26 de Abril de 2005: o AC Milan recebe em casa o PSV Eindhoven e vence por dois zero; na segunda mão perderá na Holanda por 3-1 mas seguirá graças aos golos fora. Uma hist ória mais cinzenta decorreu em dias aproximados: a 27 de abril desse ano, Liverpool e Chelsea enfrentaram-se, com os vermelhos a passarem à justa, graças a um golo que ainda hoje José Mourinho, à data treinador dos blues, considera “fantasma”, ilegal, a bola do lado de cá da linha.
Eram as meias-finais de uma Champions que o Liverpool viria a vencer nos penalties após ter estado a perder 3-0. Foram, também, as últimas meias-finais da Champions que não tiveram a presença nem de Lionel Messi nem de Cristiano Ronaldo, a dupla maravilha que domina prémios individuais há 15 anos.
As últimas? Não, não, perdão: as últimas foram na passada terça e quarta – o que é o mesmo que dizer: pela primeira vez em 15 anos nem Messi nem Ronaldo estiveram nas meias-finais da Champions – eles que, entre ambos e nestes 15 anos, ganharam a competição por nove vezes.
Antes de mais reconheça-se o óbvio: é absolutamente extraordinário que dois jogadores tenham tido tanto domínio sobre a mais difícil das competições (e sobre todo o futebol) durante tanto tempo. Ao ponto de o simples facto de ambos estarem ausentes das meias-finais da Champions (algo que acontece com qualquer outra combinação aleatória de outros dois jogadores) nos obrigar a uma reflexão sobre a possibilidade de estarmos no fim de uma era.
Será que podemos riscar esta “falha” dos dois maiores do mundo como um erro no algoritmo, um acaso cósmico, dizer que a ausência de ambos das meias foi um efeito colateral da pandemia?
Esta última hipótese não é tão absurda quanto parece: os clubes italianos, por exemplo, estiveram (no pós-confinamento) sujeitos a um calendário brutal para acabar o campeonato – e bastou ver os últimos 25 minutos do PSG-Atalanta para ver os jogadores do clube italiano fisicamente arrasados e impotentes para travar o andamento dos franceses, fresquinhos como alfaces colhidas pela matina e ainda cobertas de orvalho.
O Barça pós-confinamento nunca recuperou a forma pré-paragem, fosse por problemas internos do clube, incapacidade de Sétien de injectar confiança e vontade ou pelo simples facto de ser um plantel curto, envelhecido e cansado das vitórias de outrora (e das derrotas recentes).
E custa defender a tese de que os poderes de Messi e Ronaldo estão a diminuir quando os números que produziram esta época continuam a ser de outro mundo: Lionel produziu 33 golos e 26 assistências em todas as competições; Ronaldo produziu 48 golos e 5 assistências (sendo que 11 desses golos foram ao serviço da selecção, veículo de que Messi não dispôs).
Mas algo mudou: Messi e Ronaldo costumavam estar rodeados de grandes jogadores, que certamente aproveitavam as qualidades deles mas não dependiam exclusivamente deles – davam-lhes espaço para fazerem a diferença e eles faziam-na, vezes sem conta. Hoje olhamos para a Juve e para o Barça e o que vemos são 10 jogadores à espera de um milagre de Ronaldo e Messi, respectivamente, como se eles pudessem para sempre produzir os números que marcaram quando tudo (treinador, táctica, colegas) batia certo.
Ambos estão numa posição inédita nas carreiras: ver os seus clubes envoltos numa tremenda tempestade, a colocar remendos em navios que parecem prestes a afundar-se. Uma síntese das notícias relacionadas com a Juve e o Barça no pós-quartos-de-final corresponde a uma enumeração de bodes expiatórios e decisões precipitadas:
– na Juve, Sarri, que nunca conseguiu impor o seu modelo de jogo, foi despedido e substituído por Pirlo, que além de ter sido o jogador com mais bom gosto em camisas da história do jogo, leva exactos zero minutos como treinador seja de seniores ou infantis; a lista de jogadores a vender que circula pelos mentideros é enorme e inclui, entre outros, Higuaín;
– no Barça já caíram o treinador Quique Sétien, provavelmente o menos culpado “disto tudo”, o director desportivo Abidal, com quem Messi se envolveu, há meses, em trocas de palavras, foi-se buscar Koeman para treinador, apesar de as equipas deste jogarem um futebol muito diferente do de Crujff e o presidente do clube colocou publicamente todos os jogadores à venda menos Messi, Lenglet, Frenkie de Jong, Dembelé, Ansu Fati e Nélson Semedo. O facto de Semedo – o pior em campo, de longe, contra o Bayern – ser visto como indispensável e Riqui Puig não diz bem da desgraça em que caiu o Barça.
Em certa medida pode dizer-se que Messi e Ronaldo foram este ano vítimas de anos de má gestão dos seus clubes: o Barça, o clube com a maior folha salarial do mundo, gasta 70% do seu dinheiro em Messi, Piqué, Alba, Suarez, Griezzman e Busquets. 70%. E mesmo assim acabou a época com, por vezes, apenas 14 jogadores seniores disponíveis e Arthur, herdeiro natural de Iniesta, vendido à Juve. Por sua vez, a Juve acumula cerca de 143 médios centro nas suas fileiras mas olha-se para a frente e há Ronaldo, o geniozinho Dybala, Higuaín com uns quilos a mais – e pouco mais. Tudo isto coloca um peso imenso em Ronaldo e Messi, que antes podiam contar-se que as suas equipas dominassem e a eles coubesse aquele passe, aquele remate de fora da área, aquela arrancada para decidir. Hoje ambos os clubes caem com facilidade às mãos de adversários menores (a Juve com o Lyon, o Barça há dois anos com a Roma, em mais uma estrepitosa derrota).
O problema é que caos desta dimensão não se resolve da noite para o dia. Será quase impossível ao Barça vender todos os jogadores que quer vender porque só há dois clubes (Manchester City e PSG) dispostos a pagar os salários que o Barça paga; e mesmo que conseguisse, era impossível conseguir substitutos à altura e mesmo que os conseguisse eles teriam de enturmar-se e formar algo parecido com uma equipa já com a época a decorrer. E isto partindo do princípio que Koeman tem esse talento – e a sua carreira não demonstra isso.
Já a Juve precisa de decidir se quer acumular jogadores genéricos (Cuadrado, Rabiot, Bernardeschi) ou apostar no futuro (de Ligt, Arthur, Dybala) e dar tempo aos mais novos para ganharem peso na equipa. Em todo o caso, estes processos são morosos – e tempo é o que as direcções não têm: os adeptos querem a Champions e querem-na já.
Só que algo mudou tremendamente desde que Messi e Ronaldo começaram. Antigamente o futebol era dominado pelos clubes tradicionais (Real, Barça, Juve, Bayern, Man United) mas com a chegada dos clubes-estado (o City, propriedade dos Emirados Árabes Unidos, e o PSG, propriedade do Qatar), que inundam os seus clubes de fundos sem fim, por forma a usarem-nos como campanha de lavagem de imagem, a ordem das coisas alterou-se: City e PSG têm inflacionado o mercado de tal maneira que os antigos clubes, para competirem, se endividaram ao ponto de agora nem sequer conseguirem crédito.
Tanto Juve como Barça estão neste pé: com plantéis envelhecidos, sem saberem que futebol querem jogar, sem dinheiro e sem crédito, à espera que as suas mega-estrelas façam milagres em todos os jogos. E de certa maneira fazem: produzir 33 golos e 26 assistências aos 33 anos e 48 golos e 5 assistências aos 35 é da ordem do milagre (ou do génio).
Mas o jogo mudou – hoje reina a pressão a todo o campo, durante 90 minutos e a começar nos da frente. Barça e Juve têm um problema: não é só Messi e Ronaldo que não defendem – Suarez e Higuain também não. E a este nível é impossível ganhar jogos só com nove homens a defender.
O tempo não perdoa – e no ocaso da carreira, inseridos em clubes envoltos em querelas, endividados e sem rumo, dificilmente Messi e Ronaldo voltarão a ganhar uma Champions ou a conquistar os prémios individuais que amealharam com aparente facilidade ao longo de 15 anos.
Chegou a hora de Neymar e de Mbappé, ou – quem sabe? – mesmo de Lewandowski. Seja qual for o próximo mago (será Neymar, claro), a hora de Messi e de Ronaldo parece ter passado, menos por culpa deles que de quem dirige os clubes que eles continuam a tentar salvar.