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MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

“E no palco? Como é que vai ser quando subirmos ao palco?" As dúvidas que assombram as artes performativas

As regras para o regresso, a instituição de um "estatuto do artista" e o futuro incerto: as angústias e as vontades de quem quer voltar a olhar o público nos olhos.

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Volta não volta, chove em palco. A verdade é que nunca parou de pingar e os remendos têm um prazo de vida. E esta não é uma daquelas metáforas sobre os benefícios da pluviosidade que resgatam os campos e as planícies da aridez, nada disso, esta é uma metáfora em que as gotas são gritos de revolta e punhos erguidos de contestação.

Estamos pois num daqueles momentos em que os profissionais deste sector se unem para dizer o que sempre vão tentando – nos intervalos dos ensaios, na pausa para almoço em mais uma digressão, no final do quarto espectáculo que este ano estão a fazer – dizer: ninguém nos respeita.

As artes performativas pararam praticamente a 100%, o que significa insegurança para o que se avizinha e, em alguns casos, falta de comida na mesa. Porque muitos dos profissionais deste setor não são, por exemplo, abrangidos pelo apoio do Estado aos trabalhadores independentes, uma vez que não lhes é reconhecido o estatuto de intermitência, ou seja, muitos deles não têm três meses de obrigação contributiva seguidos ou seis meses interpolados.

O momento assemelha-se, por isso, à grande contestação de 2018, ano em que se criou a Comissão Informal de Artistas, que chegou a reunir com o primeiro-ministro para discutir o muito criticado modelo de apoios sustentados da Direção Geral das Artes para o quadriénio 2018-2021. E vem também na sequência do aparecimento da Comissão de Profissionais das Artes que, no final de 2019, voltou a manifestar-se perante o atraso na divulgação dos resultados dos apoios da DGArtes para o biénio 2020-2021, mais o elevadíssimo número de estruturas que foram consideradas elegíveis, mas a quem o dinheiro não chegou.

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Linha de Apoio de Emergência ao Setor das Artes chega a 311 projetos

A crise provocada pela Covid-19 veio salientar todas estas questões e impulsionar uma série de iniciativas que, à impossibilidade de realizar manifestações na rua, têm acontecido sobretudo online. Há cerca de três semanas, formou-se mais um grupo informal que reúne artistas da área: falamos da Ação Cooperativista – Artistas, Técnicos e Produtores que, juntamente com as diversas estruturas de representação onde se incluem o CENA-STE, a REDE, entre tantas outras entidades e artistas a título individual, tem vindo a exigir diálogo com o Ministério da Cultura e uma série de medidas de acordo generalizado, tais como a criação de um estatuto específico de intermitência ou, pelo menos, a flexibilização no acesso a medidas de apoio social; o pagamento das atividades canceladas pela pandemia; manter os apoios obtidos pelas estruturas independentemente de não conseguir cumprir as suas atividades; esclarecimentos e medidas concretas para o reatamento da atividade e para a reabertura dos teatros.

As salas de espectáculo vão ter, se nada se alterar, a possibilidade de abrir a 1 de junho com lotação reduzida e distância de segurança entre espectadores, mas estão a suceder-se os teatros que empurram esse momento para a rentrée da temporada 2020/2021, como que a esperar melhores dias, com menos incógnitas e limitações num reencontro do teatro e da dança com o público.

Concurso da DGArtes de apoio a projetos abre este mês com 2,8 milhões de euros, diz ministério

Os apoios de emergência de duas entidades privadas como a GDA – Gestão de Direitos dos Artistas e a Fundação Calouste Gulbenkian já foram divulgados, e esta quarta-feira foi feito o anúncio de apoio a 311 das 1025 candidaturas (das quais apenas 636 foram consideradas elegíveis) à Linha de Apoio de Emergência ao Setor das Artes, que tinha inicialmente previsto um valor total de um milhão de euros para esta situação pandémica, que acabou por ser fortalecido em 700 mil euros, perfazendo um total de 1,7 milhões. À data de fecho deste artigo, os resultados da Linha de Apoio de Emergência ao Setor das Artes ainda não tinham sido comunicados às estruturas.

Para já, a contestação fez com que o Ministério da Cultura, em conjunto com o Ministério das Finanças e o Ministério do Trabalho, avançasse para a formação de um grupo que vai analisar a situação profissional do setor das artes. Vai reunir-se de duas em duas semanas. Por enquanto, os artistas, continuam à espera. E continuarão a fazer barulho, dizem-nos. Foi com alguns deles que falámos, representativos de diferentes áreas criativas, idades e realidades.

Filipe Abreu, ator

“O Ministério da Cultura não nos conhece”

Há gente que se reencontra a plantar alfaces. Quando a pandemia começou a ganhar força, Filipe Abreu fugiu para Salvaterra de Magos, onde o pai vive. Foi para uma espécie de terapia entre a botânica e a jardinagem. Só há duas semanas é que o fundador e membro da [In]quietArte – companhia que tem a meias com Leonardo Garibaldi – e da Companhia Cepa Torta – a partir da qual realiza o projeto Esta Noite Grita-se, Festim de Leituras de Textos de Teatros – veio para Lisboa e sentiu o peso da quarentena.

Antes de ser decretado o estado de emergência e de a Câmara Municipal de Lisboa ter ordenado o encerramento temporário dos teatros – algures entre 12 e 13 de Março – já o mentor do Esta Noite Grita-se havia decidido cancelar a leitura de “Boa Noite Mãe”, de Marsha Norman, o terceiro texto da temporada em questão. Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, conseguiram pagar a toda a equipa o trabalho até ali desenvolvido. E a verdade é que esta é uma entidade privada que Filipe Abreu, em tom meio sarcástico, apelida de “informal Ministério da Cultura”. Filipe recorda que seria à boleia da Gulbenkian que levaria “Hamlet”, com a Filho da Meio, a Ponte de Lima; e no final de Abril, com Leonardo Garibaldi (a encenar) estreariam “A vida e morte do meu cão Juno”.

“Como é que se aumenta essa reputação da importância da cultura sem ser dando cultura? Só se faz isto promovendo desenvolvimento de públicos, uma relação mais próxima, promovendo hábitos culturais"

Mas não é isso que faz com que Filipe desligue o microfone da reivindicação. No final do ano passado, foi um elemento central na fundação da Comissão de Profissionais das Artes. Perante a quantidade de estruturas elegíveis que não foram cobertas pelo dinheiro previsto pelo concurso, era “necessária uma reação conjunta”, lembra. Filipe Abreu redigiu então uma carta que pudesse ser abrangente e que fosse entregue ao Governo como sinal da discordância dos profissionais:

“Na altura surgiu-me esta coisa de escrever um documento, generalista o suficiente para todos concordarmos. Há coisas base, como a que surgiu nas últimas semanas, esta coisa de ter que existir um estatuto de profissional das artes, uma coisa que proteja este estatuto de intermitência e estes recibos verdes. Ou seja, nós entramos no ‘ou-ou-ou’, mas o que sabemos é que precisamos de uma mudança no nosso estatuto de trabalhador. Esse texto surgiu numa tentativa de unificar o setor e que fosse acessível, era uma questão de comunicação. Na Comissão de Profissionais das Artes percebemos que o Governo respondia à opinião pública, sob a forma de artigos de comunicação social”, explica.

Nas recentes semanas reaproximou-se da contestação, mais que não seja, voltou a ter vontade – será mais justo dizer força? “Está-se a voltar a denunciar aquilo que já se sabia que não estava bem: a suborçamentação, a ausência de políticas culturais, a precariedade e inexistência de um mapeamento do setor. Portanto, o Ministério da Cultura não nos conhece. E, claro, não está a fazer nada. Se pensarmos no valor disponibilizado pelo Governo para esta situação tão específica, quando em Itália há 280 milhões, um país que está como está…”, afirma.

Insistindo na dimensão “pouco inclusiva” dos apoios criados pelo Governo para trabalhadores independentes através da Segurança Social, o ainda jovem ator garante que é preciso alertar o poder que o setor “está a definhar”, que há pessoas para quem não está a ser possível “ter uma vida digna”, que há pessoas dependentes das famílias, com filhos.

“Em relação ao Ministério da Cultura, o que temos visto é um Ministério que nos diz: ‘pois, estamos a fazer coisas’. Percebo que uma pessoa neste cargo está numa posição entre defender o Governo, defender o Ministério e defender o setor, só que o que vemos é um constante defender do Governo e, às vezes, do Ministério. Se eles dissessem: ‘há problemas’, nós diríamos: ‘uau’. Alguém, que nos tutela, que percebe e sabe os problemas pelos quais estamos a passar. Que é o primeiro passo para resolvê-los. Mas não é isso que se passa, há um discurso duplo, sentimo-nos todos desvalorizados e há uma pessoa naquele cargo que, apesar de ser bastante inteligente e culta, parece funcionar como uma espécie de fantoche do Governo”, defende.

“Uma estrutura pode não querer desenvolver públicos e não pode ser prejudicada por isso”, diz Filipe Abreu (foto de Vitorino Coragem)

Para Filipe Abreu, mantém-se a ideia de que a cultura não está de braço dado com os seus cidadãos, que não é essencial, que não é um direito: “Como é que se aumenta essa reputação da importância da cultura sem ser dando cultura? Só se faz isto promovendo desenvolvimento de públicos, uma relação mais próxima, promovendo hábitos culturais, etc. Ora, se uma estrutura independente, já reduzida, faz uma candidatura a um apoio da DGArtes baseada na criação, como é que querem que se faça desenvolvimento de públicos? Onde é que está o dinheiro para contratar uma pessoa que faça esse trabalho? E que faça de forma séria e profunda, não é telefonar às pessoas para ver como se enche a sala logo à noite. Mais: uma estrutura pode não querer desenvolver públicos e não pode ser prejudicada por isso”.

Relativamente aos próximos tempos, o ator considera que há possibilidades para se fazer teatro respeitando as normas de segurança sugeridas pela DGS. Só não sabe se vale a pena: “O teatro com distância entre os atores na contracena existe há muito tempo, com uma estilização do gesto, da cenografia, que os mantém afastados. Mas, por exemplo, o espectáculo que estou a criar com o Leonardo, que tem uma ideia de teatro participativo, faz sentido fazer-se na mesma? A pergunta que me fica é essa: como? E se, depois, conseguirmos uma série de medidas concretas que salvaguardem as medidas sanitárias, vale a pena o esforço? Ou seja, seguir com os projetos que estavam planeados entra naquela pergunta de: ‘o que escrever depois de Auschwitz’? Se fosse para sempre tínhamos que nos adaptar, em não sendo se calhar mais vale esperar, não sei se devemos”, desabafa.

Teresa Coutinho, atriz e encenadora

“Há medidas que têm de ser tomadas já”

Teresa Coutinho vive sozinha e bem sabemos como a solidão proporciona a reflexão. Estava envolvida num projeto como intéprete, ia estrear uma criação no TBA (chamado “Solo”) – e a data de estreia inicial coincide com o dia em que conversámos com a artista – e ainda teria uma outra criação para estrear no CAL, em Setembro. “Felizmente tinha um ano muito cheio. Mas posso dizer que os meus rendimentos simplesmente desapareceram. Recebo pelo que faço, ponto final. Já existia em mim esta vontade de contestar, mas acho que esta situação funcionou como um despertar para toda a fragilidade em que este setor está assente. Acho que a crise da Covid-19 veio pôr uma lupa na fragilidade estrutural da maneira como a cultura é tratada em Portugal”, diz-nos via Zoom.

Já aquando do movimento de protesto de 2018, Teresa Coutinho tinha estado presente, como membro da Comissão Informal de Artistas. Agora, é um dos elementos da Ação Cooperativista. Sejam quais forem as estruturas informais que apareçam para pressionar o Ministério da Cultura, o que é importante é que os artistas suprimam as suas diferenças estéticas e os seus posicionamentos distintos perante como se deve fazer arte, recorda. Há razões maiores, razões que puxam pela ideia de união e coletivo:

“Antes de querer reivindicar o que quer que seja, é preciso olhar e fui estando atenta. Há uma ideia que me comove que é a ideia de coletivo e de união e que, reconheço, que atualmente são utilizadas de uma forma um pouco desvirtuada, mas são palavras que, para mim, são de uma enorme abertura e poesia. Acho que a união, embora possa ser uma utopia, é o que tem pautado estes movimentos de resistência no setor da cultura e das artes”.

“Nunca houve uma verdadeira política cultural para o país, desde pequenos devíamos perceber que temos direito a ver espectáculos, a ler livros, a ouvir música. E como isso é essencial para a formação de um cidadão. Enquanto isto não acontecer estaremos sempre a tentar salvar um barco que está rasgado”

Apelida de “patético” o valor que a Linha de Apoio de Emergência ao Setor das Artes disponibilizou quando, comparado, por exemplo, com o investimento feito pela Fundação Calouste Gulbenkian ou pela GDA. Para a criadora, não é admissível que o Ministério da Cultura mantenha esta “postura pouco ativa”, permitindo que a burocracia seja motivo para deixar os profissionais do setor neste “sítio totalmente incerto”:

“Aquilo que me parece é que há medidas que têm de ser tomadas e, numa situação de calamidade como aquela que estamos a viver, há medidas que têm de ser tomadas já. É por isso que estamos tão revoltados, porque o Ministério da Cultura está a agir como se não estivéssemos a viver uma pandemia. Acho que a questão do Rendimento Básico Universal é uma questão fulcral a ser considerada, para proteger todos os trabalhadores independentes, e não apenas os que são afetos às artes. E depois, é também preciso perceber quem é que são os profissionais deste setor, há um desconhecimento total do território artístico”.

Além do desconhecimento do meio por parte da tutela, que parece ser reconhecido por grande parte dos entrevistados, Teresa Coutinho também alerta para a inexistência de um “verdadeiro pensamento político cultural”: “Nunca houve uma verdadeira política cultural para o país, desde pequenos devíamos perceber que temos direito a ver espectáculos, a ler livros, a ouvir música. E como isso é essencial para a formação de um cidadão. Enquanto isto não acontecer estaremos sempre a tentar salvar um barco que está rasgado”, afirma.

Ainda assim, continua a tentar navegar. Sabendo que não podem existir espectáculos iguais àqueles que iam acontecer, que estavam a ser criados, que tinham uma data de apresentação, Teresa Coutinho  acredita que voltarão a cena com um mundo totalmente diferente, mas voltarão. “Ainda quero muito apresentar o meu espectáculo, mas vai ser radicalmente diferente. E, ainda por cima, no meu caso, há a ironia de se chamar ‘Solo’, essa coincidência interessante. Mas é claro que o espectáculo vai ser influenciado por ter sido interrompido, por este tempo que separa o momento em que o imaginei e o momento em que vai ser apresentado”.

“Aquilo que nos espera é muito complicado”, diz Teresa Coutinho

Quanto à contestação que agora se vive, não terá a atriz receio que, como quase sempre tem acontecido, assim que a possível normalização da atividade regresse e os artistas voltem à velocidade que tanto caracteriza a profissão, as vozes protestantes percam volume? “Tenho, sim. O poder político corre, mete uns pensos rápidos e a coisa esmorece. Acho que, neste caso, talvez não aconteça, porque aquilo que nos espera é muito complicado. Acho que não sabemos como é que vai ser este inverno, se calhar sem vacina, e, portanto, isto é tudo um bocado futurologia, de que precisamos para nos agarrar a alguma coisa. Mas a crise vai continuar e o próximo ano será pior. E a contestação só pode adensar-se”, reforça.

Miguel Jesus, darmaturgo e encenador

“Temos que encontrar estratégias que ninguém conhece”

Membro da direção da cooperativa do Teatro O Bando, situada no Vale dos Barris, em Palmela, Miguel Jesus teve o infortúnio de ver no primeiro dia de ensaio para o seu próximo espectáculo o primeiro dia de isolamento. Antes disso, tinham feito três ensaios mais exploratórios, com experiências, para o elenco também se conhecer e o encenador revelar umas ideias que tinha. Depois, prosseguiram os ensaios por Zoom. E assim têm continuado, três horas por dia, porque as costas e os olhos não aguentam mais. E o curioso é que o espectáculo parte de uma ideia que Miguel Jesus teve há já alguns anos – também motivado pelo facto d’O Bando habitar um terreno extenso e no meio da natureza que é Vale dos Barris – e que se resume assim: “Como é que começamos um espectáculo que está a 100 metros de distância do público?”.

Portanto, de repente, as condições sanitárias e o distanciamento entre o público viram dramaturgia. É claro que, de certa maneira, ainda bem que a pandemia os apanhou no início do processo: “Mais tarde talvez já tivéssemos fixado outras ideias e talvez fosse mais difícil mudar”, admite. Estão a trabalhar a partir de “Um Bailarino na Batalha”, de Hélia Correia, e a previsão da estreia é 25 de junho. Não querem fugir muito a essa data, embora admitam que possa ter que ser adiada para julho. E tudo faz parte de uma decisão que a companhia de Palmela tomou em consciência:

“Aqui n’O Bando decidimos que a nossa atividade continuava online. Primeiro para não nos desvincularmos do nosso público e para as pessoas – aquelas que estão em atividades connosco – não sentirem que, por uma coisa destas, nós as abandonamos; depois, porque também precisamos, há uma necessidade psicológica e emocional, somos criadores, artistas, artesãos, no momento em que deixamos de trabalhar com as mãos e com os corpos, começamos a estiolar; e ainda porque há uma série de compromissos para com as pessoas que estão connosco, O Bando é uma cooperativa, e temos aqui pessoas que não têm nada que ver com a arte”, explica.

“Temos que garantir que o nosso público está connosco e que isso gera a pressão suficiente para que o Estado compreenda a importância da nossa existência."

Ao mesmo tempo, apesar da opção tomada pel’O Bando, Miguel Jesus admite que qualquer obrigatoriedade em utilizar a distância de segurança e toda a questão pandémica na arte não faz sentido, sugerindo que seria algo bastante castrador. O mesmo Miguel Jesus que, em 2014, à boleia dos 40 anos da cooperativa, escreveu “Quarentena”. Não havia confinamentos, nem máscaras, era antes um desvario que colocava 40 pessoas em cena, em que cada uma trazia as palavras de um outro espectáculo da companhia.

Miguel Jesus, que admite ter sido influenciado pelo fundador d’O Bando e eterno diretor artístico, João Brites, sempre disse o que achava que devia dizer ao poder político. E nos protestos relativos aos apoios da DGArtes para o quadriénio 2018-2021, foi um dos rostos da CIA (sigla que garante ter sido utilizada pelos seus membros, em tom de brincadeira, da Comissão Informal de Artistas) que conseguiu reunir com António Costa:

“Na situação específica da Comissão de Informal de Artistas, não nos podemos esquecer que vínhamos do deserto e que houve alguém a prometer-nos que ia haver água. Quando a seguir nos dão água engarrafada em doses muito pequenas, acho que a revolta é inevitável. O que aconteceu durante o Governo de Passos Coelho é absolutamente catastrófico a todos os níveis e é uma espécie de veto no futuro cultural do país. Nessa altura, havia a esperança que existisse uma visão estratégica diferente sobre aquilo que era o apoio às artes. E, de facto, houve ali uma união de um grupo de pessoas, que conseguiu ter uma capacidade de trabalho que não aconteceu assim tantas vezes neste setor. Acho que foi importante e que teve resultados para várias pessoas e grupos”, considera.

Após esse movimento, o dramaturgo apercebeu-se – ou confirmou a teoria – de que “a união do setor é uma coisa quimérica, provavelmente desnecessária na visão de muita gente”. Talvez seja isso que hoje o faz estar mais afastado dessas dinâmicas contestatárias e mais focado na criação que tem em mãos. Acredita que se não há capacidade de organização é preciso deixar as estruturas de representação fazerem o seu trabalho e continuar, ele, a fazer o que estava a fazer:

“Temos que garantir que o nosso público está connosco e que isso gera a pressão suficiente para que o Estado compreenda a importância da nossa existência. Ora, isto em termos estratégicos está completamente invertido. Mas acho que é a única coisa com que os grupos independentes, neste momento, conseguem contar. E isto leva a uma perversão da prática artística”.

“Não é possível continuarmos a fazer avaliações pelo número de espectadores”

O que sabe é que a Covid-19 veio expor um número de fragilidades que “já cá estavam”. Quanto aos próximos episódios, Miguel Jesus, acha que quando a tempestade passar vai ser preciso muito diálogo. Entretanto, há que tentar remar: “As pessoas vão-se habituar a usar máscaras e assim, esses novos comportamentos vão integrar-se, nós, enquanto criadores, teremos que usá-los como estímulos e os espectadores vão-se normalizar com a ideia. O sistema de uma certa eficácia que está instalado é que vai ter de se tornar flexível ou colapsar. Não é possível continuarmos a fazer avaliações pelo número de espectadores e pelas salas cheias e pelos números de cartazes quando neste momento temos que encontrar estratégias que não se conhecem, que nem o Governo conhece, ninguém conhece”, finaliza.

Vera Mantero, coreógrafa e bailarina

“O palco não é um território asséptico”

Vera tem-se dedicado às corridas, porque além de ser uma atividade que a mantém em forma, também tem outros efeitos, como manter a “cabeça minimamente sã”. Também se apressa, antes de começarmos esta corrida a dois, a esclarecer que se sente bastante privilegiada por ter uma estrutura (O Rumo do Fumo) que tem apoio do Estado, o que torna possível que os colaboradores estejam a contrato e, por isso, relativamente estáveis.

Quando a atividade parou, Vera Mantero estava a trabalhar no P.E.D.R.A – Projeto Educativo em Dança de Repertório para Adolescentes, atividade que leva alunos do ensino secundário de Lisboa, Porto e Viseu a trabalhar em torno da sua obra. Além disso, tinha em agenda participar num trabalho do importante coreógrafo francês Boris Charmatz, em França, “20 dancers for the XX Century”. Ia dançar, também nesse país, “Os Serrenhos do Caldeirão” e em Faro o trabalho “Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois”. “Ia a Cuba e a Miami, onde nunca fui na vida, estava super entusiasmada, foi adiado não se sabe para quando, uma semana em cada um dos sítios, ia dar workshops, aulas, fazer umas improvisações em público”, lamenta.

E este seria também o ano – embora já se tenha iniciado em 2019 – em que se ia assinalar os 20 Anos d’O Rumo do Fumo. Como é que se celebra um aniversário um ano depois de fazer anos, algures em 2021? “Pois, não sei. Felizmente já tínhamos feito a festa de aniversário, em dezembro. E considerávamos que os espectáculos neste ano continuariam a assinalar a data, e, pronto, continuaremos assim desta forma um bocadinho às três pancadas, em adiamento”.

"Então, para os jogadores de futebol há testes todas as semanas, onde é que estão essas condições para quem se vai meter em cima de um palco?”

Aquando da celebração dessas duas décadas de existência da estrutura, Vera Mantero escreveu um longo texto com críticas à falta de interesse dos governantes portugueses na cultura. E agora tudo fica “mais patente”, diz. “A forma como a falta de um estatuto para os artistas neste momento torna tudo ainda mais precário, é gritante. Não faz sentido continuar-se a ignorar as especificidades do setor, é preciso olhar-se para quem são as pessoas, onde é que estão, em que diferentes condições estão, é um desconhecimento profundo de quem trabalha nesta área, não podemos continuar nesta arbitrariedade”, denuncia.

Sobre a reabertura dos teatros, a coreógrafa refere que ainda só há regras equacionadas para o público: “E no palco? Como é que vai ser quando subirmos ao palco?”. Nunca se fala sobre isso. Isto só demonstra o desleixo para com as pessoas que trabalham nesta área, continuam a ignorar-nos. Vão ser feitos espectáculos, OK, então e quem está em cima do palco é de gesso? São figuras de cartão? É de um desprezo… Então, para os jogadores de futebol há testes todas as semanas, onde é que estão essas condições para quem se vai meter em cima de um palco?”, questiona.

Simultaneamente, também considera que a partir do momento em que venham essas diretrizes, que deverão exigir distanciamento entre intérpretes, o que lhe parece mais provável é que a arte se torne estranha ou difícil de fazer: “Podemos estar reduzidos a solos e duetos, com o pessoal cada um do seu lado do palco, só se for isso. E isso é terrível. Acho que não nos devemos arriscar por amor à arte, o palco não é um território asséptico onde entras e estás protegido da Covid-19, é uma irresponsabilidade enorme. Não é impossível, mas não me parece interessante”.

Tal como outros profissionais do sector, Vera Mantero acha absurdo os valores disponibilizados pelo Governo quando comparados com outros países. E defende que é absurdo pedir a artistas que elaborem um novo projeto de criação (candidatura à Linha de Apoio de Emergência ao Setor das Artes) quando, provavelmente, estão a pensar como ter dinheiro para comer. E é outra das vozes que condena a burocracia:

“Também não entendo como é que não se implementou logo uma medida, que já foi mencionada pelo CENA–STE, em que se apoiava já as estruturas que, no último concurso da DGArtes, foram elegíveis e não tiveram apoio porque o dinheiro não chegou lá. O concurso já está feito, o júri disse que eram elegíveis, não era preciso dizer às pessoas para fazerem novos projetos. É agora que as pessoas precisam de dinheiro, não é daqui a três ou cinco meses”.

“É incompreensível este desinteresse, esta falta de investimento e este desacerto constante nas pessoas que colocam à frente do Ministério”, diz Vera Mantero

Pelo meio, pergunta “para onde é que foi o milhão do TV Fest”. E conclui: “Não sei se foi uma ilusão ou não, mas tinha a sensação de que o António Costa, quando era presidente da Câmara de Lisboa, tinha interesse na cultura e a visão de que isso é uma coisa importante na vida das pessoas e do país. A cultura esteve praticamente ausente da campanha eleitoral. É incompreensível este desinteresse, esta falta de investimento e este desacerto constante nas pessoas que colocam à frente do Ministério. Ó meu Deus, não há ninguém de jeito para aquele cargo? Não há um projeto, é apenas uma manutenção, para ver se não derrapa tudo. É claro que estão sempre a derrapar”.

Tânia M. Guerreiro, produtora

“Podemos espernear, mas raramente temos resultados”

Tânia M. Guerreiro assume que tem trabalhado mais do que nunca. Já trabalhava em casa antes disto, mas a situação que as artes performativas atravessam exige-lhe ainda mais tempo.

Dois dias depois da decisão que ditou o encerramento dos teatros, iria estrear “Mina”, espectáculo que a coreógrafa Carlota Lagido levaria ao São Luiz, integrado no Festival Cumplicidades. Um projeto com 13 mulheres, que tinham trabalhado durante meses para aquele momento. Quase sem hesitações, a produtora assegurou a normalidade das coisas e pagou a toda a equipa a 100%. Decidiu depois lidar com o assunto, sem saber muito bem se conseguiria ir buscar o valor que tinha adiantado: “Parece que não é claro para toda a gente que todas as entidades são responsáveis pela sua atitude e, mesmo não tendo apoio sustentado da DGArtes, está em causa é a nossa palavra. Se combinámos uma coisa e aconteceu isto que não está nas mãos de ninguém, o mínimo que devíamos fazer era aquilo que estava acordado. Estou a pagar tudo a 100% e daí a minha luta, para que isto seja um exemplo, para forçar aqueles que estão acima de nós a fazerem-no pela sobrevivência das equipas”, declara.

Algures no início da última década, Tânia M. Guerreiro foi coordenadora da REDE – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea. Onde voltaria, com cargo de direção, em 2016. Todo este trajeto fê-la aprofundar conhecimentos específicos sobre os direitos destes profissionais. Entretanto, no ano passado, como não ganhou o apoio sustentado da DGArtes para o biénio 2020-2021, decidiu sair da direção da REDE para poder atuar em nome próprio. Mas já na grande contestação de 2018 tinha estado presente.

"Mais do que 1%, mais do que X dinheiro, o que é importante é desenhar uma política cultural para o país e a, partir daí, saber quanto é que é preciso para isso. Não são metas de percentagens, que são apenas uma maquilhagem da matemática”

Nessa altura, os gritos eram de denúncia de um modelo de apoio mal formulado, que, na sua opinião continua a não estar bem: “Para mim, a ideia base é que ele estivesse muito mais assente na ideia de apoio à criação, de uma forma mesmo substancial. Sabemos que existem apoios à criação na DGArtes, mas muitos deles são sustentados e avaliados pensando sempre em quem é que apresenta, onde é que se apresenta, que coprodutores é que se tem, sempre do lado do que chamaria o lado do mercado. E, para mim, isso é muito negativo. Devia estar mais do lado da criação para que ela possa ser livre. Neste momento, além de haver problemas de poder entre programadores e artistas, o que acontece é que muitas vezes os artistas vão perdendo o seu poder de criação e de decisão. Acho que isso está até a contribuir para um enfraquecimento criativo”, explica.

Neste reatar das manifestações da classe, a produtora foi das primeiras pessoas a agir sobre o assunto, e fê-lo entregando ao Ministério da Cultura informação que alertava para as características particulares da profissão das artes perante uma situação pandémica como esta.

“Com esta situação que nos obrigou a ser mais ativos, tive dúvidas, a sensação que tenho é que bem podemos espernear, mas raramente temos resultados. É o que está a acontecer. Já passámos o estado de emergência e não conseguimos nada do que estivemos a reivindicar. Conhecemos o nosso setor e entregámos documentos ao Ministério da Cultura a explicar o que era necessário modificar na Segurança Social, não é por falta de conhecimento, esses pedidos não foram considerados por uma decisão política. Se não há um trabalho dentro do Ministério da Cultura para explicar ao Governo as nossas especificidades nada vai acontecer. E isto é o mais grave, a sensação de que o Ministério da Cultura não existe”.

Tânia acredita que se a população não requer o direito de acesso à cultura é porque o Governo também não quer passar essa informação: “Acredito que essa consciência é provocada, nunca sabemos onde é que começa. A maior parte das pessoas não tem ideia se os números são altos ou são baixos, portanto, não seria o facto de termos 1% do Orçamento do Estado que faria com que a população portuguesa achasse muito dinheiro. Na prática, isso não é real. Mas mais do que 1%, mais do que X dinheiro, o que é importante é desenhar uma política cultural para o país e a, partir daí, saber quanto é que é preciso para isso. Não são metas de percentagens, que são apenas uma maquilhagem da matemática”, enquadra.

“Vejo isto como uma hipótese de maior aproximação”, confessa Tânia M. Guerreiro

No que aos próximos tempos diz respeito, Tânia M. Guerreiro acha que esta é uma bela oportunidade para repensar a relação com o público. Sabemos que há o distanciamento imposto, sabemos que a lotação das salas vai ter que ser reduzida. Mas mais do que pensar como nos vamos sentir dentro de uma sala, o que é preciso, na sua opinião, é perceber como isto nos pode levar a construir uma proximidade diferente entre artistas e público:

“Vejo isto como uma hipótese de maior aproximação, neste momento pensar um bocadinho mais de que forma é que as criações podem contactar com o público dentro destas regras e, se calhar, ainda ir mais longe na relação, porque não somos obrigados a contactar com muitas pessoas de cada vez. Tenho, ao longo dos anos, contactado com artistas a quem interessa fazer espectáculos de um-para-um ou para muito pouca gente e não os têm conseguido fazer. E isto é porque sabemos que os números é que contam para o Governo, isso tem feito com que os artistas se adaptem com receio que não lhes comprem o espectáculo. Parece-me que agora temos uma janela de tempo para, se calhar, conseguir voltar a testar e a restaurar a relação com o público. Isto interessa-me”.

David Marques, coreógrafo e bailarino

“Os artistas têm muitas ideias sobre como podem produzir o seu trabalho”

Foi dos poucos artistas que ainda conseguiu apresentar um espectáculo no Festival Cumplicidades – “Dança Sem Vergonha” esteve a 6 e 7 de Março, na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa. Recorda-se que já havia uma pessoa de máscara no público, mas ainda era um comportamento raro. Depois, foi para França, onde esteve duas semanas a trabalhar como assistente numa peça do influente coreógrafo francês Loïc Touzé para o Ballet de Lorraine. Mal chegou, percebeu que em Portugal já se estava a fazer confinamento voluntário. Ainda fez uma semana de ensaios individuais com os bailarinos, mas a pandemia escalou e acabou por voltar para Portugal.

Estava em Nancy, apanhou dois comboios e um avião para voltar e contou apenas três pessoas de máscara neste processo. Estava previsto atuar no Festival d’Avignon e ainda faria mais assistências a Touzé. Tudo coisas que estão em suspenso. “Agora, na minha relação, em casa, o meu trabalho, naquilo que me diz respeito a mim, estou bem. Sinto que tenho uma rede que me protege, tenho uma casa onde gosto de estar, o meu trabalho tem algumas vertentes que me permitem funcionar em casa, não só nos reagendamentos, mas a pensar em projetos, a escrever candidaturas. Portanto, é assim um misto entre estar preocupado com a minha situação profissional, mantendo essa dimensão da minha vida ativa, e depois pensar o que é que se pode fazer seja através de pressão ao Governo, seja a tentar ajudar pessoas que estejam em situações mais frágeis, é uma mistura de planos”, admite.

“Se a arte o que faz, entre outras coisas, é falar do mundo, onde estamos, aquilo que estamos a pensar, e se o mundo mudou, há qualquer coisa também na arte que terá que mudar."

Mas foi devido a esta situação de calamidade que David Marques estabeleceu uma ligação à Ação Cooperativista e que decidiu fazer mais, por ele próprio e pelos seus colegas: “Envolvi-me um bocadinho numa espécie de ativismo informal porque percebi que já basta de não fazer nada e de contar que o Governo resolva as coisas por si, a importância da cidadania parece que se revelou para mim, neste momento, de uma maneira muito clara.”

David Marques não contempla voltar ao ativo como se esta não fosse uma hipótese de mudança, como se não estivéssemos a testemunhar um episódio histórico. A arte, portanto, não pode seguir como se nada fosse: “Se a arte o que faz, entre outras coisas, é falar do mundo, onde estamos, aquilo que estamos a pensar, e se o mundo mudou, há qualquer coisa também na arte que terá que mudar. Fará sentido continuar a contribuir para uma economia de produção e de consumo das artes que se percebe, com esta crise, que é frágil? Incita a uma produção contínua, incita à venda, incita a uma série de coisas que podem, de um momento para o outro, desaparecer e não deixar verdadeiras fundações. No caso português então, isso é flagrante”, comenta.

Além disso, isto é, além desta ideia de intervenção, já antes, pelo trabalho realizado, David Marques falava de política. “Mistério da Cultura” – que se estreou em setembro no Festival Materiais Diversos e passou em novembro pelo TBA – punha o dedo na ferida. A certa altura, apareciam uns lençóis enormes que mais não eram que formulários de candidatura a apoios da DGArtes. Os intérpretes enrolavam-se e neles tropeçavam, como se de um bicho papão se tratasse.

“Acho que o meu trabalho artístico começou a ter uma dimensão política mais vincada ultimamente, sim. Não vejo mal nenhum em ter apenas no meu trabalho artístico uma vontade mais política e crítica. Mas, de facto, houve qualquer coisa aqui que me fez sentir necessidade de agir. É um setor em que nos habituámos a não ter um estatuto. Como se ser artista, técnico, produtor fosse uma espécie de ocupação profissional meio volátil que ninguém entende bem o que é e que nos vamos safando porque essa é a especificidade da nossa profissão. Claro que temos especificidades, mas elas são tão sérias como as dos outros profissionais. O direito ao acesso à cultura está na nossa Constituição, não é só reivindicar os direitos destes profissionais, é, também, garantir que os que cidadãos entendem isso e têm direito de usufruir da arte”, atira.

“Esta é uma oportunidade para pensar o que é isso do pleno funcionamento”, afirma David Marques (foto de Ágata Xavier)

David Marques é dos que também considera essencial que se aproveite esta catástrofe para repensar algumas formas de organização deste mercado e, sobretudo, como é que se apoiam os artistas: “Percebo que os teatros e os festivais querem voltar ao pleno funcionamento, mas a verdade é que esta é uma oportunidade para pensarem o que é isso do “pleno funcionamento”, e, se calhar, vale a pena pensar que se podem apoiar artistas sem se apoiarem, necessariamente, apresentações. Pode-se apoiar o trabalho artístico de outras maneiras, aliás, não é nada de novo, os artistas têm muitas de ideias sobre como podem produzir o seu trabalho com formas alternativas, seja através da pedagogia, seja através da documentação, seja através de processos de investigação longos. Acho que há muito por fazer”.

Jorge Silva Melo, encenador, cineasta, dramaturgo, ator

“Não sabemos. Não sabemos”

António Simão bebia cerveja em cena quando lhe disseram que já não podia beber mais. Falamos de um espectáculo criado em 1997 pelos Artistas Unidos e estreado no CCB. O texto é do checo Bohumil Hrabal e situa-nos numa cave, em Praga, onde ratos e copos convivem com livros. A criação de António Simão, com interpretação do mesmo, chegou a ser estreada, mas foi interrompida pela ordem de encerramento dos teatros.

E os Artistas Unidos andavam já a ensaiar a próxima criação, “Calor”, texto do dramaturgo norueguês Jon Fosse. Era uma encenação de Jorge Silva Melo: “Tivemos que anular. E já íamos com um mês de ensaios. Não sabemos, não sabemos”. Este “não sabemos” é a resposta do diretor artístico da companhia que habita o Teatro da Politécnica quando lhe perguntamos como perspetivam os próximos tempos, se vão repor, qual o impacto que esta situação tem na sua atividade. E essa incerteza, essa ausência de chão, pautou quase todas as respostas do encenador português.

Perguntámos a Jorge Silva Melo: será a cultura um dia vista como um direito? Jorge Silva Melo respondeu, simplesmente: “não”.

Em relação ao confinamento, confessa-nos que não tem lido, nem visto nenhum filme, até porque se ocupa das tarefas domésticas que tão exigentes conseguem ser. É, por isso, impossível recriminar alguém que, simplesmente, nos diz que não sabe — e se não sabe não tem como nos responder. Ainda assim, tem sido, como sempre, particularmente ativo nas redes sociais, servindo-se, como sempre, de uma escrita mordaz. Num dos posts que assinou, afirmou:

“O desmantelamento das ‘companhias teatrais’ começou há muitos anos, os anos do liberalismo”. Quando lhe pedimos para reagir à afirmação respondeu assim: “O teatro está para acabar há uns bons anos, sim Quando muito será como a ópera: de vez em quando para gente fina e só em Lisboa e no Porto…”

Uma outra vez, também pela internet, ironizou: “Acho uma graça àquelas pessoas que, em relação ao teatro, dizem ‘porque é que a classe não se une?’”. E continuou: “Neste momento vejo milhares de pessoas a subscreverem cartas ao PR e ao PM. Se isto não é união…”. Portanto, daqui, depreendemos que Jorge Silva Melo faz ativismo político à sua maneira. E essa não tem que ser uma maneira a desconsiderar, pelo contrário. No final, perguntámos-lhe: será a cultura um dia vista como um direito? Jorge Silva Melo respondeu, simplesmente: “não”.

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