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Parecia a lua. Os habitantes do estado norte-americano do Montana foram surpreendidos na semana passada com um objeto branco redondo que sobrevoava os céus. Na quinta-feira, o Pentágono abriu o jogo e decidiu esclarecer que se tratava de um balão espião e atribuiu a sua origem à China. Desde aí, começou a desenhar-se um sério incidente diplomático. Pequim negou que estivesse a tentar recolher dados confidenciais e alegou tratar-se de um balão meteorológico, mas Washington rejeita esta versão. Pelo meio, foi já encontrado outro dispositivo idêntico na América Latina.
“Vamos tratar do assunto.” O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, garantiu este sábado que ponderava abater o balão. Acabou por ser isso que aconteceu a meio da tarde (final da tarde em Portugal), após Washington ter demonstrado o seu desagrado com o sucedido, sendo que o secretário de Estado, Antony Blinken, adiou uma visita que tinha agendada para a próxima semana a Pequim.
Voando até 37 mil metros de altitude, o suposto balão espião pode intercetar conversas telefónicas e captar fotografias de bases aéreas. Mas como é que conseguiu chegar aos Estados Unidos? E de que é feito? Os Estados Unidos têm razões para ficar preocupados? E por que motivo a China quereria lançar um equipamento destes?
[Ouça aqui a análise do especialista em Relações Internacionais, Jorge Tavares da Silva]
De que é feito o balão e em que altitudes circula?
Hélio. Este é o gás que compõe o balão espião, como acontece com os normais. O exterior é feito com um plástico ultra leve, sendo que traz consigo, na parte inferior, um cesto que pode transportar diferentes tipos de ferramentas (que podem ir desde câmaras, a radares até estações meteorológicas), incluindo painéis solares, que acabam por ser a fonte de energia do equipamento.
Estes balões não possuem nenhum motor, nem usam qualquer tipo de combustível. Deslocam-se graças à ação do vento, mas são capazes de realizar alguns ajustes na maneira como se movem, de forma a seguir a trajetória inicialmente planeada.
As dimensões do balão que sobrevoou o estado de Montana não são totalmente conhecidas, mas um responsável norte-americano aponta à ABC News que possa equivaler a três autocarros empilhados em cima uns dos outros. Tem, por isso, proporções gigantescas, o que conduziu a um debate sobre quando e como deveria ser abatido — em terra ou no mar. “É suficiente grande para causar danos”, comentou o porta-voz do Pentágono, Patrick Ryder.
Relativamente à sua circulação, os balões sobrevoam altitudes que vão desde os 24 mil até aos 37 mil metros (entre 80 mil a 120 mil pés). Como refere o Guardian, a altitude relativamente elevada faz com que não se cruze (nem atrapalhe) as rotas comerciais, já que a maior parte das companhias aéreas não voam acima dos 12 mil metros. Passando despercebido quer por satélites, quer por aviões, estes balões podem ficar durante meses no ar.
Qual foram as trajetórias dos balões?
Partindo da China, o objeto atravessou o Oceano Pacífico e entrou nos Estados Unidos pelas Ilhas Aleutas (que pertencem ao Alasca). Depois, sobrevoou o espaço aéreo canadiano até chegar à cidade de Billings, no estado do Montana.
Nunca se soube exatamente em que Estado estava a sobrevoar o balão, já que as autoridades norte-americanas recusaram partilhar, ao longo dos dias, a sua localização. No entanto, a Autoridade Federal de Aviação (FAA) dos Estados Unidos ordenou este sábado à tarde a suspensão temporária de voos nos aeroportos de Wilmington, na Carolina do Norte, e de Charleston e Myrtle Beach, na Carolina do Sul, presumindo-se assim que o dispositivo estivesse a passar por aqueles estados costeiros.
It was just confirmed that the Chinese government currently has a spy balloon flying over the US which shut down the air space over Billings yesterday. This is footage from our reporter Travia outside the @KULR NBC studios of the ballon. (1/2) pic.twitter.com/uhjVeLk69C
— Bradley Warren (@bradmwarren) February 2, 2023
O balão foi depois abatido este sábado por volta das 14h45 (mais cinco horas em Lisboa), já a sobrevoar o Oceano Atlântico.
Sobre o balão que foi encontrado na América Latina ainda não é clara qual a trajetória que realizou ao longo destes últimos dias.
A questão que opôs democratas e republicanos
Vários membros do Partido Republicano apelaram, nos últimos dias, a que o balão fosse abatido o mais rapidamente possível. O ex-Presidente e atual candidato às eleições de 2024, Donald Trump, apelou a que Biden reagisse com celeridade.
Donald Trump Jr., filho do ex-chefe de Estado, chegou a propor que os habitantes do Montana abatessem por eles mesmo o balão. “Se Joe Biden e a sua administração são demasiado fracos para fazer o óbvio e disparar contra um balão de vigilância inimigo, talvez devamos deixar que as boas pessoas do Montana façam o que devem fazer… Imagino que têm capacidade para o fazerem por si próprios.”
No entanto, a administração Biden, por questões de segurança, acabou por abater o balão apenas quando este sobrevoava o Oceano Atlântico.
Estes balões espiões são comuns?
O porta-voz do Pentágono, Patrick Ryder, já tinha assegurado, na quinta-feira, que este caso não é inédito. “Foi observado nos últimos anos, mesmo antes desta administração [Biden]”, comentou. No entanto, costumam passar despercebidos à generalidade da população, seja por não serem detetados, seja por questões de segurança interna.
Recentemente, o Pentágono voltou a utilizar estes balões, mas tende a fazê-lo dentro do espaço aéreo norte-americano. Para fins de espionagem, este método era utilizado com grande frequência durante a Guerra Fria quer pelos Estados Unidos, quer pela União Soviética. À Reuters, Craig Singleton, um especialista em assuntos relacionados com a China, sublinhou que consistia numa forma de recolher informações confidenciais relativamente barata — e que passa muitas vezes despercebido.
No entanto, a história dos balões enquanto forma de espiar não é de agora. Foram usados pela primeira vez em 1794 na Batalha de Fleurus, na sequência das Guerras Revolucionárias geradas pela Revolução Francesa. O exército francês enfrentava as tropas austríacas e holandesas, em 1794, quando decidiu inovar e enviar um balão para estudar o posicionamento das tropas inimigas.
A iniciativa francesa acabou por ter sucesso, já que o exército acabou por vencer a batalha. Anos mais tarde, os balões também foram utilizados durante a Guerra Civil norte-americana.
Por é que a China mandou o balão?
Não é claro o motivo pelo qual a China decidiu enviar o balão, sendo que o país se refugia no argumento de que a sua utilização tinha somente fins científicos. Em comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês também critica “alguns políticos e meios de comunicação social dos EUA que estão a usar o incidente como pretexto para atacar e difamar a China”.
“A China cumpre sempre estritamente o direito internacional […] e nunca violou o território e o espaço aéreo de um país soberano”, assegurou a diplomacia de Pequim, que voltou a lamentar a “entrada involuntária do dirigível no espaço aéreo dos Estados Unidos devido a força maior”.
Mas vários analistas consideram improvável que se tenha tratado de uma “entrada involuntária”, aliando-se ao facto de os EUA já terem condenado o episódio “inaceitável”. Ao Guardian, John Blaxland, professor de segurança internacional na Universidade Nacional Australiana, até diz que a China sabia que o balão ia ser apanhado e eventualmente abatido.
“É difícil pensar que eles não sabiam que ia ser detetado”, nota John Blaxland, que explica que o “espaço aéreo é tão estudado pelas autoridades civis de aviação norte-americana, pela força aérea, pelos canais que monitorizam o Espaço e o tempo — é um espaço aéreo extremamente escrutinado”.
Outro motivo apontado por John Blaxland prende-se com o facto de a China querer mandar um sinal para os Estados Unidos. Não apenas para começar a semear a desconfiança, como também para mostrar que Pequim anda a par e passo com os avanços tecnológicos norte-americanos. “As agências de segurança chinesas são mestres a copiar. São muito muito boas a estabelecer que tecnologia é que usam e qual é que eles vão replicar.”
Arthur Holland Michel, especialista em questões de segurança do think tank Carnegie Council, vai mais longe e diz que “é possível” que se trate de uma encenação. “A China pode estar a usar o balão para demonstrar que tem uma capacidade tecnológica sofisticada para penetrar o espaço aéreo norte-americano sem risco de uma escalada séria. Nesse sentido, o balão é realmente a escolha ideal”, disse à BBC.
A reação dos EUA: escalada da tensão?
Embora possa não ser interpretada como uma “escalada séria”, o episódio aumenta a tensão nas já delicadas relações entre os Estados Unidos e a China. Em termos diplomáticos, há várias questões que afastam as duas potências: o conflito na Ucrânia (e o apoio tácito à Rússia), a possível invasão de Taiwan e uma guerra comercial.
O secretário de Estado, Antony Blinken, cancelou a visita oficial a Pequim, justificando-o com o incidente diplomático. Num comunicado, o chefe da diplomacia indicou ter tomado “boa nota das justificações apresentadas pela China”, mas sublinhou que se tratou de um “ato irresponsável e uma clara violação da soberania dos Estados Unidos que mina o objetivo da viagem”.
“Não penso que o incidente vá melhorar as relações bilaterais”, afirmou Yun Sun, especialista do think tank Stimson Center à NPR, desdramatizando, contudo, o sucedido. Mas uma coisa é certa: “Se os chineses priorizarem a melhoria dos laços, terão de se envolver em mais iniciativas diplomáticas”.
Sobre a visita de Blinken, a professora na Universidade da Califórnia, Susan Shirk, assinala, em declarações à NPR, que os dirigentes da China adotarão agora uma “abordagem bastante discreta” e tentarão “colocar a viagem de volta no calendário o mais rapidamente possível”. Mas terão de se esforçar — e dar algo em troca aos norte-americanos.