Não teve só uma casa de infância. A mãe fê-la crescer em várias, arrendadas aqui e ali na zona da Provença, em França. À pergunta de quem era o pai, ouvia sempre as mesmas palavras: “ah, ele é ator, vive em Paris, está longe”. Conhecia-lhe apenas o primeiro e o último nome. E foi por eles que procurou pelo Facebook assim que abriu conta, tinha 17 anos. Só cinco anos depois, Justine Reglat conseguiu encontrar o pai. Através dele, a tia e a avó. Até hoje, ela é a sua única neta. “Descobri porque sou como sou”, contou ao Observador.
No início, sempre que Justine procurava o nome do pai no Facebook, não lhe aparecia qualquer registo. A mãe dela, que entretanto teve outras duas filhas fruto de outro relacionamento, não adiantava mais. Recusou sempre que os dois se conhecessem. Ela não tinha como procurá-lo pela via tradicional. Sabia apenas que os pais se tinham separado dois meses antes de ela nascer. E que ao longo da infância mudou tantas vezes de casa, que dificilmente deixaria um rasto – caso o pai a quisesse procurar.
“De acordo com a Convenção dos Direitos das Crianças [artigo 7º] qualquer criança tem direito a conhecer os pais”, refere a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos. “Se ela procurou sempre o pai, era porque sentia essa necessidade, a de conhecer as suas origens”, explica.
Justine não desistiu. Entre devaneios, festas, desabafos que publicava na rede social, de vez em quando pesquisava o nome do pai, Bruno Ramain. Em novembro de 2013 surpreendeu-se. Havia um registo com aquele nome, identificava-se como ator, a residir em Paris. A informação de perfil batia certo com os escassos pormenores que colou à memória. Enviou-lhe uma mensagem. Nada. Meses sem uma resposta e sem saber se aquele seria o seu pai, se lhe tinha respondido. Ou se a tinha rejeitado.
A socióloga Rita Figueiras, que tem estudado o fenómeno dos “media sociais”, sublinha como estes meios permitem a “autonomização do indívíduo”, dispensando a existência de “terceiras instâncias”. Se Justine tivesse que recorrer à polícia ou aos tribunais, enfrentaria obstáculos bem mais complexos do que o introduzir o nome do pai no motor de busca do Facebook. As redes sociais permitem encontrar, à distância do mesmo clique, “alguém que esteja próximo ou que esteja na China”, exemplifica.
Dois dias antes de completar os 22 anos de idade, a 1 de maio, Justine abriu a conta do Facebook e as suas emoções bloquearam. Tinha passado cerca de meio ano. Mas havia uma resposta de Bruno. “Antes ele não tinha facebook. Depois abriu conta, mas como não éramos amigos, a minha mensagem ficou escondida na categoria ‘outras’ e ele não leu”, explicou ao Observador.
Naquela noite, pai e filha tentaram pôr quase 22 anos de conversa em dia. Trocaram informações de vida no chat do Facebook até as 3.30 da manhã. “Não consegui dormir a noite toda!”, recorda. No outro dia foram mais “cinco ou seis horas” de conversa telefónica ininterrupta. “Ele contou-me tudo o que se passou. Disse-me, inclusive, que já tinha tentado procurar-me na Provença, mas que nunca conseguiu”. Nesse dia a conversa terminou com a promessa de que ele iria visitá-la. Desceria de Paris a Taulignan, na região de Ródano-Alpes, assim que pudesse.
O encontro aconteceu a 22 de maio. Ele passou quinze dias com ela.
“Divertimo-nos imenso. De facto, nós somos exactamente iguais. E também conheci a minha avó e a minha tia. E agora sei porque sou como sou, sei de onde venho e sou muito parecida com a minha ‘nova família”, contou.
Justine descobriu que é a única filha do pai. A mãe deu-lhe ainda duas irmãs, uma tem agora 17 anos, a outra 11. Descobriu também que o pai continua a ser ator e comediante. E até entrou num videoclip de um conhecido rapper, o McSolaar.
Justine vive com um português e trabalha para uma associação de proteção dos animais. Considera que o Facebook é uma rede social “que permite muitos reencontros”, mas deixa o alerta: “é preciso ter atenção ao que se publica, porque também há gente má no Facebook”. A socióloga da Universidade Católica, Rita Figueiras, também lembra que para as redes sociais “não há respostas absolutas”. “Ao contrário do passado, estas tecnologias e medias sociais alteraram tudo. Antes, todos éramos invisíveis, a menos que aparecessemos na televisão ou nos jornais. Mas estas tecnologias podem ajudar para o bem e para o mal”, explica.
Por um lado, há quem tenha o “direito de não ser encontrado”. Por outro, sublinha a socióloga, estes meios têm sido fundamentais “nas dinâmicas das relações”. E dá o exemplo. “Antes, a distância física de quem ía para o estrangeiro afastava as pessoas. Hoje as pessoas podem ver-se, conversar e até ter refeições em conjunto via Skype, por exemplo”.
O medo do abandono
Para a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos pode sempre questionar-se o que leva uma mãe a privar uma criança de conhecer o pai. “Será por motivos egocêntricos? Para benefício dela ou da filha?”, interroga. “Também há casos de mulheres que sentem que, porque os homens não acompanharam a gravidez ou o parto, eles podem vir a abandonar depois os filhos. E temem esse abandono”, acrescenta ao Observador.
A pedopsiquiatra, que não conhece o caso de Justine, revela que também é normal esta vontade de conhecer os pais surgir na adolescência. E recorda alguns casos de adolescentes que passaram no seu consultório e que são filhos adotivos. “Quando surge a vontade de ser mãe ou pai, de constituir família, surgem naturalmente algumas memórias de infância”, explica a especialista. “Mesmo em casos de pais alcoólicos ou toxicodependentes, estes adolescentes revelam vontade de os conhecer para cuidar deles”. Nalguns casos, adianta, os próprios pais adoptivos promovem esses reencontros, porque são positivos para as crianças, neste caso adolescentes.
No caso de Justine, Ana Vasconcelos lembra que a mãe não a privou completamente. “Deu-lhe o nome do pai e deixou-a estar na internet, quem sabe deixou-a procurar”, admite.