivo de juízes que a inimputabilidade deveria ser afastada. “Existia algum impacto na maneira como ele vê o mundo, mas não vejo nada que leve à sua inimputabilidade”, explicou.
Já em relação à amiga de João, Rya, aquilo que transpareceu do testemunho que deu em tribunal foi que o que estava ali em causa era uma amizade mais virtual do que presencial. Os dois só se encontraram uma vez, mas falavam praticamente todos os dias através do Discord. Foi, aliás, nesta plataforma que Rya recebeu fotografias das armas que João queria utilizar no ataque à faculdade.
A jovem de 22 anos revelou que João lhe terá contado as suas intenções, em relação ao plano, e que recebeu uma mensagem com o seguinte texto: “Vou matar-te no espaço de duas semanas.” Mas, tal como o plano, também esta mensagem foi desvalorizada por Rya, que disse pensar sempre que se tratava de uma brincadeira.
Uma vez que João indicou que o interesse por histórias relacionadas com assassinatos em massa começou em 2018, a defesa trouxe como testemunhas vários professores que acompanharam este jovem durante o ensino secundário. Nenhum deles mencionou que, em algum momento, tivesse notado comportamentos estranhos ou diferentes em João Carreira. A mãe e o avó do estudante de Engenharia Informática também quiseram testemunhar, focando as suas explicações no facto de João não gostar de ver sangue.
As certezas do Ministério Público, que “não tem qualquer dúvida de que o arguido praticou um crime de terrorismo”
Depois de ouvir as explicações de João Carreira e todas as testemunhas, o Ministério Público precisou, esta sexta-feira, de pouco mais de dez minutos para explicar a razão pela qual entende que o arguido deve ser condenado pelos crimes de treino de terrorismo e detenção de arma proibida, com uma pena de prisão efetiva “não inferior a três anos e meio, em estabelecimento com acompanhamento psiquiátrico adequado”.
E parte das razões utilizadas pelo Ministério Público foram, aliás, mencionadas por João e pelas testemunhas durante as duas sessões anteriores. “O que ele pretendia era ser considerado um assassino em massa e ter os cinco minutos de fama. Ele pretendia matar pessoas, mas o objetivo do arguido era causar o pânico, era ficar famoso, era ser conhecido depois de praticar este ato”, considerou a procuradora do Ministério Público, Ana Pais.
O arguido, quando refere que queria matar, pelo menos, três pessoas, não refere o motivo, era qualquer pessoa”, disse a procuradora.
E este pormenor foi utilizado para justificar o pedido da condenação por crime de terrorismo. João não tinha um alvo específico. E, acrescentou a procuradora, “o que potencia o medo na população não é um assassinato cometido nesta pessoa ou naquela, mas sim o facto de ter vários alvos sem motivo”.
A marca de água do terrorismo é mesmo esta indiscriminação, porque qualquer um de nós pode ser o alvo desse ato. O Ministério Público entende que este elemento se verifica.”
No fim, o Ministério Público disse que “não tem qualquer dúvida de que o arguido praticou um crime de terrorismo”. João regressa ao Tribunal Central Criminal de Lisboa a 19 de dezembro, dia em que será lida a sua sentença. O seu advogado, Jorge Pracana, considerou “desmedida” a pena pedida pelo Ministério Público e, apesar de entender que João deveria ser absolvido do crime de terrorismo, não afastou a absolvição do crime de detenção de arma proibida.
Antes de terminar a última sessão, Jorge Pracana deixou ainda uma consideração sobre a atuação da PJ: “O alarme social não foi originado por qualquer intervenção pública do João, mas, pura e simplesmente, pelos elementos da Polícia Judiciária, que numa conferência de imprensa vieram anunciar a situação.”