Armas nucleares nas mãos dos líderes do regime russo, armas nucleares nas mãos de uns mercenários que exigiam a demissão do ministro da Defesa. Este cenário esteve longe de acontecer no passado sábado, mas não foi colocado de parte nas discussões que os líderes do Ocidente mantiveram entre si naquele dia. Inclusive, persiste o rumor — nunca confirmado por fontes independentes — de que os soldados do grupo Wagner conseguiram chegar a um armazém em Voronezh, onde estão guardadas ogivas nucleares.
Entre as autoridades russas, existia o receio de que os mercenários pudessem chegar às ogivas nucleares. O ex-Presidente e atual vice-líder do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitri Medvedev, deixou até um alerta nas redes sociais às primeiras horas da manhã de sábado. O mundo estaria “perto da destruição” se os “bandidos” pertencentes ao grupo Wagner passassem a controlar o armamento nuclear. “Na história da raça humana, nunca houve uma situação em que o maior arsenal de armas nucleares tenha sido controlado por bandidos. Obviamente, tal crise não se limitará a um só país. O mundo estará à beira da aniquilação”, lembrou o aliado de Vladimir Putin.
A situação não atingiu essas proporções. Após um acordo com o Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, o líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, terminou com a rebelião. Apesar de os riscos de uma catástrofe nuclear terem diminuído em 24 horas, ficaram várias perguntas no ar: o que acontece ao arsenal nuclear da Rússia — o maior do mundo — se começar uma verdadeira guerra civil, algo que, na ótica do Presidente russo, esteve prestes a irromper? Quem passa a controlar as armas? Poderão ser usadas entre duas fações distintas?
“O falhanço militar vai destruir o poder político russo, ou a destruição do sistema político da Rússia levará ao desastre militar?”, questiona igualmente um diplomata do Ocidente ao jornal Financial Times, que aconselhou, diante dos “diferentes cenários possíveis”, que se elaborassem “planos de contingência” para uma possível guerra civil russa e para o possível uso de armas nucleares dentro do mesmo país.
Os receios de que as armas nucleares russas possam cair nas mãos erradas não são novos. Como lembra a revista Time, aquando da dissolução da União Soviética, no início da década de 90, a presidência norte-americana fez de tudo para assegurar que as ogivas nucleares não passassem a ser controladas por grupos terroristas ou atores não-estatais.
Ainda que as circunstâncias sejam diferentes, os fantasmas daquela época voltaram a assombrar os Estados Unidos. E o futuro poderá trazer novos momentos de aumento da instabilidade política na Rússia. Se, por exemplo, a contraofensiva ucraniana resultar e Kiev conseguir libertar grande parte dos territórios ocupados desde 2014, a decisão de Vladimir Putin de iniciar o conflito no país vizinho será questionada — e poderá dar origem a uma revolta e, quiçá, a uma guerra civil.
A revolta dos Wagner
Durante a insurreição, Yevgeny Prigozhin nunca deu a entender, nem referiu publicamente, que tinha como objetivo controlar o armamento nuclear russo. Mesmo que o líder da milícia paramilitar quisesse ter acesso às armas nucleares, seria, ainda assim, bastante difícil. A cientista política Olga Oliker, do think tank Crisis Group, sublinhou, à revista Time, que a Rússia divide — no seu território — os componentes das armas nucleares. Por exemplo, os mísseis com capacidade nuclear não estão localizados no mesmo espaço físico que as ogivas, cuja utilização depende de um código que é apenas conhecido pelas altas figuras do Estado russo.
Adicionalmente, a mesma especialista recorda que os locais onde estão guardadas as armas nucleares russas estão constantemente a ser “vigiados”. “Não há nenhuma prova de que os Wagner estivessem a pensar controlá-las. Não só isso seria tremendamente complicado, como também não há lógica em fazê-lo. O que eles podiam fazer com elas?”
Por sua vez, Matthew Bunn, professor da Universidade de Harvard que chegou aconselhar a administração Clinton em temáticas relacionadas com o armamento nuclear, sublinha, em declarações ao Wall Street Journal, que a rebelião “não alterou a segurança das armas nucleares russas”. Contudo, o docente universitário aponta para a possibilidade de que Yevgeny Prigozhin pode ter querido controlá-las não para as utilizar, mas antes para ganhar poder negocial.
À revista cientifica Bulletin of the Atomic Scientists, dedicada ao tema dos riscos nucleares, a investigadora da Universidade de Harvard Mariana Budjeryn concorda que os mercenários pudessem querer controlar as ogivas para ganharem uma vantagem negocial a “curto prazo”. E também diz que é possível, “com o tempo suficiente e mestria”, desbloquear os códigos que protegem o arsenal nuclear russo, apesar de a especialista duvidar que o grupo Wagner tivesse tido os meios técnicos necessários para essa tarefa.
Os receios do Ocidente
Mesmo nunca tendo abordado essa possibilidade durante os dias das rebelião, o Ocidente (e o mundo) receou que o grupo Wagner tivesse acesso a armas nucleares. Um antigo membro do conselho de segurança nacional norte-americano Steven Andreasen enfatiza ao Wall Street Journal que “os mercenários conseguiram controlar rapidamente a cidade de Rostov” sem resistência das tropas regulares — e fez que com soassem os alarmes.
“[As tropas regulares] teriam feito o mesmo em armazéns nucleares?“, questiona Steven Andreasen, realçando que o líder do grupo Wagner poderia ter aliados a assegurar a segurança daqueles locais. Esse seria, aliás, um dos principais receios do Ocidente. Além disso, confrontados com uma rebelião, as forças que guardam armas nucleares leais ao regime poderiam facilmente trocar de lado.
No caso específico do grupo Wagner, segundo o vice-presidente do think tank Centro Estratégico de Estudos Internacionais, Seth Jones, em declarações ao Wall Street Journal, Yevgeny Prigozhin conhecia membros dos serviços de informações, devido ao papel que desempenhou não só nos combates em território ucraniano, como também em outras partes do globo. Esse conhecimento poderia facilitar que os guardas das armas nucleares cedessem à rebelião iniciada pelo mercenário.
Houve, assim, uma panóplia de riscos que foram avaliados pelo Ocidente. “As guerras e as revoluções durante o último século em Estados que possuem arsenal nuclear levantam questões sobre se se pode confiar nesses países para gerirem com segurança este tipo de armamento”, sustenta Matthew Bunn, professor da Universidade de Harvard.
A reação do Ocidente
Ouvidos pelo Financial Times, vários diplomatas do Ocidente admitem que, durante a reunião de emergência do G7 (de que fazem parte as sete maiores economias do mundo — Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido, a par da União Europeia) no sábado de manhã, os líderes das potências discutiram a possibilidade de o grupo Wagner conseguir o controlo do arsenal nuclear.
Publicamente, os dirigentes dos países também reconheceram que estavam a analisar os riscos. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, sinalizou que sempre que “há uma revolta num grande país como a Rússia e há sinais de instabilidade, isso é um motivo de preocupação”. Relativamente às armas nucleares, o chefe da diplomacia norte-americana não notou qualquer “mudança na postura” russa, mas é algo que Washington estuda “com muito, muito cuidado”.
A ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock, confirmou igualmente que o país estava a “analisar” o tema de forma “atenta”. “Há riscos envolvidos, mas não sabemos em pormenor quais são”, afirmou a governante. Também o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, notou que ainda é “muito cedo para prever” as consequências da rebelião, destacando, contudo, que o Reino Unido estava a preparar-se para uma “miríade de cenários”.
Em meados de junho, o Washington Post apurou que os serviços de informações dos Estados Unidos já tinham previsto uma rebelião organizada pelo grupo Wagner, se bem que não tivessem conseguido precisar quando é que teria início. Já nessa altura, realçou uma fonte da CIA ao mesmo jornal, as autoridades norte-americanas estavam “muito preocupadas” com o controlo do arsenal nuclear, principalmente se a instabilidade política tivesse dado início a uma “guerra civil”.
A Ucrânia e a vontade do Ocidente em que não haja uma guerra civil
Desde o início do conflito armado, a 24 de fevereiro de 2022, a Ucrânia aguarda por uma mudança política na Rússia. O Presidente ucraniano assinou, no outono passado, um decreto em que proíbe as autoridades de Kiev de negociar com Vladimir Putin, criticando o Chefe de Estado russo por não saber o valor da “dignidade e da honestidade”. “Estamos dispostos a dialogar com a Rússia, mas com outro Presidente”, frisou Volodymyr Zelensky.
Neste sentido, a rebelião foi uma oportunidade para as autoridades ucranianas destacarem as falhas do regime chefiado por Vladimir Putin. “O mundo viu que os chefes da Rússia não controlam nada. Nada de nada. É o caos completo. O mundo não deve ter medo”, escreveu Volodymyr Zelensky na sua conta pessoal do Twitter. “Há muito que a Rússia utiliza a propaganda para mascarar a fraqueza e a estupidez do seu Governo”, disse ainda.
Today, the world saw that the bosses of Russia do not control anything. Nothing at all. Complete chaos. Complete absence of any predictability.
First, the world should not be afraid. We know what protects us. Our unity.
Ukraine will definitely be able to protect Europe from any…
— Volodymyr Zelenskyy / Володимир Зеленський (@ZelenskyyUa) June 24, 2023
Com uma contraofensiva em marcha, Volodymyr Zelensky espera que a operação militar consiga recuperar todo o território perdido desde 2014, incluindo aquela que é considerada uma das joias da coroa do Presidente russo: a Crimeia. A vitória total da Ucrânia geraria um forte abalo em Moscovo — e poderia inclusive colocar em risco o regime de Vladimir Putin, o principal responsável pelo início do conflito, o que seria visto com bons olhos por Kiev.
No entanto, os aliados da Ucrânia não partilham dessa posição. De acordo com diplomatas ouvidos pelo Financial Times, a rebelião dos Wagner evidenciou uma divisão entre os aliados da Ucrânia. “Não há acordo sobre o que acontece se a Ucrânia ganhar esta guerra e o que se fará relativamente à Rússia”, comentou uma fonte diplomática ao mesmo jornal.
Num cenário em que a Rússia sai derrotada, os Estados Unidos já deixaram bem claro, escreve o Washington Post, que tem não intenção em envolver-se em lutas políticas dentro do país. Nas palavras do senador democrata Chris Murphy ao Financial Times, os EUA não estão interessados numa “guerra civil russa”: “Não queremos nem o caos político nem militar dentro de um país que tem um arsenal nuclear massivo”.
Funcionando como um garante do regime que intimida adversários internos e externos, a cair nas mãos erradas, o maior arsenal nuclear do mundo pode significar uma catástrofe para a Humanidade. “Ninguém ganha com uma guerra civil na Rússia”, vinca um diplomata da União Europeia ao Financial Times, acrescentando que o armamento pode ser controlado por “alguém mais radical do que Vladimir Putin”. “Isso é preocupante”, conclui.